Um disco indispensável: Raising Hell - Run-DMC (Profile Records, 1986)

Num momento em que o gueto americano começava a tomar conta do cenário mainstream, com letras que traziam não somente a realidade suburbana, da violência que atormentava as cidades e também sobre conquistar garotas, sucesso e carros, o hip-hop consolidou para sempre esse fragmento poético-sonoro, com samples de diversas canções do rock, pop e soul - era preciso o novo som do gueto se tornar muito mais popular, estar acessível a públicos maiores que em 1986 esse som dominou de vez o mundo com uma série de artistas que fizeram a diferença. Dentre alguns que podemos destacar, o trio de jovens branquelos judeus do Beastie Boys - que estrearam com Licensed to Ill e fizeram a festa misturando elementos de hip hop com a agressividade sonora do rock e samplers, com forte presença nas paradas e na MTV em especial. Também tínhamos figurões como Kurtis Blow, Grandmaster Flash, Big Daddy Kane, Melle Mel, LL Cool J e também um trio de rapazes do bairro do Queens na gigante New York - esse, formado por dois jovens MCs que estavam antenados nas mensagens que aqueles irmãos de cor, vindo também do underground suburbano estadunidense, queriam mostrar, acompanhados de um também antenado e genial DJ. Conhecidos desde muito tempo, Joseph Simons e Darryl McDaniels moravam na vizinhança de Hollis, e ao terminarem o ensino médio, eles começaram a fazer raps, inspirados no novo fenômeno que dividia opiniões ainda sobre a forma de fazer scratches com discos de vinil, usar trechos de canções como de James Brown, Chic, Stevie Wonder, Sly & The Family Stone, uma vez que as bases de canções do mesmo caíam muito como luva. Simmons e Daniels formavam o Run-DMC em 1981, que contava com um forte terceiro elemento: Jason Mizell, que ao mesmo tempo em que fazia o papel de DJ, ajudava na criação das bases sonoras, e com isso, gravaram algumas fitas demo com a intenção de descolarem algum contrato para fazerem a ponte entre a música deles e as massas. Estamos nos anos 1980, e o pop contava com grandes ícones que bombaram na época e fazendo discos clássicos, vide Michael Jackson com sua magnum opus Thriller (1982), a ousada e nova dona do pedaço Madonna mostrando para o que veio com Like a Virgin (1984), embora já tenha feito uma estreia discográfica mediana, porém, como uma prévia do seu grande salto em curto tempo, tínhamos também Prince com seu talento virtuoso não somente como músico, mas também como produtor, engenheiro e diretor musical dos seus próprios trabalhos - começando com tudo a década de 1980 com Dirty Mind e atingindo seus ápices em 1982 com o brilhante e futurista 1999, e, em junho de 1984, já mostrava uma grandiosidade com Purple Rain - que, além de filme onde ele era o protagonista da história, lançou um disco com a trilha sonora, um dos seus melhores trabalhos. Sem esquecer de fazer menções dignas e honrosas a Cyndi Lauper, George Michael (primeiro no Wham! e depois como artista solo), Hall & Oates, Grace Jones, e o rock rolava com o metal nu e cru de AC/DC, Iron Maiden, Scorpions, Whitesnake, enquanto os já consagrados Queen, Deep Purple, Black Sabbath dentre outros buscavam se inovar para não permanecerem vistos como "dinossauros", como estavam sendo vistos Yes, Pink Floyd, Led Zeppelin, Beatles, Rolling Stones (em atividade) já em princípios dos 80. Com uma dessas fitas, gravadas juntamente de Larry Smith e feitas com a intenção de chegar às mãos de alguém ligado ao rap, como Kurtis Blow, o grupo conseguiu uma oportunidade na Profile Records, uma gravadora independente que trabalhava com R&B em especial, e as portas se abriram para o grupo, que gravou em 1983 seu primeiro compacto com as faixas Sucker MC's e o primeiro grande trabalho deles, It's Like That - e isso foi a prévia do que viria a ser o seu primeiro LP do duo editado em 1984, que ia num caminho diferente do rap festeiro e dançante do Grandmaster Flash e Sugarhill Gang, o estilo do Run-DMC partia para uma verve mais hardcore, com influências do rock - a produção era mais potente, minimalista e trabalhada sobre uma base de bateria eletrônica, fragmentos de guitarra ou de sintetizador e com os scratches de JMJ, e com letras mais realistas do que se passava nos subúrbios, da violência e da falta de educação numa América que se mostrava outra sob a administração do ex-ator Ronald Reagan. E nessa América de Reagan, um grupo de mulheres começou a se juntar para combater contra o excesso de versos e frases explícitas dizendo-se em defesa da moral e dos bons costumes, esse grupo de mulheres liderado por Tiper Gore (então esposa do senador Al Gore) foi responsável pelo surgimento do Parents Music Ressource Center - o PMRC. E vários artistas do pop e do rock entraram na lista de alvos por seus conteúdos considerados imorais para essa versão ianque das Senhoras de Santana (joguem no Google), desde o rock até o hip hop. Sim, o rap/hip-hop não foi poupado, e artistas como Blow, Mel, Kane e Cool passando pelo próprio Run-DMC sofreriam com avaliações feitas pelos seus conteúdos e futuramente o próprio gênero seria o alvo que mais passasse por esses problemas, visto que os álbuns do gênero seriam os que mais apresentariam na capa o adesivo Parental Advisory, em voga até hoje no cenário.
Com a dupla de ataque do Aerosmith, o vocalista Steven Tyler (de vermelho) e
o guitarrista Joe Perry (à dir., de preto): graças ao Run-DMC, a banda saiu do
ostracismo e colocou "Walk This Way" de volta ao público da geração 80.
Em 1985, outro grande salto para fortalecer o trio: já aclamados com o sucesso de It's Like That e de Hard Times nas paradas de sucesso, em especial nas paradas de R&B e de Dance, o grupo já estava mais preparado pelos desafios que ainda viriam à frente, e o segundo álbum King of Rock mostrava que eles seguiam inovando em termos de qualidade sonora e de produção, com letras que carregavam um pouco do estilo gangsta rap, que aclamou diversos nomes conhecidos da segunda metade dos 80 em diante. Mas, nem sempre, o rap em seus princípios ficaria de fora dos grandes eventos da história do rock, em 13 de junho de 1985, entraram em cena no lendário Live Aid realizado na Filadélfia (EUA) e em Londres (Inglaterra) no estádio de Wembley - eles foram o único grupo de rap a participar do evento, na Filadélfia - e isso gerou uma visibilidade até maior do que no começo da carreira, vendo que romper barreiras era preciso naqueles ousados e constantes anos 80, que traziam muitas inovações. Inovar era preciso, e em 1985, depois de uma tournée que rodou a América promovendo King of Rock que rendeu até um clipe exibido na MTV (os primeiros rappers a lançarem um clipe dentro da emissora mais musical da moda), eles retornam aos estúdios para comporem algo inédito, um terceiro álbum, no Chung King Studios - situado em Manhattan, só que sem Larry Smith: enquanto Russell, irmão de Run, permanecia como produtor dos álbuns, quem ficaria na produção deste trabalho seria o quase desconhecido Rick Rubin, que, juntamente de Russell, fundara o selo mais dedicado ao hip-hop abraçando diversos nomes do cenário, a Def Jam Recordings, embora o grupo do irmão de Simmons ainda fossem artistas da Profile. Em janeiro e março de 1986, os cinco trabalharam muito para conseguirem fazer do próximo álbum uma magnum opus do hip-hop, e eles conseguiram - meses depois de muito trabalho, concluíram Raising Hell, editado em maio de 1986 - a capa já mostra a dupla numa visão de que estavam saindo do anônimo pra fazerem a história com este divisor de águas do gênero. Abrindo o álbum, temos logo de cara um rap bem diferente, cujos versos parecem de uma cantiga de ninar, estamos falando de Peter Piper, a faixa de abertura, com um toque bem infantil nas bases sampleadas, e foi o mais perto de uma canção de ninar que eles conseguiram, a batida já mostra essa essência e já faz um belo dum barulho logo nessa entrada triunfante; na sequência, temos aqui um dos grandes hits do álbum que ajudou na popularidade do álbum, estamos falando de It's Tricky, na qual serve como uma explicação sobre o rap ser tão complexo e como resposta a quem vê o gênero como fácil e de pouco valor, a parte musical faz parecer uma canção puramente rock and roll - aliás, a base desta é My Sharona, do Knack, rendendo um processo aos rappers pelo uso do sample e o caso foi resolvido, para ambos; a terceira faixa usa uma temática muito usada até hoje: a ostentação, e ao falarmos aqui sobre My Adidas, dá pra entender porque esta canção ajudou o Run-DMC a se tornar os garotos-propagandas da marca logo após esta música ser notada pelos executivos da marca esportiva; foi preciso Rubin buscar uma fórmula para conseguir o sucesso deste álbum que conseguiu unir o trio e dois quintos do Aerosmith em uma mesma canção: a releitura de Walk This Way, canção da banda de Steven Tyler e Joe Perry - que prestaram seus serviços ao disco dando uma canja que não só colocou o rap no centro das atenções de vez, mas também ressuscitando a carreira do quinteto de Boston, que estava passando por uma fase de rehab após os excessivos anos de vícios, e logo fazendo a banda iniciar uma nova fase, mais pop, com discos bem-sucedidos em vendas, e a mistura de rap com rock aqui funciona que nem guaraná com açaí - e os fãs de ambos agradecem; na próxima música, o que podemos ter aqui ao ouvirmos é uma espécie de duelo de rappers nos versos de Is It Live, outro grande destaque do repertório do álbum, com uma percussão muito presente no instrumental, com citações de LL Cool J e, obviamente, do próprio pai do funk, Brown, o que só ajuda mais ainda na alquimia; ainda temos aqui outra pedrada que garante o álbum, falo aqui de Perfection - que se trata novamente da ostentação, uma exaltação do status recém-adiquirido pelo dinheiro, com uma batida que serve como um belo acompanhamento musical, obra de Jay mais Russell e Rubin ajudando neste resultado; na faixa seguinte, DMC manda versos que dão um esquenta para o que vêm pela frente - os versos iniciais de Hit It Run mostram novamente o que se vê uma celebração ao status e com citação ao nome do álbum anterior, basicamente uma canção autobiográfica para entender a crescente do sucesso deles; quando o álbum estava sendo concebido, o produtor Rick Rubin tinha em mente a ideia de botar mais guitarras em alguma coisa do álbum, e com a faixa Raising Hell, houve esse desafio de fazer algo bem hard rock numa canção de rap, gravando guitarras numa das mais difíceis canções de serem gravadas, e assim como Walk This Way e outras, uma das pioneiras do crossover rap/rock e também se destacando com mais de 5 minutos, mostrando que vieram do Queens pra fazer a diferença no cenário musical - e não é que deu certo? Já nas próximas músicas, o trio não deixa perder a essência em letras mais zueironas e divertidas, como no caso de You Be Illin', onde citam a famosa rede de comidas de frango KFC, numa batida bem empolgante com uma base que remete a Superfreak de Rick James, mas, cujo principal sampler é AJ Scratch, de Kurtis Blow aqui, uma forte ligação desses nomes mais tradicionais do rap ao entendermos; na sequência, com um beat mais cadenciado e original do gênero, a letra de Dumb Girl pode soar como a história de um cara rico que namora uma mina que o passa para trás em vários momentos, sendo o tipo de namorada que prefere mais o dinheiro dele do que o verdadeiro amor - aqui, ela fica dividida entre uma crítica e um deboche que funciona até; a seguir, a mais curta faixa do álbum que soa como um esquenta, um rap freestyle do DMC reverenciando a mãe e Run nos versos de Son of Byford, e o rap funciona mais do que como uma coisa que passa batido, mas sim como um esquenta do que vem por aí: a última faixa é o recado final que eles deixam nos versos de Proud to Be Black, na qual o grupo se orgulha da sua pele e sua origem, demonstram frustração do sistema como funciona e deixam uma mensagem sobre o futuro, encerrando assim esse belo trabalho do grupo com a melhor mensagem, fazendo uma continuação do célebre manifesto pró-negritude Say It Loud (I'm Black and Proud) de James Brown feita 18 anos deste álbum.
Visto que o destino favoreceria não somente o disco, mas como também o grupo, o próprio Aerosmith, os produtores e o gênero em especial, foi o responsável por levar o gênero aos principais veículos midiáticos de vez - fazendo abrirem as portas para os rappers em todos os veículos de comunicação ligados a música, e até mesmo a própria MTV conseguiu ceder mais espaço para exibição dos clipes nomes futuros como Eric B & Rakim, Salt-N-Peppa, N.W.A, Public Enemy dentre outras, graças ao álbum, o Run-DMC acabou estampando capas de revistas como a Rolling Stone naquele 1986 - já em 2003, a revista cedeu a eles a 123ª posição dos 500 Maiores Álbuns de Todos os Tempos, e é um disco indispensável (CUMÉQUIÉ???) em listas especializadas dos anos 80 e de rap, para ser mais preciso - e ainda chegando à casa dos 3 milhões de discos vendidos. O rap segue vivo, e seus pupilos mantêm esse legado que soa universal, moderno e ainda revolucionário, sem perder o viés social que sempre foi útil nos versos, nas rimas - e a mensagem propagada 33 anos ainda é compreendida por muitos dos manos e das minas. 
Set do disco:
1 - Peter Piper (Joseph "Run" Simmons/Darryll "DMC" McDaniels/Jason "Jam Master Jay" Mizell)
2 - It's Tricky (Joseph "Run" Simmons/Darryll "DMC" McDaniels/Jason "Jam Master Jay" Mizell)
3 - My Adidas (Joseph "Run" Simmons/Darryll "DMC" McDaniels/Jason "Jam Master Jay" Mizell)
4 - Walk This Way (Steven Tyler/Joe Perry)
5 -  Is It Live (Joseph "Run" Simmons/Darryll "DMC" McDaniels/Jason "Jam Master Jay" Mizell)
6 - Perfection (Joseph "Run" Simmons/Darryll "DMC" McDaniels/Jason "Jam Master Jay" Mizell)
7 - Hit It Run (Joseph "Run" Simmons/Darryll "DMC" McDaniels/Jason "Jam Master Jay" Mizell)
8 -  Raising Hell(Joseph "Run" Simmons/Darryll "DMC" McDaniels/Jason "Jam Master Jay" Mizell)
9 - You Be Illin' (Joseph "Run" Simmons/Darryll "DMC" McDaniels/Jason "Jam Master Jay" Mizell)
10 - Dumb Girl (Joseph "Run" Simmons/Darryll "DMC" McDaniels/Jason "Jam Master Jay" Mizell)
11 - Son of Byford (Joseph "Run" Simmons/Darryll "DMC" McDaniels/Jason "Jam Master Jay" Mizell)
12 - Proud to Be Black (Joseph "Run" Simmons/Darryll "DMC" McDaniels/Jason "Jam Master Jay" Mizell)

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