Um disco indispensável: Catch a Fire - Bob Marley & The Wailers (Island Records, 1973)

Houve-se tempos em que o Caribe havia importado para o mundo todo seus ritmos puramente tropicais: o merengue, a bachata, a salsa, mais a rumba e o mambo que invadiram o paraíso latino nos EUA - Miami, e depois invadindo os 4 cantos do planeta Terra, ainda iríamos descobrir do Caribe um gênero forte que também se tornaria universal e importante para o mundo: o reggae. A Jamaica era um território descoberto por Cristóvão Colombo (VAI TER MOMENTO HISTÓRIA SIM!) em 1494 aonde tinha 200 aldeias governadas pelos caciques (chefes da aldeia) e eram descendentes de tribos aruaques e tainos vindo milênios antes de Cristo, estas tribos vindas da América do Sul. Com o domínio dos britânicos - o que resultou-se na fuga dos espanhóis com seus escravos - o país começou a ter uma forte expansão de negros a partir do século XVII, quando já um país colonizado da Inglaterra, começou a se tornar um grande exportador de açúcar - entre 1820 e 1824 produziram mais de 77 mil toneladas - e uma das nações dependentes de escravos, trazendo até mesmo trabalhadores indianos e chineses como servos para a complementar a força de trabalho, e os rumos da história mudariam de vez. Em 1838, após muitas revoltas, o país proclamou a abolição da escravatura, e ao longo dos anos, o grau de autonomia foi crescendo. E cresceu até que em 1958 fez parte de uma nação independente chamada Federação das Índias Ocidentais - na qual estavam ilhas caribenhas de colônia inglesa, em especial Trinidad & Tobago mais Barbados além das Antilhas, Montserrat, Guiana, Honduras Britânicas (hoje Belize), ilhas Cayman, entre outras faziam parte dessa união política. Em 5 de agosto de 1962, a Jamaica declara independência e deixa de fazer parte desta união política, tornando-se um país definitivo, e, como todo país independente, uma trilha sonora já bastava para animar a nação. Os gêneros que faziam mais sucesso desde a época pré-independência eram o calipso e o mento - ambos descenderam estilos totalmente inovadores dentro do país, como no caso do ska, surgido nos anos 1960, quando dois produtores decidiram inovar com a criação dos sistemas de som, os populares soundystems, e estes dois produtores que encabecem essa disputa eram Duke Reid e o lendário Coxsone Dodd, um dos principais nomes do cenário jamaicano como produtor e disc-jockey (o DJ) e levando no sistema de som os temas de Fats Domino e Louis Jordan - e quando o R&B e o jump blues saíram de moda na América, houve-se uma importação massiva destes discos, obrigando os produtores locais a buscarem uma solução e esta foi chamarem músicos locais para criarem suas próprias versões de temas do R&B: com isto, houve-se uma mistura dos gêneros norte-americanos e caribenhos, como o mento jamaicano e o calipso de Trinidad & Tobago - com essas releituras, um novo movimento fervilhava - mas o Primeiro Mundo pouco sabia muito. O ska começou a atrair jovens que largaram suas incertezas para se tornarem astros locais, dentre eles um jovem chamado Robert Nesta Marley - nascido em Nine Mile, uma simples vila da paróquia de St. Ann no dia 6 de fevereiro de 1945 - filho de uma então adolescente Cedella Booker e de um capitão inglês branco chamado Norval Sinclair Marley - com quem teve pouco contato e os deixou, falecendo quando o pequeno Robert tinha apenas 10 anos de idade, e, com a mãe muda-se para a capital Kingston - pois ela casou-se com Toddy Livingstone, que tinha um filho chamado Neville e nasceu a amizade entre ambos, e disso também a paixão pela música os atraiu para o mesmo nicho, construindo guitarras feitas de lata reproduzindo os sucessos que conheciam por minirrádios transsintonizados que captavam Ray Charles, Fats Domino, Brook Benton - um dos seus artistas favoritos - e o conjunto Drifters, que eram populares na Jamaica. A família vivia em Trenchtown, região suburbana da capital jamaicana, e Bob era ridicularizado por ser mulato, não ser muito negro como os outros, e por ter baixa estatura. Com a independência do país, o ska começa a atrair jovens talentosos que eram descobertos pelos produtores - que também eram discotecários e donos de soundsystems, e Bob que já havia largado a escola para se dedicar à música, teve aulas de canto com Joe Higgs, e com Bunny (apelido de Neville) nessas aulas, eles descobriram ali outro parceiro: um rapaz chamado Winston Hubert Macintosh, que depois se converteria em Peter Tosh - pronto! Nascia ali os Wailing Wailers, e Bob grava como artista solo seu primeiro compacto intitulada Judge Not, um pequeno começo sem muita repercussão, mas que valeu a pena.
Tudo mudou de vez quando o trio de jovens chamado Wailing Wailers faz um teste para Coxsone naquele verão de 1963 e gravam o primeiro compacto chamado Simmer Down - Marley, Livingstone e Tosh se tornaram popstars locais, tornando-se artistas exclusivos da Studio One, vindo a gravar acompanhamento musical para diversos nomes do cast. No meio do caminho, uma paixão: ele se apaixona por uma linda moça nascida cubana chamada Alpharita Constantia Anderson, futura parceira de vida e de palcos, se tornou Rita Marley: os dois pombinhos se casaram em 10 de fevereiro de 1966, mas não houve lua-de-mel: Bob viajou para o estado norte-americano do Delaware, onde sua mãe vivia com um novo marido, ficou lá por poucos meses trabalhando como soldador - no período em que esteve morando no Delaware, o imperador etíope Haile Selassie (1892-1975) visto como Jah, uma espécie de Deus para os rastafáris, crentes de uma religião praticada em países do continente africano - o rastafarianismo, na qual inclui o consumo da cannabis sativa, a popular maconha como parte da religião. Volta ao país em outubro daquele mesmo 1966 e reformula os Wailers, começando a mudar suas composições, que antes focava na temática dos rude boys (delinquentes juvenis praticantes de crimes na Jamaica), agora foca em questões espirituais e sociais (ou você sempre achou que ele falava de puxar um baseado?) e isso se tornaria o seu maior legado poético-musical. Mas, aquilo que se tornaria uma forma de pregar os ensinamentos de Jah viraria uma dor de cabeça para Coxsone, provocando um certo conflito com o grupo - e no final dos anos 60 os Wailers abriram o selo Wail'N'Soul - que, fechou as portas rapidamente devido à ingenuidade deles nos negócios, por mais que tivessem conseguido algum sucesso no princípio, a gravadora fechou logo em 1967. Uma pessoa que ajudou muito nesta mudança também foi o produtor Lee "Scratch" Perry, um especialista em renovação dentro da produção na música jamaicana, e uma forte influência no trabalho dos Wailers.  Por volta de 1971, surge um convite do cantor americano Johnny Nash para acompanhá-lo em uma tournée na Suécia - Nash, que gravara dele Stir It Up, estava produzindo a trilha sonora de um filme sueco e Marley assinou com a CBS, gravadora deste cantor americano, e registra um single chamado Reggae on Broadway, gravado em Londres - fora da Jamaica. Mas, o projeto do filme não vingou, os Wailers se viram em maus lençóis e acabou ficando feio o clima - até que, em 1972, ainda em Londres, Bob vai até os estúdios da Island Records procurar o produtor Chris Blackwell - fundador da gravadora e um rapaz jamaicano branco descendente de ingleses, pertencente a uma rica e tradicional família da ilha, abriu a Island no final dos anos 50 e já havia um envolvimento com a cultura local muito antes do Ska, vindo a promover artistas da Jamaica na gravadora, e expandindo o ska, o rocksteady e agora o reggae, mais difeenciado dos dois, com uma levada mais lenta que o ska e com a forte presença do baixo e da bateria nas bases sonoras. Blackwell já sabia da repercussão dele na ilha caribenha, tanto da época dos rudeboys quanto já mais influenciado pela filosofia rastafári, e foi dada a eles uma oferta de confiança, na qual Blackwell deu ao grupo uma oferta de £4000 libras - equivalente a R$20 mil - e ainda deu carta branca para que pudessem ir à Jamaica produzirem o primeiro trabalho pela Island Records, um acerto em cheio nesta parceria. Dito e feito, retornaram ao chão jamaicano e ali começaram a gravar o material do que viria a ser uma das magnum opus do reggae entre maio e outubro de 1972 - em Kingston foram usados os estúdios Randy's, Harry J. e principalmente o Dynamic Sound - a turma de músicos que o acompanhou foi além de Marley nos vocais e guitarra, Peter Tosh na guitarra, piano, órgão e vocais, Bunny nos vocais e percussão, tinha também os irmãos Barrett: Aston "Family Man" no baixo e Carlton na bateria, além de Marcia Griffiths e Rita nos vocais de apoio. Além de Bunny na percussão, Chris Karan mais Willie Pep e Winston Wright participaram da parte rítmica - a produção ficou por conta do próprio Marley com Blackwell. Muitas das canções presentes neste álbum já haviam sido registradas antes, gravadas em estúdios diferentes com músicos diferentes, mas aqui elas ganharam sua real interpretação. Disco pronto, foi só preciso que Marley fosse para Londres que as coisas ficariam um pouco estranha - acrescentou-se overdubs de teclados e guitarra executados por músicos ingleses pra soar mais recheado o trabalho, mesmo assim, tempos depois, foi lançada a versão jamaicana como deveria ter saído sem a adição dos instrumentos numa versão deluxe de Catch a Fire - inicialmente, com uma capa em forma de um isqueiro Zippo, na qual, se abrisse no meio, pareceria um isqueiro de verdade e o disco era pego na parte de "acender" tal objeto, porém, só foram feitas 25 mil cópias - uma raridade esta capa - e foi acrescentada outra, desta vez onde o nome da banda está creditada como Bob Marley & The Wailers, exibindo na foto da capa o reggaestar fumando um baseadão, e na contracapa a imagem do grupo mostrando para o que realmente vieram.
Ao ouvirmos logo de cara o baixo que apresenta para nós Concrete Jungle, que falava das cidades e sua crescente urbanização, ela foi escrita quando Marley mudou-se da sua Jamaica para viver com a mãe no Delaware, desconstruindo a visão de que a América é o lar dos sonhos e esperanças que se pode ter, fala do duro trabalho - isso porque ele passou um período como soldador, e a guitarra tocada por Wayne Perkins - um dos músicos ingleses - ajuda a dar o tom pra canção, assim como os teclados da época e o restante da base (ouçam com atenção o baixo do Robbie Shakespeare); na sequência já temos logo de cara um grande tema que representa no repertório deste disco, fortalecendo este - Slave Driver ainda carrega as características dos reggaes desta fase, arranjos bem elaborados, a presença de órgãos como o Clavinet e o Hammond, e um baixo fortemente ouvido - como é de lei - aqui, Bob traz a narrativa dos tipos que observavam os escravos, tais como os capitães-do-mato, ele lamenta sobre tudo o que seus ancestrais sofreram até a liberdade, pede misericórdia a Deus às almas dos pobres escravos que sofrem - emocionante por demais a letra; não é somente o frontman vindo de Nine Mile que canta aqui, o álbum conta com os momentos de Peter Tosh como vocalista principal em duas faixas - a primeira é 400 Years, já gravada antes, ela traz a narrativa sobre uma rebelião Rastafári trazendo referências bíblicas dos 4 séculos de colonialismo, exílio e escravidão, Tosh aqui clama por liberdade - o arranjo aqui parece uma obra de arte, realmente; para a próxima música, a essência não morre, mas se deixa preservar comosempre - tanto na parte poética quanto na musical, Stop That Train, na qual Tosh fica indeciso e não sabe se está certo ou errado, de que toda sua vida passou ensinando sobre coisas que os outros não entendiam e ainda admite que não achou a felicidade, bem, talvez seja a história de um pregador rastafariano incompreendido com tudo ao seu redor, vai entender - a guitarra presente aqui dá um tom bem ácido que deixe a cara do reggae, e é a sua última como vocalista principal aqui; adiante há  tempo de sobra para mandar mais sonzeira de nível aqui, e Baby We've Got a Date (Rock It Baby) apresenta também um arranjo bem construtivo nas melodias, que contam com o órgão executado por John "Rabbit" Bundrick e os vocais de Rita e Marcia dando um toque a mais nesta, sem esquecer o solo de guitarra slide executado por Wayne Perkins que tem mais a ver com Havaí do que com Jamaica se formos prestar bem atenção ao escutarmos; em seguida, temos aqui o tema que ajudou o disco e o grupo a fazer sucesso mundo afora, quando escutarmos a melodia da guitarra seguido da virada rítmica da bateria e o wahwah, mais o baixo pulsante, é claro que vamos reconhecer logo de cara Stir it Up, com esse wahwah viajandão que ajuda a dar um efeito mais impactante na música e que já fora gravada por Johnny Nash antes de ficar popular, por volta de 1971, e isso ajudou muito, e nos primórdios dos Wailers já havia uma versão diferente da que se tornou conhecida - realmente, um clássico; na próxima canção, outro grande destaque para Kinky Reggae envolvendo uma história que aconteceu ao encontrar um amigo em Picadilly Circus, e vale falar sobre o arranjo marcado pelo piano elétrico e pelo órgão, a guitarra dá o tom preciso numa música que não passa batido aqui; a seguir, temos uma pérola desse álbum que se diferencia do tom dos arranjos sem deixar de ser uma bela canção do repertório - No More Trouble tem um clima mais profundo, talvez pelos coros e a base com um ar sério, mas que não faz feio e na letra o eu-lírico se sente cansado com tantos problemas que têm na vida, e manda um dos emblemas hippies dos anos 60 "Make love not war" (Faça amor, não faça guerra - tradução) uma das tantas mensagens deixadas por Bob em suas canções; e estamos logo no encerramento desta bíblia do reggae, que fica por conta de Midnight Ravers, mantendo toda a energia presente ao longo deste álbum e que fora escrito após Bob ter se aventurado com uma das tantas mulheres - mesmo sendo casado com Rita, e a "frente" baixo e bateria acertam muito aqui também, deixando aquele gostinho de "quero mais" para a gente.
Com este álbum, imediatamente o grupo sai logo em tournée, viajando pelos Estados Unidos, mas não tocando em lugares a nível de ginásios e teatros populares, segundo um depoimento de Bunny no documentário Marley (2012) de Kevin Macdonald, as apresentações eram em clubes mais undergrounds, sem muito luxo, e voltam a Kingston onde terminam o álbum Burnin' que sairia em 19 de outubro, mais de 5 meses depois do lançamento de Catch a Fire, que acabou se tornando um trabalho fortemente cultuado por apreciadores e curiosos afim de conhecer sua obra, faz parte da lista dos 500 Maiores Álbuns de Todos os Tempos, ocupando uma merecidíssima 126ª posição - e em 2001 os álbuns de Marley foram reeditados em CD com uma nova remasterização e encartes com textos e imagens, além das 9 músicas, duas faixas inéditas eram adicionadas com bonus track - High Tide or Low Tide mais All Day All Night aparecem nessa versão como as inéditas que não couberam no LP original e que só vieram a aparecer em CD 28 anos depois. A edição deluxe trazia a original arte da capa, o formato do isqueiro e uma novidade - as duas versões do álbum, a que trazia as faixas da forma gravada em Kingston - não-lançadas, e a versão que todos nós conhecemos - há quem goste também desta versão inédita jamaicana, assim como a que estamos acostumados a ouvir há 45 anos.
Set do disco:
1 - Concrete Jungle (Bob Marley) 
2 - Slave Driver (Bob Marley) 
3 - 400 Years (Peter Tosh)
4 - Stop That Train (Peter Tosh)
5 - Baby We've Got a Date (Rock It Baby) (Bob Marley) 
6 - Stir it Up (Bob Marley) 
7 - Kinky Reggae (Bob Marley) 
8 - No More Trouble (Bob Marley) 
9 - Midnight Ravers (Bob Marley) 
FAIXAS BÔNUS DA EDIÇÃO REMASTERIZADA DE 2001:
10 - High Tide or Low Tide (Bob Marley) 
11 - All Day All Night (Bob Marley) 

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