Um disco indispensável: Blue - Joni Mitchell (Reprise Records, 1971)

Uma voz serena, inspiradora, parecendo uma princesa do conto de fadas e que nos impressiona com suas belas canções: poderíamos estar falando de qualquer artista que você possa imaginar, até mesmo de Joni Mitchell, e nós iremos falar justamente sobre ela. Uma canadense que traz um estilo seu e sem muitas surpresas, dona de um talento incomparável e uma artista completa. Nascida em 7 de novembro de 1943 em Fort Macelod, na província de Alberta como Roberta Joan Anderson, filha de uma professora e de um piloto da Força Aérea Real canadense, com seus poucos anos, a pequena Roberta Joan demonstrara interesse pela pintura e estudava piano - mas, aos 9 anos contraiu poliomielite e ficou internada por semanas, e, passado o incidente, ela decidiu investir numa carreira de dança e canto - enquanto estudava. Quis a mãe que ela não aprendesse a tocar violão, iniciou pelo ukulele, e, mesmo tendo problemas na mão esquerda (enfraquecida pela pólio), começou a tocar violão com uma afinação diferenciada - o que não impediu de mostrar suas criações musicais para as suas amigas em rodas na fogueira, e logo em seguida, seu talento começara a ser descoberto e faz uma de suas primeiras apresentações públicas em 31 de outubro de 1962 em um clube na cidade de Saskatoon na qual se apresentavam diversos artistas do jazz e do folk - e dali em diante, foi começando a ser conhecida na cena e logo chamando a atenção de ouvidos sedentos pelo canto da sereia de Joan Anderson. Em princípios dos anos 60, ela era vista como uma artista de folk que tocava em circuitos universitários e em um hotel local - trabalhava em uma cafeteria ganhando $15 tocando "canções longas e trágicas em tons menores" e já fazia aparições em rádios e programas de TVs locais. Em 1965, deixa o chão canadense e muda-se para as terras sagradas do Tio Sam (leia-se Estados Unidos), e começa uma nova jornada após uma breve passagem por Toronto onde começou a desenvolver mais algumas de suas canções, e ter tido uma filha - que a deixou para adoção e escondeu isso por anos até os anos 90: foi deixada pelo namorado em Calgry ainda grávida, e, morando em um quarto de sótão, sem chances de poder cuidar da criança, o destino de Kelly Dale Anderson, nascida em 1965, foi sempre doloroso de entender mais por parte da mãe. Chegando nos EUA, ela foi conhecendo seu companheiro dos primeiros anos, Chuck Mitchell, e casou-se com ele aos 21 anos - uma união efêmera que foi até 1967, e foi iniciando uma nova jornada que a ajudaria a consagrar-se como a grande artista: foi preciso que Tom Rush a descobrisse em Toronto e mostrasse uma das canções da canadense para Judy Collins - que acabou ignorando Urge For Going - para entender que esta mesma canção poderia ajudar a lançar uma nova artista. Quem também se fascinou com Joni foi o cantor e compositor David Crosby, ainda nos Byrds, que viu ela tocando durante uma noite em um clube chamado Gaslight South em Coconut Grove, na Flórida, e a levou para Los Angeles onde apresentou seu futuro empresário Eliott Roberts e Crosby introduziu ela e sua música para os amigos artistas, e Roberts tinha uma parceria com David Geffen - ambos influentes na cena fonográfica e influentes para ela, conseguiram o seu bem-sucedido contrato com a gravadora Reprise Records, e logo de cara grava seu primeiro LP que mostra a Joni Mitchell que nós conhecemos: com a produção de Crosby, ela faz Song to a Seagull, que é um dos nomes do álbum, o primeiro é o nome da cantora, e que mostrava, além de um belo conjunto de canções, o lado artista gráfica dela, a capa é de sua criação.
Depois disso tudo, veio adiante Clouds (1969) que ajudou ela a vender mais de 500 mil cópias nos EUA e tendo como faixas de destaque o clássico do repertório Both Sides, Now - regravada por muita gente - e Chelsea Morning, sendo muito bem recebido pela crítica especializada, louvando-a como a nova artista daqueles tempos. Em 1970, ela lança seu terceiro álbum intitulado Ladies of the Canyon, outro grande trabalho relevante em sua discografia e um sucessor a nível de Clouds, e na época namorava Graham Nash, apresentou além da brilhante faixa-título, a ode ao festival realizado no ano anterior chamado Woodstock na qual Nash com Crosby, Stephen Stills e Neil Young participaram à época, menos ela por razões de agenda, e outro tema que se destaca é Big Yellow Taxi, um tema focado na sua preocupação ambiental - percebemos aqui que a pauta ecológica e o tom político nos fazem recordar Joan Baez puramente engajada. Ela deixa de se apresentar publicamente e tira umas férias pela Europa, mas também era momento de criar coisas novas - em Matala, situado na ilha de Creta e sem tempo para namoro, uma vez que, de Formentera (Espanha), mandou um telegrama para Nash, de quem era namorado desde 1968 avisando que o romance tinha acabado - e dali, da ruptura deste namoro, Mitchell criou mais outras canções, e, voltando para a América, começa a namorar o cantor James Taylor durante o verão de 1970 visitando-o enquanto ele participava do filme Two-Lane Blacktop, da qual também estava dentro do elenco o beach boy Dennis Wilson. Parecia que, em Taylor, ela encontrara algo importante, os dois estavam muito envolvidos e apaixonados, embora haja algumas dificuldades, Joni encontrou mesmo em James a pessoa certa para um relacionamento. O problema é que, ela estava gravando seu terceiro LP, e enquanto a fama de Taylor acontecia, isso acabou causando um forte atrito, e ele decidiu acabar com o namoro - Mitchell ficou devastada com isso. O quarto LP de estúdio e de carreira estava sendo gravado no A&M Recording Studios em Los Angeles quando ela estava namorando Taylor, e de produção totalmente autoral, ou melhor explicando: ela mesma cuiando de tudo, desde Clouds (embora tenha sido a co-produtora com Paul Rothchild), ela ainda tocou violão, piano e uma espécie de cítara oriunda da região dos Appalaches. Taylor gravou violões em 3 faixas, Stephen Stills tocou baixo e guitarra, ainda teve Sneakey Pete Kleinow tocando steel guitar em duas faixas e Russ Kunkell tocando bateria em três faixas. O álbum, intitulado Blue, editado em 22 de junho de 1971, traz no repertório confissões pessoais sobre os relacionamentos com Taylor e Nash, e, traz uma capa com tons azulados estampando um retrato de Joni feito por Tim Considine, como se estivesse mostrando os sentimentos da artista naquele momento de fim de relacionamento. Vamos agora falar sobre as 10 faixas que estampam o repertório deste disco, a começar por All I Want, logo de cara nos surpreende com sua melodia na cítara e sua voz encantadora, num tom confessional, e fala sobre estar apaixonada e tudo o que realmente quer é ver a si mesma e seu parceiro de relacionamento felizes, é uma letra inspiradíssima; adiante, temos um piano que reina soberanamente ao longo dos quase quatro minutos de My Old Man, uma canção sobre uma fantasia de domesticidade inspirado no conturbado romance com Nash, sobre a licença de casamento e de que ambos não precisam oficializar com um papel, porque eles realmente sentem isso, e a voz soa como se estivesse a recordar com um tom mais intimista do que nunca; em diante, a poesia sonora da canadense nos presenteia também outros clássicos como Little Green, com uma veia autobiográfica, fala sobre sua filha Kelly que fora adotada após nascer em 1965 e esta música foi composta em 1967, trata-se sobre as sensações de como sua filha deve estar nesse tempo distanciada e o abandono do ex, com muita sensação de esperança com o bucolismo vindo dos acordes do violão, um primor acústico que só; mantendo esse primor acústico e simples no repertório, temos aqui Carey, inspirado em um personagem que conheceu pela Europa - mais precisamente na ilha de Creta, chamado Cary Raditz, e, com um arranjo incrível na qual ela ao violão mais Stills no baixo e Russ Kunkel na bateria com um ar bem hippie sem muita acidez, o que ajuda a manter essa aura folk da canção; para a próxima faixa, temos um piano totalmente melódico, novamente expondo mais o lado intimista de Mitchell através de Blue, uma canção pessoal na qual fala sobre tristeza e depressão, e podemos ler pelas entrelinhas os sentimentos dela expressados a respeito da doença, e mesmo com todos aqueles sentimentos amargos e dolorosos que ela carrega, parece até estar aprendendo a amar, o piano consegue ajudar muito nas atmosferas melódicas que complementam a canção e combinam com a voz da canadense; em seguida, nós temos por aqui mais outra canção inspirada nas jornadas andarilhas de Mitchell pela Europa, e California traz aqui mais um belo arranjo acústico com percussão e Taylor no violão enquanto ela toca o saltério appalachiano, sem esquecer Sneaky Pete no steel guitar deixando esse clima sonoro acústico mais solar, e que dá muito  a sensação de nostalgia do lar onde mora; com esse bucolismo musical, ainda podemos contar com canções de belo primor desde sempre nesse disco, como no caso de This Flight Tonight, uma espécie de historieta sobre ela voar para distante do companheiro de relação, e, vê uma estrela cadente da janela do avião e pede à esta estrela que o avião mude o curso do voo, demonstrando-se até bem arrependida e com um belo violão dando o tom que a música precisa; na próxima música, temos um piano melódico, e uma história triste como tantas outras no repertório desta longa duração, River carrega uma história que se passa a poucos dias do Natal em um relacionamento acabado, e, morando em Laurel Canyon (Califórnia), uma região onde quase não neva, ela deseja que a alegria natlina passe como um rio sabendo que é quase incapaz de sentir naquele momento; sem perder a doçura das melodias, Joni ainda nos proporciona aqui outra canção sobre o término do romance com Graham que é justamente A Case of You, na qual fala sobre como esse amor "errado" permanece dentro da alma, e no refrão coloca uma metáfora da pessoa amada comparando com um vinho bem curiosa, na qual ela explica sobre ser capaz de beber uma garrafa inteira e se manter sóbria - fazendo ligações do romance com o vício ao álcool sabendo que, mesmo fazendo mal a ela, é mais forte do que gostaria e pediria mais e mais - o instrumento appalachiano ainda aparece ao lado do violão de Taylor e da marcação rítmica de Kunkel que ajuda e muito na canção; encerrando no melhor estilo, uma canção na qual ela demonstra sentir esperanças de um novo amor e o cinismo de que esse novo amor possa soar como uma grande mentira - isso é The Last Time I Saw Richard, e nesta última faixa podemos sentir os anseios e o medo desse amor não dar certo e sua descrença no amor, destacando novamente um piano que reina soberanamente ao lado da voz que ajuda, e mostrando assim como expor seus dramas, seus dilemas vividos em relacionamentos e situações pessoais.
Coincidentemente, a canadense fez deste álbum sua magnum opus e seu sucesso foi crescendo na época e levando seu álbum para a posição de número 15 no Billboard Hot 200, enquanto na Inglaterra ficou em 3º e no seu Canadá natal ocupou o 9º lugar, e vendeu 1 milhão de cópias nos EUA. Enquanto isso, Geffen e Roberts tentavam emplacar na Atlantic outro artista chamado Jackson Browne sem sucesso, foi aí que ouviu de Ahmet Ertegun uma frase que mudou a dupla-chave de sucesso "Por que você não abre uma gravadora e então poderá ter muito dinheiro" e então os dois fundam a Asylum Records, na qual integram Browne e Mitchell, e lança logo de cara o conjunto Eagles e o bardo beatnik Tom Waits - Joni lança pela Asylum o seu sucessor, For The Roses em novembro de 1972, embora o namoro com Taylor já havia acabado bem antes quando ele decidira trocá-la por Carly Simon - mas aí já é uma outra história. Anos depois, seu disco mostrou uma importância enorme na história da música, em 2003 foi o momento da revista Rolling Stone dar a ela a mais alta posição para o álbum de uma artista feminina na lista dos 500 Maiores Álbuns de Todos os Tempos - o abençoado 30° lugar! Sim, Joni rules! Nove anos depois, a mesma Rolling Stone fez uma lista com 100 álbuns femininos e lá estava Blue ostentando um bendito 2º lugar - nada mal. A revista Pitchfork colocou em uma quase despercebida 86ª posição na lista dos 100 melhores discos da década de 1970, enquanto em 2001 o canal de música VH1 deu a este álbum maravilhoso (baixou o Luís Roberto de Múcio em mim) na lista dos 100 Maiores Álbuns de Sempre o 14º lugar, e, cinco anos depois, a National Public Radio nos EUA rankeou sua magnum opus com a MEDALHA DE OURO, a POLE POSITON - melhor dizendo, PRIMEIRO LUGAR numa lista de 100 Grandes Álbuns Feitos Por Mulheres, isso sim é pra fechar de vez o assunto - sem esquecer que está entre os títulos dos anos 1970 na lista dos 1001 Álbuns Para Ouvir Antes de Morrrer. Dores, sentimentos amargos, experiências vividas on the road e relacionamentos conseguem encaixar-se bem em canções que formem álbuns incríveis como este em que Joni acertou em cheio.
Set do disco:
1 - All I Want (Joni Mitchell)
2 - My Old Ma(Joni Mitchell)
3 - Little Green (Joni Mitchell)
4 - Carey (Joni Mitchell)
5 - Blue (Joni Mitchell)
6 - California (Joni Mitchell)
7 - This Flight Tonight (Joni Mitchell)
8 - River (Joni Mitchell)
9 - A Case Of You (Joni Mitchell)
10 - The Last Time I Saw Richard (Joni Mitchell)

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