Um disco indispensável: Gal - Gal Costa (Philips/CBD Phonogram, 1969)

Não bastasse o grande sucesso que tinha sido naquele 1968 através de sua apresentação no IV Festival de Música Popular Brasileira com a música Divino, Maravilhoso - composta por Gil e Caetano, o Brasil não se resistiria mais ainda pelo encanto, pelo charme e pela voz de Maria da Graça Costa Penha Burgos, mas se quiser, chame-a mesmo de Gal Costa, como nós a conhecemos até hoje, deixou até a TV Record impressionada com seu estilo. A performance de um dos hinos do tropicalismo naquele festival, o último com guitarras elétricas e a histeria do movmento que conseguiu abalar as estruturas das alas mais conservadoras da música popular brasileira conseguiu ser mais um capítulo daquele épico ano, onde no mundo tudo parecia soar em um mesmo período do ano: protestos estudantis contra os governos, a fervilhança dos movimentos sociais norte-americanos contra a Guerra do Vietnã fizeram a gente esperar mais uns seis anos para que o fim fosse declarado. Bandas mundiais já aclamadas como os Rolling Stones conseguiram repetir fórmulas onde seus discos fizessem sucesso, e prova disto estava em Beggar's Banquet, que nos presenteou Sympathy For the Devil, Street Fighting Man e outros clássicos da banda. O pessoal do Velvet Underground tentou ir além no seu disco seguinte sem a guia de Andy Warhol e sem a doce voz de Nico em seu segundo disco intitulado White Light/White Heat mas rendeu mesmo assim momentos como a porra-louquice de Sister Ray e uma barulheira de 17 minutos que parece não ter fim nunca. O grande ícone e instrumentista do momento Jimi Hendrix decidira seguir com sua busca pela sua forma de eletrificar o blues e fazer nossos ouvidos pirarem e conseguiu em Electric Ladyland, um de seus maiores legados na história da música. E foi em novembro que nos surpreendemos com um disco cuja capa e contracapa não havia nada a não ser um branco e na capa letras transparentes com o nome The Beatles, era o clássico e original Álbum Branco, que se converteria em um dos melhores álbuns duplos de todos os tempos. Um ex-integrante da Buffalo Springfield lançava seu disco de estreia em pleno aniversário e este era Neil Young, que faria outros materiais excelentes em decorrer de sua carreira. 
Ao lado de Caetano em 1968, antes de que o guru tropicalista
partisse para um exílio no Velho Continente.
No nosso território verde-amarelo, os Cem Mil foram às ruas do Rio de Janeiro em busca do fim do regime militar e não deu pé depois disso. Em dezembro, durante toda a euforia do tropicalismo e o auge da psicodelia, o presidente Arthur da Costa e Silva anunciava o AI-5, que deixaria os dias mais escuros e distantes da esperança do país voltar a democracia. O fenômeno Jovem Guarda encerrava suas atividades na televisão, mas isso só ajudou mais a projeção de Roberto Carlos, que foi cantar no tradicional Festival de Sanremo, em meio a tantos artistas italianos, se consagrou como a voz brasileira de Canzone Per Te, composta por Sergio Endrigo e pelo seu xará Bardotti, que viria a contribuir com Chico Buarque mais adiante. Chico ainda deixou pérolas em seu terceiro disco de sua carreira, assim como a rapaziada dos Mutantes já aprontava em seu disco de estreia. Gil e Caetano já haviam conquistado o público em festivais e discos, mas nas eliminatórias do III FIC foi testemunhado o episódio mais louco que Caetano viveu, e foi quando o baiano surtou e discursou como uma autoridade, pedindo a sua desclassificação e a de Gil naquela eliminatória. Sobrou para Os Mutantes representarem a ala tropicalista em Caminhante Noturno, sabendo que haveria uma concorrência mais pesada que no festival da Record e eles foram bem ovacionados. E naquele mesmo III FIC, se o povo torcia por Vandré cantando "Vem, vamos embora que esperar não é saber..." o povo se viu obrigado a aceitar Cynara e Cybele cantando "Vou voltar, sei que ainda vou voltar..." e deu Sabiá naquele Maracanãzinho lotado e dividido entre vaias e aplausos. Nem mesmo o próprio IV Festival de MPB organizado pela TV Record se segurou na onda das vaias e da euforia do público, quando um Tom Zé ganhou o 5º lugar através de uma canção exaltando a Terra da Garoa enquanto Elis, Chico e Edu tentavam segurar a empolgação do festival com a pegada mais típica, o pessoal dos Mutantes riu à toa com sua viagem psicodélica com tons caipiras de 2001 e seus ruídos de theremin executados por Rita Lee, que usava roupas de plástico transparentes e fez a festa, mesmo no 4º lugar. E, no mesmo festival, Gal e sua bandeira tropicalista exaltando tudo o que era divino e maravilhoso ao mesmo tempo, o que ajudou a render o 3º lugar, acabou fazendo bonito e não decepcionou ninguém. E depois disso, a massa tropicalista foi para a TV Tupi conceber o programa mais anárquico da televisão brasileira, que tinha tudo a ver com a pegada da época: Divino, Maravilhoso - que teve uma duração de quase dois meses e que acabou antes de Caetano Veloso e Gilberto Gil serem presos após o Natal e não poderem trabalhar com mais liberdade. E da prisão em Sampa para o regime domiciliar na Bahia, e da Bahia para a Europa, mais precisamente em Londres, onde eles se instalariam definitivamente.
Contracapa original do álbum, com uma foto tremida da cantora
(Reprodução)
Depois de ter seu primeiro disco individual lançado, em janeiro de 1969, com faixas gravadas já ainda em 1968, a baiana mais divina, maravilhosa e tropical ainda teria mais coisas para gravar, com a presença dos mesmos baianos ainda em São Paulo, embora presos. E com o mesmo produtor Manoel Barenbein, o mesmo Duprat nos arranjos, o disco seguinte seria mais rock and roll e que soaria totalmente diferente, ainda com o legado do tropicalismo presente nos arranjos e nas canções, o que é bom por sinal. Mesmo assim, o disco seguia tendo as presenças de Gil e Caetano em termos de composição, mais outro ponto positivo e motivo para ouvir este disco. Além dos mesmos elementos complementares do disco anterior, o disco intitulado somente Gal consegue mostrar uma atmosfera vocal muito além da doce voz de cantora, ela consegue ir ao patamar de uma Janis Joplin, inclusive, o que pode soar como uma referência quando se for ouvir o disco logo na primeira escuta. Na capa, um desenho fazendo jus não somente ao que estava sendo a época da psicodelia, mas também ao Tropicalismo - embora que acabado, ainda havia rastros do movimento através das nove faixas que compõem este disco, com o mesmo Lanny Gordin nas guitarras, Rodolfo Grani Jr. no baixo, Dudu PortesDiógenes Burani na bateria e o então ainda desconhecido do grande público Jards Macalé no violão, que acabaria se tornando protagonista de um FIC naquele ano ao interpretar Gotham City ao lado do conjunto Os Brazões, e passado batido por uma multidão e pela crítica inclusive, mas tendo um dos momentos mais épicos que aquela edição teve. Mas, mantendo o foco no disco da nossa Maria da Graça vinda da Bahia, o som é pesado mesmo, não é nada que soe "quadrado" demais, aqui a viagem sonora é espetacular e te leva aos extremos da psicodelia, além dos últimos suspiros da era tropicalista, e começando o disco com Cinema Olympia, uma espécie de blues elétrico bem lisérgico com ares de Jimi Hendrix pelos acordes de guitarra - e tendo logo o lendário Lanny Gordin o cabeça por trás de todo esse ruído eletrificado e com um solo na introdução digno dos deuses da guitarra, que já nos mostra o que há de diferente neste disco; em seguinte, uma pegada de som árabe no violão e uma flauta nos levam ao Oriente pelo sentido musical através da canção Tuareg, composta Jorge Ben, contando a história de um guerreiro heróico com base nas histórias da Mil e Uma Noites com tons contemporâneos e tendo uma presença de órgão Hammond que dá um gosto a mais nos arranjos; em diante, a nossa baiana canta de Gil um tema bem politizado, chamado Cultura e Civilização, mantendo toda aquela vibe psicodélica nos arranjos e a sua voz começa a rasgar em certos momentos, mostrando o porquê deste ser o momento mais rocker da nossa diva sem sombra de dúvidas; em diante, temos um quase-hino do nosso país entoado aqui, o clássico surgido nesse mesmo ano, País Tropical, oferecida à própria Gal no início pelo autor de sua letra Jorge Ben, mas que acabou virando sucesso grandioso na voz de Wilson Simonal, e aqui ganha um tom bem viajante com as vozes de Caetano e Gil dando uma canja e Jards Macalé ao violão deixando esse momento mais bossa pesada com ares suingantes, que acaba sendo um destaque nesse disco aqui e do melhor agrado; e pensou que aqui não haveria músicas da dupla de compositores da Jovem Guarda, está muito errado: Roberto e Erasmo fizeram especialmente pra ela Meu Nome é Gal, em retribuição às gravações de Se Você Pensa e de Vou Começar no disco anterior e ela fala um pouco de sua vida e suas admirações pelos gurus da Tropicália, da Jovem Guarda entre outras personalidades como o cineasta Rogério Sganzerla, Dircinho, Macalé, Duprat - o autor da capa do disco, Paulinho da Viola entre outros, e encerra cheio de vocalises berrantes no melhor estilo dos anos 60 com a base sonora meio baladinha romântica mais suas cordas e metais deixando esse ar mais sofisticado a desejar pelos nossos ouvidos; além do mais, Gil ainda havia a oferecer de canções neste disco - e é o caso de Com Medo, Com Pedro que acaba soando como uma passagem alucinante cheia de fuzzes de guitarra aqui, e sendo de um primor único, faz a gente pirar total de cara; temos aqui um momento bem Grace Slik tropical, a cantora canta de Veloso uma de suas canções em inglês, intitulada The Empty Boat, que ainda podemos ter ao fundo a voz de Macalé e seus gritos numa canja mais do que especial neste disco; ainda podemos contar com canções do mesmo Gil neste disco, como Objeto Sim, Objeto Não: considero esta faixa a mais experimental que se pode chegar na sonoridade deste disco, consegue superar as expectativas de algo meio morno, e aqui o lance é bem bizarro mas convincente com direitos a efeitos sonoros dignos de deixarem o pessoal do rock experimental aplaudirem após a escuta; no final, nós temos aqui uma pérola épica de Macalé e José Carlos Capinam, a porra-loquice fiel ao conceito tropicalista de Pulsars & Quasars, que traz mais uma vez o próprio Macao e ruídos de guitarra que parecem ser inspirados nos Mutantes e sua alquimia sonora ao pensarmos bem em ouvir o arranjo, lembra até pela ousadia de fazerem um som "estranho" em um Brasil que já era mais acostumado a arranjos que unissem samba, bossa e ritmos nordestinos e que fecha assim com chave de ouro essa viagem sonora de uma das baianas mais queridas da música e que merece estar na lista dos 200 melhores álbuns do ROCK brasileiro e merece ser indispensável por estes e outros motivos.
Set do disco:
1 - Cinema Olympia (Caetano Veloso)
2 - Tuareg (Jorge Ben)
3 - Cultura e Civilização (Gilberto Gil)
4 - País Tropical (Jorge Ben)*
5 - Meu Nome é Gal (Roberto Carlos/Erasmo Carlos)
6 - Com Medo, Com Pedro (Gilberto Gil)
7 - The Empty Boat (Caetano Veloso)**
8 - Objeto Sim, Objeto Não (Gilberto Gil)
9 - Pulsars & Quasars (Jards Macalé/José Carlos Capinam)**

* participação de Gilberto Gil e Caetano Veloso
** participação de Jards Macalé

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