Um disco indispensável: Cabeça Dinossauro - Titãs (WEA Music, 1986)

Estamos em 1985. O Brasil iniciava uma nova fase após duas décadas de regime/ditadura militar, que acabou se tornando esta que estamos vivendo - a Nova República (que, vamos confessar, de nova já não tem quase nada) e seu lento processo de redemocratização marcado pela vitória do presidente que não tomou posse - Tancredo Neves foi o último presidente a ser eleito pelo colégio eleitoral - aquele que o pessoal do Congresso decidia ao invés do povo. Ele ficou enfermo, e veio a falecer no dia 21 de abril de 1985, deixando o país emocionado com sua despedida - o Brasil inteiro parou para dizer adeus ao homem que parecia trazer esperança. Com isso, também iniciava o processo da nova Constituição, que só foi apresentada em 5 de outubro de 1988, e quem assumiria o cargo de Tancredo seria seu vice, o maranhense José Sarney, e com ele a situação econômica iria deixar o Brasil quase no buraco (se hoje estamos a caminho de um, imagina há mais de 3 décadas atrás), e com este bigodudo veio o congelamento de preços mais o Plano Cruzado e os fiscais de preço. Resumindo: o Brasil, com o fim da administração dos militares, tendia a não ir para a frente e se perder no rumo. Mas, em tempos de crises, o que estava deixando o brasileiro esquecer a maré baixa era o som da juventude, o rock que florescia a partir de 1982, estava sendo um propagador de novas mensagens e ideais para aqueles jovens que ficaram um pouco cansados de MPB e queriam seguir as cartilhas ditadas no mundo todo e por bandas como Dire Straits, Bon Jovi, Iron Maiden, B52s e cantores como Michael Jackson, Madonna e Prince dentre outros. No centro de tudo que acontecia, a Hollywood tropical - assim vista a cidade Rio de Janeiro - tinha seus representantes, a Blitz, os Paralamas do Sucesso, Kid Abelha (usavam ainda o & Os Abóboras Selvagens), Marina Lima (o sobrenome só acrescentou ao nome artístico nos anos 90), o polêmico Lobão, o pessoal do João Penca & Seus Miquinhos Amestrados mais o pessoal do Sangue da Cidade e também o Barão Vermelho, que contava com o jovem Cazuza, poeta expoente da geração 80. São Paulo, a abençoada Terra da Garoa, contava com diversos nomes, que tinham uma salada de influências sonoras, do punk à vanguarda e do hard rock ao new wave, a começar pela galera do punk: Lixomania, Olho Seco, Cólera, Resto de Nada, 365, Garotos Podres, Inocentes e também os Ratos de Porão - que começaram a misturar hardcore e thrash metal, fazendo o crossover no final da década e lançando LPs excelentes, mas também bandas como Ultraje a Rigor, Ira!, Mercenárias, o RPM e também os Titãs. Em Brasília, eram nomes como Legião Urbana, Capital Inicial e Plebe Rude que pipocavam no cenário, a Bahia tinha como seu grande representante a Camisa de Vênus e no Rio Grande do Sul tinham também nomes de peso como De Falla, Garotos da Rua, Replicantes e também os Engenheiros do Hawaii, uma das principais bandas do cenário roqueiro sulista. Mas, vamos focar em uma das principais bandas da geração 80, os paulistas dos Titãs, que surgiu do encontro de alguns alunos do Colégio Equipe, inicialmente um cursinho pré-vestibular em São Paulo nos anos 70, mas depois uma escola aonde tinha shows organizados por Serginho Groisman, futuro apresentador televisivo e nestes shows vinham nomes como Alceu Valença, Luiz Melodia, Gilberto Gil, Clementina de Jesus - e ainda nos meados dos 70, surgiu o Trio Mamão, com Marcelo Fromer, Tony Bellotto (único que não cursava no Equipe) e Branco Mello, enquanto outros estudantes como Nando Reis formava parte da banda Os Camarões, Arnaldo Antunes e Paulo Miklos estavam envolvidos com projetos como a Banda Performática de Aguilar e também o Sossega Leão, na qual também fazia parte André Jung, o baterista. A banda nasceu como Titãs do Iê-Iê e depois disso, nunca mais pararam - com a entrada de Ciro Pessoa nesse mix e já com Sérgio Britto, havia revezamento de instrumentos e era uma coisa muito estranha uma banda com mais de 6 pessoas - e de cara fizeram sua primeira apresentação como batismo definitivo em outubro de 1981 na Biblioteca Mário de Andrade, e dali em diante outros palcos como o Teatro Lira Paulistana abrigariam essas 9 cabeças.
Em 1982 a Blitz com Evandro Mesquita e Fernanda Abreu no grupo, estourava com o hit do momento que abriu portas para o cenário roqueiro no país - logo a pegajosa Você Não Soube Me Amar e isso fez com que as gravadoras ficassem com vontade de levar bandas semelhantes para: a) tocar no rádio; b) ganhar destaque midiátco; c) se apresentar no Chacrinha e receber disco de ouro e/ou platina, diamante; d) todas as opções acima. Pois é, o foco dos executivos do mercado fonográfico tupiniquim agora estava nesse rock que lembrava um pouco a Jovem Guarda, um pouco o New Wave que estava em voga no início daquela década, surgem várias bandas ao interesse das gravadoras, e a WEA Music que contava com o chefão André Midani recrutou dois produtores para descobrirem o que há de novo: o ex-mutante Liminha no Rio e quem ficava de caçar novidades em Sampa era o produtor Pena Schmidt, que já havia trabalhado com Walter Franco, e Pena levou ali 3 bandas interessantes, Magazine (com o saudoso Kid Vinil), Ultraje a Rigor e Azul 29. Depois disso, a sorte bateu na porta dos Titãs, que contavam inicialmente com Ciro até deixar a banda em 1984, quando decide tocar outros projetos e a banda virou um octeto - quase uma big band! Ao assinarem o contrato, a banda já estava com um repertório quase pronto - e ao gravarem nos horários mais difíceis de um artista iniciante, ora de madrugada, ora de dia, no estúdio Áudio Patrulha, e uma música acabou ficando de fora, a onipresente no repertório dos shows: Bichos Escrotos, pelos termos usados na letra, o veto da banda era necessário até a forte censura acabar. Mesmo assim, em agosto aparecia o álbum Titãs (agora sem o Iê-Iê), e os oito já causavam e chamavam a atenção dos críticos com seu visual ousado e totalmente oitentista, coreografias e as performances televisivas do hit Sonífera Ilha em quase todos os programas de TV - e a banda alcançaria o estrelato de vez, apesar de uma vendagem mínima para uma banda que surgiu e já deu grandes saltos. No meio desse estouro e do início da euforia titânica, sai André Jung - que se junta ao Ira! - e entra Charles Gavin, à época, ensaiando com o RPM, e permanecendo com os Titãs até o ano de 2010 quando deixa para cuidar de oturos projetos. Mesmo assim, a banda tendia a se manter na estética new wave com toques de influências de synthpop entre outros, a banda não desistiu e lançou o segundo álbum intitulado Televisão, produzido por Lulu Santos - ícone do rock em alta na época - e cuja estética era com que cada música fosse uma emissora de televisão. Com algumas músicas que prometiam ser grandes hits e que, possivelmente, alavancariam a carreira, como no caso de Insensível, Não Vou Me Adaptar e algumas que quase ficaram obscuras pelo público,como no caso de Pra Dizer Adeus - que só estourou mesmo com uma versão acústica gravada em 1997 - mas aí já é uma outra história. Apesar dos pesares, com o segundo disco quase esquecido pelo público, mas ainda tendo mídia, a banda deixou de virar manchete dos cadernos de cultura para aparecerem nas páginas de polícia: o motivo? Em novembro de 1985, o vocalista Arnaldo Antunes e o guitarrista Tony Bellotto acabaram sendo presos por porte de heroína, e isso acabou custando muito para a banda: ao mesmo tempo, ajudou eles a terem uma visão diferente do som que estavam fazendo.
A banda precisava fazer algo diferente em seu terceiro disco, e muito além daquela estética muito clichê de new wave: é claro que a forte presença do punk já era notável em Massacre, a música que encerrava Televisão com muita agressividade sonora, agora o momento era de demonstrar raiva e muito ódio. Após essa maré baixa, a banda juntou material suficiente para gravarem em dois dias uma demo com o repertório do que acabaria convertendo-se em Cabeça Dinossauro, desta vez, não produzido por um guitar hero, mas sim pelo ex-mutante, baixista e diretor artístico Liminha, que trabalhava desde meados dos anos 70 como produtor acompanhando a banda Black Rio, Gilberto Gil, Lulu, Kid Abelha, e boa parte das bandas que estouravam naquele momento. Com ele, os 8 ficaram durante o período de março e abril daquele 1986 no Rio de Janeiro no estúdio Nas Nuvens - o estúdio da moda 80 no rock brasileiro, com o engenheiro Vitor Farias e Pena Schmidt - o mesmo produtor de seu 1º LP. Apareceu em junho nas lojas de discos do Brasil inteiro o tal álbum do então octeto, com o nome de Cabeça Dinossauro, a capa estampava um retrato do pintor italiano do movimento renascentista Leonardo Da Vinci (1452-1519), intitulado Expressão de Um Homem Urrando, e na contracapa é um retrato do mesmo, só que com o nome de Cabeça Grotesca, e na capa interna gatefold, o retrato dos oito em preto e branco, no meio a lista de faixas e na metade desta parte as letras. Para começarmos a falarmos sobre o álbum, vamos logo à primeira música, marcada por um arpeggio de sintetizador, com um rimo baseado nas músicas tribais do Xingu (em um cerimonial para afugentar os maus espíritos), surgida inicialmente quando Paulo Miklos mostrou uma fita e soltou do nada esse termo que se converteu no tema que abre este LP, com uma forte presença rítmica que lembre essa coisa voltada as raízes indígenas com Branco Mello soltando os versos "cabeça dinossauro, pança de mamute, espirito de porco" fechando com a bateria matadora de Gavin bem marcada; na sequência temos uma pérola que marca o álbum, da autoria de Britto com Fromer - estamos falando de AA UU, que manda bala total na sensação de viver de tanta coisa que vive e sente, muito mais hard e aqui a sonoridade é puro rock mesmo ao ouvir; na sequência temos um golpe pesado nos nossos ouvidos, escrita pelo próprio Nando Reis, a crítica Igreja, uma música na qual ele se coloca contra a religião "Eu não gosto de padre/Eu não gosto de madre/Eu não gosto de frei/Eu não gosto de bispo/Eu não gosto de Cristo/Eu não digo amém" como uma afronta à maior autoridade religiosa do mundo - como se fosse uma confissão de quem não vai com a cara da mesma que levantou a bandeira pró-regime/ditadura militar nos primeiros anos; mais adiante, um tema que ajuda muito a complementar essa dose extrema de letras críticas é um desafio ao sistema policial por Bellotto e cantada por Britto em Polícia - curta, rápida e direta sem muita enrolação, como eles acabam fazendo no restante das canções deste álbum; logo na próxima música, o momento de Charles Gavin distribuir suas raivas e desgostos, numa canção antes chamada A Lei Que Eu Não Queria - se tornou em Estado Violência, que mostra ainda esse legado do sistema bruto deixado pelos militares, um baixo bem envolvente e um tecladinho bem marcado ao longo da música e a bateria dá um toque bem lento do punk, pero no mucho e termina com ritmo de marcha militar; logo em seguida temos a mais curta música do álbum - 37 segundos!! - intitulada A Face do Destruidor, que dá esse gosto mais metal mesmo com Miklos puxando versos num estilo rap mais acelerado (Rap God do próprio Eminem, alguém?) e já vai dando a deixa para a música seguinte - aí temos já Porrada, com uma letra que não deixa perder esse estilo cru de cantar e tocar, algo mais duro, direto: uma letra dizendo que todos os mais certinhos merecem um pouco de porrada, nem que seja do Carlos Maçaranduba (vou dar Porrada!) e ajuda muito a captar qual é a mensagem deles; na próxima música, temos um Branco Mello esbravejando a plenos pulmões o seguinte: Tô Cansado! E bota cansdo nisso, é o lamento de alguém de saco cheio das coisas da vida, e pede um descanso à mente, fechando assim o lado A desta obra de arte.
O lado B desse disco traz a música mais conhecida do repertório e escrita ainda em 1982, lá nos primeiros anos da banda - é claro que estamos nos referindo a Bichos Escrotos, que por pouco entra no primeiro disco, mas tiveram de esperar mais uns anos até acabar a administração militar: a música foi lançada, porém, sofreu o veto da censura e sua execução nas rádios e na televisão foi proibida - mas acabou sendo uma das mais pedidas nas rádios, e, por mais que tentassem achar um jeito de censurar o verso "vão se foder" e tocasse não-censurada, pagava multa e não deu outra: um hit sem parecer totalmente comercial demais; na sequência, a banda apresenta um reggae mais balançado, e Nando conta um pouco dessa onda de convívio rotineiro em Família, que acaba agradando a todos, mesmo que soe como uma visão desconstrutiva deste tal convívio e desunião familiar; em seguida, uma música ainda dos primeiros anos, uma crítica ao comportamento do ser humano e sua (pouca?) evolução ou sua regressão ao comportamento do tipo homem de Neandertal, e essa música que é Homem Primata ajudou o grupo a estar entre as bandas mais ouvidas de 1986 e converteu a música em uma das maiores do nosso rock e que é entoada por "desde os primórdios até hoje em dia..."; no meio desse caos econômico que o Brasil estava vivenciando, os fiscais do Sarney já citados e o Plano Cruzado, a banda decide colocar sua visão disso tudo através da faixa Dívidas, com uma levada bem variada de ska e de punk que ajuda a manter totalmente essa linguagem titânica da música; para encerrar este disco, nós temos aqui também a faixa O Quê, um funk-rock sintetizado bem divertido e até dançante, com uma bateria eletrônica programada e fechando o álbum bem no estilo anos 80, chega a ser até um antecedente do funk carioca e do hip hop só de notarmos a pegada dos sintetizadores e do ritmo programado - segundo uma matéria na Discoteca Básica do site Projeto Autobahn, dedicado aos anos 80, esta foi uma música que deu muito trabalho pra fazer esta sequência rítmica, e teve seus arranjos modificados em estúdio, aqui Liminha tem participação decisiva na composição sonora: além de programar a bateria, criou uma linha de baixa, tocou guitarra e deixou a banda fazendo uma jam session quase interminável por dois dias até chegarem no resultado - isso, segundo Britto em entrevista à Folha de S. Paulo. Bom, o resultado foi um sucesso tremendo ao longo dos meses, e uma aposta fez com que Tony Bellotto pagasse um whisky a Branco Mello caso passasse das 100 mil cópias - ou seja, o álbum foi o primeiro disco de ouro na carreira da banda - atualmente bateu a casa de mais de 700 mil cópias com o tempo. E de cara, foi escolhido como o melhor disco nacional de pop/rock 11 anos depois pela revista ShowBizz, e se fizermos qualquer lista de melhores álbuns de rock feito no Brasil, Cabeça não pode faltar e pode estar nas cinco ou dez primeiras posições - podem confirmar este fato! Além do mais, a banda conseguiu fazer shows apresentando essa pérola até o final de 1987, quando eles já tinham o seu sucessor pronto: Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas, do mesmo nível poético-musical. Em 2012 a banda celebrou 3 décadas de história e estrada e ainda, para a alegria de muitos, eles fizeram concertos tocando a magnum opus na íntegra, rendendo uma versão ao vivo lançada em CD e DVD - mesmo sem a presença de Arnaldo e Nando já em carreiras solo, Charles em outros projetos, como o programa O Som do Vinil, no Canal Brasil - seu programa está no ar desde 2007, e sem Marcelo Fromer, que faleceu após ser atropelado por uma motocicleta em 13 de junho de 2001. Mas o legado deste disco ainda soa eterno e atual, basta notar a edição especial de 2012 que contou com o registro das demos da época e uma faixa inédita, Vai Pra Rua, que ficou de fora do repertório, sem esquecer que a Rolling Stone elegeu em 2007 na lista dos 100 Melhores Álbuns de Música Brasileira, estampando ali a 19ª posição - merecido, assim também como um clássico indispensável. 
Set do disco:
1 - Cabeça Dinossauro (Arnaldo Antunes/Branco Mello/Paulo Miklos) 
2 - AA UU (Marcelo Fromer/Sérgio Britto)
3 - Igreja (Nando Reis)
4 - Polícia (Tony Bellotto)
5 - Estado Violência (Charles Gavin)
6 - A Face do Destruidor (Arnaldo Antunes/Paulo Miklos) 
7 - Porrada (Arnaldo Antunes/Paulo Miklos) 
8 - Tô Cansado (Arnaldo Antunes/Branco Mello)
9 - Bichos Escrotos (Arnaldo Antunes/Nando Reis/Sérgio Britto)
10 - Família (Arnaldo Antunes/Tony Bellotto)
11 - Homem Primata (Ciro Pessoa/Marcelo Fromer/Nando Reis/Sérgio Britto)
12  -Dívidas (Arnaldo Antunes/Branco Mello)
13 - O Quê (Arnaldo Antunes)

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