Moro no Brasil - Farofa Carioca (Polydor/PolyGram, 1998)

Fazendo um quadro-geral sobre o Brasil da década de 1990, o país estava tão efervescente no ambiente político-econômico-social quanto culturalmente, podemos dizer que estávamos vivendo um período plural cheio de novidades e de surpresas - após a abertura política, o fim da ditadura e o início da Nova República (essa em que vivemos) marcado por altos e baixos dentro do ambiente político: presidente eleito que morre, vice substituindo, primeiras eleições diretas em ano, crise econômica longeva, troca de moedas, etc. O Rio de Janeiro estava vivendo uma constante evolução cultural - sempre mantendo vivas as essências do carnaval e do samba, os subúrbios e periferias lançaram o funk baseado em bases originárias do hip-hop americano e acabou sendo incorporada à mistura de ritmos sonoros brasileiros. Assim como o soul, o reggae e até mesmo o próprio hip-hop - que gerou vertentes como o funk carioca através das batidas sampleadas de músicas de Afrika Bambaataa, James Brown, Kurtis Blow e incrementando uma sonoridade hip-hop de LL Cool J, Beastie Boys, Public Enemy, Run-DMC, Eric B & Rakim dentre outros. O samba se renovava como sempre, e da geração marcada por nomes como Beth Carvalho, Alcione, Fundo de Quintal, Zeca Pagodinho, Jorge Aragão, Martinho da Vila, João Nogueita entre outros houve uma continuação sucedida por nomes como Grupo Raça, que começa a pegar um novo embalo, o chamado pagode ou também samba romântico, que fortaleceu nomes como Raça Negra, Só Pra Contrariar, Negritude Junior, Art Popular, Molejo, Exaltasamba dentre outros grupos que fizeram do pagode um grande acontecimento dos anos 90. O rock nacional também ressurgia com peso depois de uma queda causada pela ascensão do governo Collor, a crise econômica e a ascensão da música sertaneja, da lambada e da axé music baiana - renascido do underground e com a ajuda de veículos de imprensa como a revista Bizz que ajudou a levantar bandeira para bandas como Yo-Ho-Delic, Skank, Pato Fu entre outras. O Rio de Janeiro tinha uma cena que permanecia viva desde sempre e o under da cena era agitado e lugares como o Garage que viu bandas acontecerem como o Planet Hemp, que viria a conquistar além dos palcos undergrounds e se tornaria o principal porta-voz no combate à discriminação da erva (sim, aquela!), seguido também de outras bandas como Piu Piu & Sua Banda, Black Alien (antes era um grupo antes de Gustavo assumir o codinome como rapper), Acabou La Tequila, Dash, Jason, Poindexter, Squaws, Gangrena Gasosa, Ostheobaldo (futuro Tihuana) e também bandas que viriam se acercar mais do mainstream como O Rappa, Baba Cósmica (que tiveram uma música gravada pelos Mamonas Assassinas e lançou o futuro produtor Rafael Ramos) e outras mais flertadas com uma sonoridade plural e abraçando diversos gêneros mas soando mais MPB do que rock: duas delas merecem um belo destaque, a primeira é Pedro Luís e A Parede com um som que junta muito elementos de rock e rap com batucada - tanto que a base do grupo tem em grande parte instrumentistas de ritmo, e a outra banda é a Farofa Carioca, que junto dA Parede e de outros conjuntos, faziam críticas sociais e contavam histórias realistas com uma irreverência e tanto, a ponto de fazer um som que mistura de tudo um pouco sem preconceitos e dando uma diferenciada às bandas de rock.
Mas, o que é o Farofa Carioca? Adentrando no contexto do ecletismo musical, o conjunto musical do Rio abraçava um som mais aberto, plural, remetendo às big bands e ao Black Rio e unindo tribos com um som enérgico. O conjunto musical nasce a partir do encontro entre um rapaz de Belford Roxo chamado Jorge Mário, que passou um período morando na rua até se encontrar a convite de outro músico chamado Gabriel Moura, sobrinho do instrumentista de sopro Paulo Moura, para participar de um espetáculo, e após participar de espetáculos, acaba morando durante um breve período no Teatro da UERJ. Nesse período em que participava de peças, Jorge e Gabriel conheceram Bertrand Doussain, um músico francês que tocava flauta e dali nascia uma união de músicos, artistas e amantes da boa música. Começaram a se juntar com músicos como Wellington Coelho (percussão), Levi Chaves (sax tenor e clarineta), Sandrinho (tantã, percussão e voz), Sérgio Granha (baixo), Carlos Moura (trombone) - primo de Gabriel e Valmir Ribeiro (cavaco) além de Fred Castilho (bateria), Henrique Band (saxofones alto e barítono), Mohamed Maloke (DJ e programação) além de Jorge Mário que se chamaria de vez Seu Jorge como vocalista e Gabriel como vocalista e nos violões - uma big band com o tempero mais carioca possível. As primeiras apresentações no bairro de Santa Teresa, com direito a Seu Jorge cantando se segurando no bondinho, e depois foram se expandindo para lugares como o Posto 9, os bairros de Ipanema e formando parte da dita Hemp Family: uma turma que juntava a galera do Planet Hemp, Squaws, O Rappa, Funck Fuckers e Black Alien entre outros tanto - e a turma do Hemp Family fazia seus barulhos no estúdio Totem, onde tudo começou a acontecer sevindo como QG da turma e contando até com Chico Science & Nação Zumbi dando umas canjas durante a estadia no RJ. O grupo começou a chamar atenção com suas performances Rio afora e com uma apresentação no Ballroom, casa noturna badalada do Rio naqueles tempos 
após a repercussão do Farofa em cadernos culturais de jornais, revistas e zines, fez com que as gravadoras disputassem o passe para contratá-los, mas somente quem levou a melhor foi a PolyGram - após a indicação do então jovem Leonardo Rivera, que além de trabalhar como label manager, era um jornalista que viria a montar o selo Astronauta Discos adiante, o interesse da gravadora pelo Farofa empolgou até o então presidente da casa fonográfica, Marcelo Castello Branco de acordo com Rivera. Com o contrato assinado, a banda iniciou seu processo de gestação do álbum de estreia, com a gravação do que viria a ser o primeiro trabalho, o próprio Farofa Carioca assumiria a produção junto de Carlos Beni, que já vinha de uma carreira longa inclusive tendo feito parte da primeira formação do conjunto Kid Abelha. O time de convidados é de impressionar e montado por uma roda de amigos como Ulisses Capeletti dos Squaws dando canja na guitarra, Jovi Joviniano no pandeiro e cuíca, Duane no triângulo, zabumba e block, Bidu Cordeiro no trombone, Ringo (não o dos Beatles) na guitarra, Sivuca no acordeom e os Celso Alvim, Sidon Silva e C.A. Ferrari de Pedro Luís e a Parede nas percussões e vocais. Além disso, a capa criada pela equipe da RODA Atelier de Artes Visuais dá essa impressão de mostrar a pluralidade do grupo e esse Brasil diversificado e mestiço etnicamente e musicalmente. O álbum de estreia Moro no Brasil foi lançado em setembro de 1998 enquanto a banda se apresentava por diversos cantos do Brasil e fazia shows em eventos como o Free Jazz Festival onde tiveram um grande destaque pela forma como o show trazia um pouco da estética teatral e até circense nos espetáculos do conjunto.
A abertura já nos entrega logo de cara um ranger de porta, como se nós entrássemos numa grande festa na faixa Dudivara tendo um mestre de cerimônias Seu Jorge nos anunciando a proposta do grupo e dizendo que é o Rio de Janeiro enchendo a barriga do povão de ritmo, alegria, poesia e brasilidade parecendo um locutor de rádio - originalmente contava antes da entrada do som uma locução de rádio dos anos 60 dizendo "Devemos nos concentrar nesse momento histórico", e carregado de muita batucada e de soul marcada pelo cavaquinho, os metais e as cordas mostram essa união de influências sonoras, falas que transitam entre o rap e uma locução de rádio e um vocalise feminino feito por Patricia Boechat, e entre tudo isso temos partes bem próxima da discothéque e o samba que mostram uma rica sonoridade; a seguir, entra uma voz como se fosse fazer um anúncio político à imprensa - é Seu Jorge começando a entregar outra pedrada - Moro no Brasil é a faixa-título em que temos uma canção de protesto na qual a mensagem mostra o cansaço do povo com tantas promessas de políticos e decide fazer o seu lutando para sobreviver e no refrão brinca com o fato de não saber se vive bem ou mal dentro do Brasil cheio de miséria, fome e a violência que vinha assombrando o país naqueles tempos, a forte pegada de samba, o cavaquinho de Valmir, o coro do grupo e o solo de trombone de Carlos Moura entre os metais mais a percussão mostram a bela fusão de samba-rap do jeitinho do Farofa; para a próxima faixa, mais crítica social - dessa vez é Gabriel Moura que assume as vozes principais de A Lei da Bala onde há uma visão de como é a realidade das favelas que são dominadas por tráficos e organizações criminosas e e Seu Jorge mostra como fica a preocupação do meio do caos quando espera a pessoa amada pra ir no baile funk, é a forma de fazer o ouvinte "pegar a visão", o início marcado por uma ligação para a polícia reclamando de tiroteio com direito a efeitos de tiros e sirene entre um arranjo cheio de belas melodias vindo até mesmo dos sopros e da guitarra, balanço de primeira interrompido por um batidão que logo reconhecemos ser um sample de Planet Rock, clássico dançante do Afrika Bambaataa & The Soul Sonic Force dos anos 80 que ajudou a moldar a sonoridade do funk carioca e do hip-hop; em seguida, um grande clássico que marcou o repertório do grupo e da carreira solo de Seu Jorge - a perfeita São Gonça com a letra em que o eu-lírico se assume para a sua amada e tenta se explicar caso chegue atrasado e fecha dizendo pra ela crer se quiser, um samba com uma pegada que lembra os arranjos de Jorge Ben marcados pela batida e pelos arranjos de corda, obra de Seu Jorge e Vitor Chicre que fez a regência, cortado por um som de telefone e uma mulher dizendo alô dando a deixa pra próxima faixa
; adiante, encontramos novamente um off de Seu Jorge como se fosse um repórter de rádio informando a situação da cidade servindo como uma curta pausa em Bebel, toda cantada por Gabriel Moura em que fala do cara que se ilude de paixão por uma moça que encontrou na Vila Isabel e menciona bairros e pontos do Rio além de citar canções de Tom Jobim e Noel Rosa - mais carioca impossível, o groove brasileiro mantêm o tempero essencial, além da bateria e da flauta de Bertrand com o naipe de metais entrega tudo e não tem nenhum defeito; o próximo tema chega já com uma criança falando o nome da banda que já nos oferece Doidinha, uma letra em que enaltece o charme e a beleza de uma mulher que na visão dos homens ela está deseperada para ter um bebê - assim que aparece a criança e um choro e passa pro cavaco de Valmir que é "atropelado" pelo resto da cozinha sonora, além do canto que junta batucada de carnaval e citação de Mulata Assanhada, clássico do samba de Ataulfo Alves que funciona bem na melodia; em seguida, temos um trecho do que parece ser um programa de rádio estilo Escolinha do Professor Raimundo em que ouvimos alguém pedindo exemplo de cor escura com um deboche de resposta e risadas, é a senha para A Carne - um dos temas mais pesados onde critica a opressão e marginalização dos negros com um tom crítico e combativo onde expõe a situação em que são empurrados vulneravelmente para sistemas carcerários, subempregos e hospitais psiquiátricos e com um lembrete dos anos de luta e de resistência negra, aqui contamos com uma vibe sonora de reggae bem abarasileirada onde Seu Jorge faz sua voz soar como um manifesto, e com direito a canja do cantor Fagner que empresta sua voz a esse tema, que ficou mais popular anos depois com a regravação de Elza Soares no álbum Do Cócix até o Pescoço (2002); e temos mais temas bonitos em diante mantendo o equilíbrio preciso deste material, iniciado por um ponto de umbanda (ou candomblé), Timbó mostra a história de um feiticeiro vindo de terras africanos criado no Brasil que tinha poderes místicos e que após partir se imortalizou e cujo sangue teria virado uma planta, muito forte a beleza sonora deste samba, algo mais enraizado e que traz até um quê de choro talvez pelo solo de sax de Paulo Moura muito marcante - numa bela releitura de um tema dos anos 50 interpretado por Jamelão; em diante, o tema seguinte nos entrega outra pedrada que dá a realidade pra compreendermos, Jacaré fala do político que tem a boa-vida com o dinheiro do povo honesto e trabalhador que é feito de otário enquanto estaria matando jacarés no Pantanal, um tema bem rápido, mas que incentiva o povo a se tocar na real, inicialmente com um diálogo no que parece ser metrô a princípio, vai partindo pra um balanço nervoso que dá vontade de puxar numa roda de samba com aquela vontade de dançar sem parar; a música que vem a seguir é outro tema carregado de contextos históricos e críticos - Índio é um manifesto em defesa aos povos originários que estavam no Brasil antes da descoberta e que depois sofreram nas mãos dos colonizadores portugueses até ser reduzido a um número menor que o de quase 500 anos antes e dedica ao índio Galdino que morreu carbonizado em Brasília por adolescentes brancos, iniciado por um diálogo de aula de história com Seu Jorge de "professor" marcado pelos sons que remetem a música indígena marcada por uma pegada de soul mais a introdução clássica do tema O Guarany, de Carlos Gomes com os versos iniciais cantados como um rap cortado por um refrão cortado em que na letra é mencionado até Tim Maia como homenagem ao cantor falecido em março daquele ano e a seção rítmica conta com músicos do Pedro Luís e A Parede dá uma ajuda na batucada e nos coros, além da presença de uma guitarra bem hendrixiana que se destaca pelas suas melodias ácidas; continuando a análise, o álbum oferece ainda uma canção com mais narrativas de personagens, como no caso de Rabisca Robson, que fala de um cara legal do subúrbio que vivia a estudar e depois começou a se envolver com drogas usando cocaína servindo como, o som é bem cheio de grooves e tem um quê de soul americano muito forte e mantendo a mistura com o samba e o rap, muito fundamental; encerrando o disco com chave de ouro, um tema que entrega o que segue a entregar - Menino da Central é o relato sincero das crianças que entre estudar e trabalhar em busca de dinheiro pra ajudar a família e sobreviver vendendo na estação Central do Brasil, numa pegada mais soul, ele transita também para um forró marcado pela presença do acordeon de Sivuca que segue até o final da canção que é interrompido por um anúncio que parece ser de um disco-teste de prensagem para garantir a qualidade do som com o som de uma porta fechando como se a festa tivesse acabado.
Originalmente, o álbum contava com uma faixa escondida após cerca de 30 segundos, um coro cantando em peso o Hino Nacional Brasileiro - não se sabe se num tom de orgulho ou de brincadeira, mas soa como se fosse uma surpresa para quem ouve a edição em CD de época. O grupo conseguiu em meio ao caos da reeleição de FHC surpreender a todos com um som que lembrasse ao mesmo tempo a pegada da Banda Black Rio surgida 20 anos antes, mas mexendo com elementos novos como o rap. Após o lançamento, o Farofa foi conquistando o público brasileiro, se destacando em festivais como o já mencionado Free Jazz, o icônico Abril Pro Rock e vindo a excursionarem durante grande parte do ano de 1999 até que em setembro Seu Jorge decide anunciar sua saída do grupo e planejar sua carreira solo - com uma breve passagem pelo Planet Hemp. E em seguida, o grupo hibernou até que nos anos 2000 surgiu uma nova formação com Mário Bróder nos vocais e retomaram com o álbum Tubo de Ensaio, mas aí já é uma outra história. O disco ganhou um merecido culto mostrando que a energia musical contagiante segue atraindo gente até hoje e se tornando o norte das carreiras de Seu Jorge e Gabriel que cantam diversos temas em seus shows solo. Por anos, o álbum ficou com poucas faixas nas plataformas e atualmente foi relançado digitalmente na íntegra - sem alguns trechos e com uma nova mixagem mais diferenciada e sem alguns samplers que são escutados apenas no CD, mas tem as faixas como saíram em vídeos no YouTube pra conferir a diferença do que está nos streamings e do original - ao mesmo tempo em que o Farofa novamente ressurge nos palcos fazendo shows em festivais como João Rock recentemente. É, podemos garantir no papo reto que Moro no Brasil até hoje consegue servir como um álbum repleto de mensagens de consciência social para dançar e refletir sem medo.
Set do disco:
1 - Dudivara (Sérgio Granha/Carlos Moura)
2 - Moro no Brasil (Seu Jorge/Wallace Jefferson/Gabriel Moura/Jovi Joviniano)
3 - A Lei da Bala (Gabriel Moura/Seu Jorge/Jovi Joviniano/Sandrinho)
4 - São Gonça (Seu Jorge)
5 - Bebel (Gabriel Moura/Jovi Joviniano/Fernando Moura)
6 - Doidinha (Gabriel Moura/Jovi Joviniano/Carlos Negreiro/Fernando Moura)/música incidental: Mulata Assanhada (Ataulfo Alves)
7 - A Carne (Seu Jorge/Marcelo Yuka/Ulisses Capeletti) - participação especial de Fagner
8 - Timbó (Ramon Russso) - participação especial de Paulo Moura
9 - Jacaré (Seu Jorge/Sérgio Granha)
10 - Índio (Gabriel Moura/Seu Jorge/Sérgio Granha)
11 - Rabisca Robson (Gabriel Moura/Seu Jorge/Jovi Joviniano/Sérgio Granha/Sandrinho)
12 -  Menino da Central (Seu Jorge/Wallace Jefferson/Maury Santana) - participação especial de Sivuca
13 - Hino Nacional Brasileiro(Francisco Manuel da Silva/Joaquim Osório Duque Estrada)*

* faixa escondida originalmente disponível somente no CD

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