Ave Sangria - Ave Sangria (Continental, 1974)

Se teve algo que foi visto como um dos fatores essenciais importantes para a MPB dos anos 70, essa foi a invasão nordestina no eixo Rio-São Paulo no meio do pesadelo vivido que era a ditadura militar, essa fase chegou a ser chamada por um jornalista de "violétricos", os músicos que vinham trazendo suas origens mas fusionadas por elementos diversos da MPB passando pelo rock psicodélico e jazz fusion. Esses artistas, que traziam em sua geografia musical nomes como Luiz Gonzaga, Sivuca, Jackson do Pandeiro, Marinês, Genival Lacerda e também os repentistas, cantadores de feira e influenciados também pela literatura de cordel, se uns consideram essa turma como o movimento dos "violétricos", outros podem chamar de Geração Nordeste - e dividindo pelos principais estados, além da Bahia que já havia consagrado Gil, Caetano, Bethânia e Gal surgidos nos anos 1960, e nos anos 1970 lançou figurões como o conjunto Novos Baianos e o cabeça do rock Raul Seixas e o irreverente Edy Star com seu glam com classe, mas começou a brotar novos artistas como na Paraíba tendo Zé Ramalho, Elba Ramalho e Cátia de França, o Ceará levando os nomes de Belchior, Ednardo, Fagner e Amelinha para serem notados nacionalmente - e chamados até de Pessoal do Ceará que foi um coletivo surgido no início dos 70, e no âmbito pernambucano é que não faltou talento: desde Alceu Valença, Geraldo Azevedo, Lula Côrtes, Marconi Notaro, Flaviola e também um conjunto que faria parte do que seria chamado de movimento udigrúdi, o underground nordestino - em especial a cena pernambucana em que faziam uma fusão das raízes com psicodelia. Esse conjunto seria o Ave Sangria, surgido no momento em que a geração do desbunde reinava absoluto - era o momento da juventude que cresceu entre a bossa nova, o iêiêiê e o tropicalismo cair de vez num astral mais viajandão e menos quadrado, nesse caso o "barato" da vez era misturar rock e MPB e viajar numa boa. O tropicalismo acabou logo com a partida de Gilberto Gil e Caetano Veloso para o exílio na Inglaterra em 1969 e tendo como principais remanescentes do movimento em solo brasileiro Gal Costa, Tom Zé e Os Mutantes que estavam expandindo suas visões de como fazer música naqueles tempos e nesse momento aparecia também o legado do tropicalismo representado por figuras como Jards Macalé e os próprios Novos Baianos que tomaram de assalto a geração 70. Foi nesse turbilhão de acontecimentos da música popular brasileira que o Ave Sangria surgia aos poucos, depois de um encontro de dois jovens músicos em Recife chamados Almir de Oliveira e Marco Polo Guimarães por volta de 1968 quando ambos tocavam em bandas que faziam covers de músicas rock do momento e depois Marco ficou uma breve temporada no Rio de Janeiro, o paraíso do desbunde naqueles tempos. Após esse período no Rio, Almir e Marco se juntam novamente em 1972 e começam a montar o grupo que inicialmente chamava-se Tamarineira Village, inspirado no Greenwich Village bairro considerado o epicentro da contracultura de New York, e no hospital do bairro de Tamarineira, no Recife e foram se juntando músicos como o guitarrista Paulo Rafael, os percussionistas Juliano e Agricio Noya, o guitarrista Ivinho e o baterista Israel Semente Proibida e logo de cara começam a agitar a cena pernambucana causando polêmica até entre conservadores com suas atitudes contraditórias à frente de seu tempo.
As apresentações na cena pernambucana eram de causar impacto, podemos considerar que era um misto de teatro com poesia e buscando ir além no embalo do que Novos Baianos e o grupo Secos & Molhados vinham fazendo àqueles tempos. Até o momento em que um olheiro da gravadora Continental decide assisti-los em Recife e decide contratá-los para gravar um disco - de princípio, uma boa ideia, porém, a proposta era que também mudasse de nome indo numa direção mais fácil de ser entendida e assim tornando de vez em Ave Sangria e o coletivo acabou se tornando um conjunto, sendo que muita gente participava do coletivo num clima familiar. O seu primeiro álbum teve as gravações foram realizadas em maio de 1974 no Rio de Janeiro no lendário estúdio Haway tendo na produção Márcio Antonucci, do conjunto Os Vips e que participou dos sintetizadores do long-play junto de outro figurão, o pai do rock rural Zé Rodrix que também tocou teclados e synths dando aquela mão amiga para o conjunto. Lançado no final de junho de 1974, o disco mistura rock progressivo com folk, frevo, maracatu, baião, xote ou seja: um som pernambucano movido a muita acidez lisérgica que vale a pena, e na capa um desenho de um pássaro com um corpo feminino numa paisagem do Agreste retratado por Sérgio Greco e na contracapa a foto de um lagarto feita no Recife. O long-play inicia de instante com um tema de peso, a balada prog-agreste Dois Navegantes, com sua narrativa de quem está vendo o pôr-do-sol junto da pessoa amada como se estivessem resistindo a altos e baixos da vida amorosa sempre no mesmo barco, o solo de sintetizador executado por Antonucci remetendo a Wakeman com ruidos que lembrem o vento e o mar e o solo de guitarra de Ivinho que pega a gente; na sequência, uma outra balada com ares de folk-rock dylanescos com toques pernambucanos Lá Fora faz a junção poética de realismo fantástico com poesia de cordel como se fosse falar dos perigos que a noite podia oferecer e pedindo que não se entregasse à solidão - o violão e a levada rítmica dão essa pegada de balada nordestina acústica com um ar viajandão mais conectado à vibe soft-rock psicodélica que dá certo; a próxima música que conheceremos no repertório é a chapante e lírica Três Margaridas que fala de três mulheres que estão a se deitar num círculo branco em que se representa a pureza e a inocência, embalada por uma pegada que lembra trova medieval pelo estilo, e a voz que pode imitar a poesia dos cantadores de feira, puro Nordeste psicodélico possível; a seguir, um tema que é destaque na tracklist do álbum muito pela sua poesia e pela sua sonoridade, O Pirata é um iêiêiê psicodélico com tons do agreste onde fala de um navegador pirata que descobre se sentir atacado pela trupe do lendário Barba Negra, as guitarras lisérgicas e a marcação rítmica da bateria dão todo esse ar alucinógeno que a música dá; na próxima música, uma das poucas com duração acima de 3 minutos, o grupo coloca em Movimento na Praça onde a narrativa é sobre acontecimentos diversos em torno de uma praça dentro de uma fusão de literatura de cordel com Jimi Hendrix, muito bem feita diga-se de passagem, e o refrão pode parecer um acid rock made in Pernambuco muito destacado pela percussão; na sequência, o grupo parece ir num caminho muito além do que a viagem propõe e prova disto está na faixa Cidade Grande, onde fala de dois jovens namorados chegando numa cidade em busca de sonhos e de desejos, a suavidade marcada pelo som dos sintetizadores dá essa impressão de ouvirmos um rock progressivo de respeito, além da beleza marcada pelo som do violão e a voz de Marco Polo que sabe contar histórias; na sequência, temos uma música que merece todo o destaque do repertório pela sua temática e pela sua letra considerada polêmica para aqueles tempos - Seu Waldir carrega a história de alguém que expressa uma mágoa de homem expondo seu lado homoafetivo e que ameaça ir de arrasta (cometer su y cídio) numa pegada de samba ou coco (ritmo nordestino) bem estilo Novos Baianos com uma guitarra que marca-se pelo destaque da forte presença como solo instrumental - e essa música causou um incômodo nos setores conservadores causando problemas para o grupo, sofrendo veto e tendo um clipe no programa Fantástico cancelado; mais por diante, temos um xaxado eletrificado que é pra fazer doidões e caretas dançar - Hei! Man é um diálogo para alguém que é aconselhado a correr riscos depois de se envolver com uma mulher, aqui destacamos bem a pegada de xaxado conta até com a presença de um triângulo e uma batida boa que faz ir pra uma pista de dança e fazer um arrasta-pé, dançar conforme a música - vale a pena; a próxima canção tem a prova de que o Ave Sangria podia tirar de letra a fusão de raízes nordestinas com rock - Por Que? é uma música que o eu-lírico parece estar observando as coisas como se nada mudasse, mas busca desejar chamar o nome de alguém, uma pegada bem suave de baião que vai virando um rockão é a melhor forma de unir Gonzagão e Jackson do Pandeiro com Zeppelin, Stones e Cream que faz parecer uma viagem sonora energizante; continuando a análise, o grupo vai metendo o louco e chutando o balde como pode - em Corpo em Chamas onde o cara parece ameaçar cometer uma loucura de se matar ao se queimar imaginando a visão trágica das coisas seguintes pode parecer baseada em alguma história de terror, a pegada meio Mutantes parece anteceder até o punk rock com tons cabra da peste notadas pelo fuzz de guitarra e a bateria, ou soando até como um garage rock à pernambucana; em seguida, a coisa vai transcendendo mais ainda, um som puro raivoso aparece em Geórgia, A Carniceira narra a história de uma moça envolvida com magia negra e que pratica canibalismo, que também parece sair de algum conto de horror, o som nervoso e ácido vai se destacando pelas guitarras de Ivinho e Paulo Rafael além da bateria e percussão como se fossem passos de cavalo a galopar, muito autêntico demais; o encerramento do longplay dá-se por conta de um tema instrumental que marca o ápice criativo e sonoro da banda, criação do Ivinho - Sob o Sol de Satã prova que não era só os Novos Baianos que metiam o louco nas suas lisergias musicais, as guitarras auxiliadas pelo baixo de Almir funcionam como fios condutores da música que dão essa impressão de uma viagem sonora que não parece terminar jamais.
Com as complicações encontradas no meio do caminho devido ao veto da música Seu Waldir que fez diversos veículos de comunicação irem contra o Ave Sangria, a banda sentiu que não estava preparada para conquistar de vez o público em meio às polêmicas causadas pela música, e decidiram sair de cena nos dias 28 e 29 de dezembro no Teatro Santa Isabel em Recife com o show Perfumes y Batachos fechando 1974 de forma triste. Nessa época, grande parte do grupo virou banda de apoio de Alceu Valença o acompanhando na música Vou Danado Pra Catende durante a única edição do Festival Abertura realizado pela TV Globo em 1975, e meses depois na série de apresentações que originariam o longplay de Alceu intitulado Vivo!, mas aí já é uma outra história. Este álbum virou uma das maiores raridades que pouco se falava na história da música popular brasileira, e junto de outros títulos do período "psicodelia nordestina" tem sua edição original disputada por diversos colecionadores a preços exorbitantes, mas tem quem pague bem por reedições como a da Ripohlandya, de 2014, e as recentes versões da Três Selos em 2022 e 2023, e com a Três Selos foram dois tipos de vinis ainda. O álbum despertou o reinteresse de pirados, freaks e doidões - novos e das antigas, e fez com que, aos poucos, na segunda metade da década de 2010, Almir, Marco Polo e Paulo Rafael se juntassem pra reacenderem a chama e seguirem com o Ave Sangria na ativa, e em 2022 o álbum se tornou escolhido para a lista dos 500 Maiores Álbuns Brasileiros de Todos os Tempos - encabeçado pelo podcast Discoteca Básica, ocupando a 230ª posição, e provando que o tempo agiu a favor dessa rapaziada nordestina mostrando sua vanguarda com um quê enorme de Nordeste.
Set do disco: 
1 - Dois Navegantes (Almir de Oliveira)
2 - Lá Fora (Marco Polo Guimarães) 
3 - Três Margaridas (Marco Polo Guimarães) 
4 - O Pirata (Marco Polo Guimarães) 
5 - Movimento na Praça (Almir de Oliveira/Marco Polo Guimarães) 
6 - Cidade Grande (Marco Polo Guimarães) 
7 - Seu Waldir  (Marco Polo Guimarães) 
8 - Hei! Man  (Marco Polo Guimarães) 
9 - Por Que?  (Marco Polo Guimarães) 
10 - Corpo em Chamas  (Marco Polo Guimarães) 
11 - Geórgia, A Carniceira  (Marco Polo Guimarães) 
12 - Sob o Sol de Satã (Ivisson Wanderley "Ivinho")

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