Um disco indispensável: África Brasil - Jorge Ben (Philips/Phonogram, 1976)

Num momento em que a cultura brasileira continuava a ser amordaçada pela Censura, era impossível segurar a barra e cortar o barato dos diversos artistas que tinham seus produtos culturais para serem compartilhados, ou seus peixes para venderem e o público consumirem. O Brasil daquele 1976 ainda respirava o Ato Institucional nº 5, o pavoroso AI-5, 12 anos de administração militar - Ernesto Geisel era o presidente, e os nossos vizinhos hermanos lá da Argentina sofriam um golpe de estado que colocou o país em uma ditadura administrada por militares, o presidente de lá era Jorge Rafael Videla, e a liberdade de expressão era quase invisível naquele país. Chile ainda vivia os extremos da administração de Pinochet, enquanto no Paraguai a administração de Alfredo Stroessner já durava amargos 22 anos. A música tomava outros rumos, além do rock com bandas de enorme destaque, como Led Zeppelin, Rolling Stones, Pink Floyd, Queen - com o grande êxito do hino Bohemian Rhapsody, havia também o punk rock, com seu estilo que era puro vômito, cru, sujo, agressivo, tendo como as principais bandas Ramones, Sex Pistols e The Clash - estas duas últimas, inglesas, fizeram muito barulho, embora os Pistols tenham gravado um disco apenas. E do outro lado, o glamour, a beleza e o charme da música discothèque, com seus tons que misturavam funk e soul com vozes precisas e arranjos superconstrutivos - Donna Summer, os Bee Gees - através da trilha sonora do filme Os Embalos de Sábado à Noite (Saturday Night Fever - título original, Barry White, KC & The Sunshine Band e os suecos do ABBA com o estouro de Dancing Queen do álbum Arrival (1976), fizeram multidões invadirem as pistas de dança pra se soltarem na noite. No Brasil, o caso não podia ser outro: com 12 anos de administração militar, a solução era usar a arte como forma provocativa e como manifesto contrariando a tudo aquilo que o brasileiro estava vivendo. Foi o ano da megatournée dos Doces Bárbaros - Caetano, Gil, Gal e Maria Bethânia se juntaram nos palcos para fazerem um mágico e inesquecível concerto pelo Brasil afora - porém, a prisão do cantor Gilberto Gil por porte de maconha acabou interrompendo a alegria daqueles baianos. Já o próprio Chico Buarque não tinha muito do que reclamar, ou ainda tinha, por mais que a censura pegasse um pouco no seu pé, ele tinha acabado de ganhar um prêmio pela peça musical Gota D'Água, mas mal pode comparecer por causa de um boicote - mesmo assim, conseguiu achar tempo para lançar aquele que se tornou seu melhor trabalho intitulado Meus Caros Amigos, na qual juntou canções feitas para teatro e cinema com algumas novidades, dentre elas Olhos Nos Olhos, O Que Será (À Flor da Terra) com a participação de Milton Nascimento, a carta para o amigo Augusto Boal que é Meu Caro Amigo, além de A Noiva da Cidade, Basta Um Dia, Vai Trabalhar Vagabundo dentre outras. Roberto cantava naquele ano coisas como os botões da blusa e questionava se tudo que ele gostava era "ilegal, imoral ou engorda" ao mesmo tempo em que animava os finais de ano com seu tradicional especial exibido na Globo - era o terceiro realizado. A nova invasão nordestina fazia um tremendo sucesso, depois do boom dos Novos Baianos, o Nordeste exportava para o resto do Brasil o alagoano Hermeto Pascoal com seu jazz-cabeça, os cearenses Belchior, Ednardo e Fagner, os paraibanos Zé Ramalho e Elba, os pernambucanos Alceu Valença e Geraldo Azevedo - a onda dos "violétricos" abriu a mente e reconectou o Nordeste enraizado nas canções de Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Gordurinha, Marinês, Genival Lacerda (aquele do "de quem é esse jegue?") ao resto do Brasil. A ex-mutante Rita Lee fazia sucesso, vendia disco - seu Fruto Proibido lançado em 1975 a tirou do underground definitivo e a colocou como uma artista mainstream, e no meio do sucessor Entradas e Bandeiras, a poucos dias de seu lançamento e grávida do primeiro filho (Beto), vai em cana por porte de maconha, recebe a visita de Elis Regina - que estava em ascensão com seu Falso Brilhante, um dos seus maiores discos de sucesso que tinha o sucesso Como Nossos Pais, de um cearense aí chamado Belchior, e que ficou por mais de um ano em cartaz com esse espetáculo do mesmo nome do álbum. O nosso mestre do soul Tim Maia recuperava a moral depois de uma aventura "limpa" e quase decadente com a fase Racional, que rendeu um belo álbum místico, religioso e viajante ao mesmo tempo.
Agora, quem estava mesmo com a corda toda era o próprio Jorge Ben, com 13 anos de gravadora Philips, milhões de discos vendidos e diversos sucessos gravados por diversos artistas, e fazendo sucesso inclusive no exterior, com shows lotados e sempre aplaudido por onde passava. Com a sua excelente viagem sonora na qual trazia letras brilhantes falando sobre alquimia, Hermes Trismegisto, e tudo mais, A Tábua de Esmeralda se tornou o seu maior legado dentro da história da música popular brasileira, mantendo-se no mesmo patamar de outros clássicos como Samba Esquema Novo (1963), Sacundin Ben Samba (1964), Jorge Ben (1969), Força Bruta (1970) e Ben (1972) - os seus maiores trabalhos ao longo da carreira. Já em 1975, ele e Gilberto Gil realizam uma espécie de jam session gravada no ato que rendeu um belo trabalho, parceria que surgiu após ambos darem uma canja num evento que André Midani realizou para o empresário e produtor Robert Stigwood e para o guitarrista Eric Clapton que estavam de passagem no Brasil apenas no Rio de Janeiro - dessa canja nasceu Gil & Jorge: Ogum Xangô, um trabalho experimental que conectava os dois no estúdio ao lado do baixista Wagner e do percussionista Djalma Correa com uma versão longa de Taj Mahal e músicas inéditas como Jurubeba, Meu Glorioso São Cristóvão e Filhos de Gandhi - o grande destaque do álbum. Depois, ambos seguiram com seus materiais, Gil redescobriu a fundo o Nordeste com a sua Refazenda e Jorge lançava no final de 1975 o álbum Solta o Pavão, um disco que mantinha toda a estética do Tábua - trazendo canções como a brilhante O Rei Chegou, Viva o Rei, além de Velhos, Flores, Criancinhas e Cachorros, a futebolística Zagueiro, a divertida Cuidado Com o Bulldog (bulldog seriam os militares?) e a religiosa Jorge de Capadócia, que se tornou seu maior clássico, gravado futuramente por Caetano Veloso, Fernanda Abreu, Racionais MC's dentre outros. Ele já começara a aposentar o bom e velho violão, pois, às vezes, fazia seu concerto e não ouvia muito, e o que se ouvia era um fio de acorde, e ele decidiu trocar o violão e assumir a guitarra elétrica, coisa que ele já curtia desde os anos 1960, e ele já estava acompanhado por uma super banda que levava o nome Admiral Jorge V - com os futuros A Cor do Som, o baixista Dadi Carvalho e o baterista Gustavo Schroeter mais o percussionista Joãozinho e o pianista João Vandaluz, e esta banda já o acompanhava em Solta o Pavão, uma sonoridade que os conectava nos palcos e no estúdio. Este mesmo conjunto musical Admiral Jorge V o acompanharia durante dois anos, e Jorge havia criado novas canções para um material novo que renderia e o manteria como grande referência para a história da MPB, e este álbum tinha desde referências à alquimia, recriações de temas já gravados e inclusive homenagens a um certo Zico que fazia um sucesso no Flamengo e se tornaria o ídolo maior do clube em poucos anos.
Desse resumo eu falo sobre África Brasil, seu décimo-terceiro álbum de estúdio de sua carreira, o décimo-quarto se juntarmos o projeto com Gil e 16° com os registros ao vivo - o primeiro é o raríssimo Jorge Ben On Stage, lançado em 1972 somente no Japão e o último trabalho com o Trio Mocotó, e o Jorge Ben À L'Olympia, de 1975 na qual mostrava o Babulina acompanhado já de sua banda na lendária casa de espetáculos francesa. Com a produção genial de Marco Mazzola, um dos grandes nomes nacionais da produção musical, além da presença da Admiral Jorge V, há uma forte presença de percussão, pois Schoreter e Joãozinho contam com a ajuda de nomes como Djalma Correa, os irmãos Contensini - Hermes e Ariovaldo, e o super-time de percussionistas ainda contava com Canegal, Doutor, Wilson das Neves, Luna, Neném e a presença do baterista Pedrinho, do tecladista José Roberto Bertrami mais os metais formado por Darcy e Márcio Montarroyos no trompete, Oberdan Magalhães no sax e Bigorna no saxofone e flauta, o coral tinha também Regina, Evinha, Marisa, Claudinha e Waldyr - a arregimentação das cordas ficou por conta de Bertrami. Abrindo o álbum logo de cara, temos um power chord de guitarra aonde Jorge já mostra sua mudança repentina para o instrumento que a ala purista da MPB abominava, e a virada de bateria dá a deixa para ele cantar os versos de Ponta de Lança Africano (Umbabarauma), a história de um jogador da África e que surgiu enquanto Jorge estava em tournée com a Admiral Jorge V na França e durante o intervalo acompanhou uma partida de futebol onde estava um jogador chamado Babaraum vestindo a camisa 10, e isso rendeu o clássico que abre esta maravilha de disco, com um toque puramente funky marcado pela percussão e pela guitarra e os vocais dando um ar cristalino nos arranjos, a goleada foi de placa, literalmente; na sequência, o nosso mestre do suingue emenda uma canção envolvendo o responsável pelo Tratado Hermético, o lendário faraó Hermes Trismegisto, aquele que com a ponta de diamante escreveu em uma lâmina de esmeralda o que se tornou a tábua de esmeralda - sim, a mesma que levou o nome do lendário álbum de 1974, a temática da alquimia volta a ser abordada em Hermes Trismegisto Escreveu, que pode ser também uma releitura da faixa Hermes Trismegisto e Sua Celeste Tábua de Esmeralda, com mais groove e a sensação de que Jorge está sendo acompanhado por músicos da Motown, porque, pela levada de soul que nos remete ao som da gravadora de Detroit - e que balanço! Na terceira música, a energia e o groove ainda rola solta na brilhante O Filósofo, onde ele conta a história de um tipo que chegou descontraído e filosofando num tom de voz angelical, falando sobre como o belo pode ser simples e o simples pode ser belo, e, no final, retribuía sua atenção distribuindo rosas que colhia no ar - simplesmente uma verdadeira pérola da poesia jorgebenigna; enquanto isso na faixa seguinte, ele já manda a sua célebre frase "salve simpatia" e atraca de vez com sua guitarra em Meus Filhos, Meu Tesouro contando sobre o que seus rebentos querem ser - Arthur Miró quer ser jogador de futebol, Anabela Gorda quer se tornar dona de casa atuante ou esposa de milionário, e Jesus Correia quer ser tesoureiro-presidente ou liberal como o paizão - que se gaba dos seus "tri-gênios", o grande destaque fica merecidamente para a percussão e também para o baixo enérgico de Dadi, que não faz feio em cada acorde tocado; e não pára por aqui: ele manda ver em O Plebeu, onde também temos a forte presença do Dadi arrasando no baixo e um riff de guitarra que marca a gente de cara; em seguida, uma levada rítmica mais um power chord de guitarra e o ronco da cuíca davam o brilho inicial da belíssima Taj Mahal, gravada primeiro no álbum Ben (1972), e aqui na versão do África Brasil podemos concluir que aqui é mais balanço, mais suingue e a cara da disco music, misturado com percussão brasileira - foi esta versão que teria levado um certo Rod Stewart a "plagiar" a melodia principal para sua Do Ya Think I'm Sexy? dois anos depois, após ouvir a canção do mestre do groove brasileiro em algum rolê carnavalesco; naquele mesmo 1976 ele desenvolveu uma canção sobre uma mulher negra que se envolvia com um comendador português e começou a ser uma livre escrava que tinha seus luxos - foi preciso ler a sinopse ou o roteiro inteiro do filme desta personagem que existira de verdade e transformá-la em uma das músicas presentes do longa-metragem Xica da Silva, dirigido por Cacá Diegues e cujo tema de Jorge aqui leva o nome desta, que, de cara, nos traz uma brilhante introdução marcada pelo baixo elétrico de Dadi (sempre ele!), e a cuíca se destacando muito, nada passando batido - uma bela biografia musicada por quem manja mesmo; a próxima faixa carrega elementos rítmicos da música africana de raiz, que formentam a alquimia sonora por trás de A História de Jorge, trazendo na narrativa um garoto que sonhava em voar, na parte musical podemos dizer que os metais e os sintetizadores não fazem feio e pode ser considerado um dos melhores arranjos desse disco, nada mal; como todos nós sabemos, o futebol e o próprio Flamengo são as maiores paixões do nosso pai do samba-soul, em Camisa 10 da Gávea, se entende que o homenageado do clube rubro-negro era um tal de Arthur Antunes Coimbra, que muito de nós conhecemos realmente por Zico, reverenciado ao longo da música que traz um arranjo que mistura sons afro-latinos e não erra feio de jeito nenhum aqui; na sequência, um tema bem marcado pela velocidade rítmica e todo um esforço pra não decepcionarem em Cavaleiro do Cavalo Imaculado, possivelmente sobre São Jorge, seu santo, a percussão marcada como se fosse ritmo carnavalesco faz parecer um speed-samba, e nada de errado se encontra no arranjo, é como se fôssemos ouvir uma jam session entre a banda e os percussionistas invocando um som à la Santana, que funciona; para terminar esta obra de arte concebida pelo nosso rei do suingue, temos um funk-rock de responsa pra fechar de vez, uma nova releitura de Zumbi (1974) com o nome de África Brasil, o ponto de chegada ao fim dessa viagem sonora que busca as origems dos nossos ancestrais afrodescendentes que chegaram aqui no tempo do Brasil colonial, e diferente da versão presente em A Tábua de Esmeralda, o nosso soulman grita como um hino do movimento negro exaltando Zumbi dos Palmares, líder de uma resistência da época - e o acerto foi em cheio, mostrando a grandeza do Babulina do Rio Comprido que resiste ao tempo.
Enfim, não há muitas palavras para resumir essa magnum opus que segue a ser cultuada ao longo dos anos por diversos artistas da MPB, por críticos e fãs da sua obra, é definitivamente um discaço da coisa toda! Após este álbum, ele gravou um material para o mercado internacional, e ali havia muitos de seus temas que foram regravados e três temas inéditas, como Jesus de Praga, My Lady e Georgia foram as novidades - com Tropical, é certo que ele fecha de vez um ciclo de 14 anos na Philips e começa uma nova fase, a começar pela mudança do nome de sua banda, de Admiral Jorge V para Banda do Zé Pretinho, e no mesmo 1977 assinava com a Som Livre por onde ficaria durante 11 anos, mas aí já é uma outra história. O álbum recebeu em 2002 uma remasterização digna de fazer colecionadores orgulhosos da obra, juntamente dos 3 primeiros trabalhos dele, dos anos de 1963 e 64 numa série dedicada ao soul brasileiro coordenada pelo ex-titã Charles Gavin para a Universal Music - detentora até hoje do acervo da Phonogram. Em 2007 foi feita uma lista importante pela revista Rolling Stone na qual definiam os 100 Melhores Álbuns de Música Brasileira, e adivinhem quem estava lá: África Brasil, sim! O álbum conseguiu ostentar a sua merecidíssima 67ª posição, assim como seus outros trabalhos, como no caso de Samba Esquema Novo figurando em 15º lugar e A Tábua de Esmeralda com um honrado 6º lugar - não tem nada a reclamar. Em 2005, o álbum teve as honrarias dignas de um clássico universal da música ao ser incluído na famosa lista organizada pelo jornalista Robert Dimery, a dos 1001 Discos Para Ouvir Antes de Morrer, que, segundo a definição no livro, este trabalho é uma espécie de manifesto do soul carioca, e ainda o compara a nomes de peso da música afroamericana como os próprios James Brown e Sly Stone - é, confrades e confreiras, né brinquedo não!
Set do disco:
1 - Ponta de Lança Africano (Umbabarauma) (Jorge Ben)
2 - Hermes Trismegisto Escreveu (Jorge Ben)
3 - O Filósofo (Jorge Ben)
4 - Meus Filhos, Meu Tesouro (Jorge Ben)
5 - O Plebeu (Jorge Ben)
6 - Taj Mahal (Jorge Ben)
7 - Xica da Silva (Jorge Ben)
8 - A História de Jorge (Jorge Ben)
9 - Camisa 10 da Gávea (Jorge Ben)
10 - Cavaleiro do Cavalo Imaculado (Jorge Ben)
11 - África Brasil (Zumbi) (Jorge Ben)

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