Gildo de Freitas - Gildo de Freitas (Continental, 1979)

Pare pra pensar: o Brasil é rico culturalmente, com tantas culturas espalhadas pelos quatro cantos, pela diversidade eclética, isso já não é uma novidade, visto que essa expansão de culturas já é parte da globalização que transformou o mundo nos últimos anos, a facilidade de podermos nos conectar com esse mundão de tradições de vários cantos. E o Brasil com seu ecletismo cultural, une vários manifestos vindos do Nordeste, do Norte, Sudeste, Centro-Oeste e Sul. O Sul é uma região que carrega culturalmente tradições muito variadas, com origens árabes, italianas, alemãs, espanholas, portuguesas, não à toa que a região é basicamente conhecida como a Europa brasileira, apesar de ser uma região onde tradição e modernidade quase sempre andam juntos lado a lado. A cultura regional do Rio Grande do Sul, ela tem origens de países árabes e europeus, e se fundiu em territórios hoje pertencentes ao Uruguai, Argentina e talvez um pouco no Chile e vai passando de geração a geração. O folclore gaúcho é recheado de histórias incríveis, de lendas como a do Negrinho do Pastoreio, da Mboitatá, da Mãe Mulita e da Salamanca do Jarau, fora as canções tradicionais que formentam essa cultura que ainda concentra-se em territórios uruguaios e argentinos - nos dois países mais chamado de folklore gaucho. A música gaúcha do canto do RS ofereceu nomes lendários, e aqui destaco em especial Gildo de Freitas, que durante mais de 30 anos levou sua poesia gaudéria. Ele nasceu como Leovegildo José de Freitas, na cidade de Porto Alegre em 19 de junho de 1919 de uma família com 4 irmãos e 4 irmãs
, e trabalhava desde cedo aos 8 anos, apanhava do pai se não vendia nada. Com seus 12 anos, ele já vivia fugindo e um dia ele descobriu uma cancha de carreiramento (corrida de cavalos) e foi se oferecer a cuidar dos equinos brevemente para aprender a cantar e tocar acordeon - ou também gaita, como é conhecida no Sul e com 16 anos já era um gigante como trovador e já se envolveu em confusão quando a polícia militar parou um baile que ele estava fazendo - perdendo tragicamente um amigo, e aos 20 anos comprou seu 8 baixos. Gildo, marcado pela morte do amigo, além de trovador gigantesco, viria a ter uma longa história marcada pelas passagens policiais, ao menos teria um pouquinho de trégua quando conheceu sua companheira Carminha, com quem teve 5 filhos, mas os contratempos continuavam com frequência. Sua fama de trovador foi rodando fora de Porto Alegre, marcando presença em programas de rádio como o Grande Rodeio Coringa apresentado na Rádio Farroupilha por Darcy Fagundes e demorou muito para que chegasse ao estúdio e lançasse seu primeiro long-playing em 1964 intitulado O Trovador dos Pampas onde apresentou suas músicas de grande sucesso como A História dos Passarinhos que foi seu primeiro grande clássico, Percorrendo o Rio Grande, a geográfica Conhecendo o Brasil e Baile do Chico Torto como seus temas de destaque. 
Quinze anos depois de seu primeiro LP, vieram outros sete ou oito, alguns com participações como em Gildo de Freitas e Sua Caravana (1969) com a dupla Zezinho e Julieta e anos depois, em Gildo de Freitas e Seus Convidados (1975) com a presença de Os Coroas, Irmãos Vargas e Zé Mineiro com canções próprias. Ainda dividiu com o grupo Os Taytas em 1976 um LP quase obscuro de nome Gauchada de Sul a Norte e quase uma raridade em digital, além do acompanhamento de peso de um dos grupos nativistas da época. Foi preciso dois anos para que novamente Gildo gravasse mais um long-play que repetisse o sucesso de seus trabalhos anteriores, voltando aos estúdios cerca de 1978 gravando em Porto Alegre nos estúdios EGER com a produção de Ayrton dos Anjos, conhecido no meio cultural gaúcho como Patinete. 12 faixas em um LP, provavelmente acompanhamento de nomes gigantescos da música gaúcha ao violão e acordeon, embora Gildo fosse um exímio acordeonista - temos aqui o que seja o maior disco da história da música gaúcha, lançado pela Continental em 1979. Logo de princípio, o disco começa bem ao som de Eu Não Sou Convencido, que além do solo de acordeon perfeito, traz a confissão de Gildo de que apesar da fama e da sua visão de ser um homem com beleza interior, não acha que ela esteja o amando pelo que ele realmente é e deixa claro "não aprendi a amar sem ser amado", Gildo não erra mas também não decepciona; a próxima música pode não caminhar pela sua leveza poética, mas pode oferecer momentos bons - É Assim que Eu Sou faz uma narrativa como que autobiográfica descrevendo a própria pessoa, e Gildo mostra ter dois lados de si mesmo, um bem e outro mal, aqui a levada de valsa marcada pela percussão e a guitarra bem no estilo Antoninho Duarte que dá o tom pra canção; em diante, o repertório desse clássico do Trovador dos Pampas segue com seu primor ainda nos oferece Pinheiro Sagrado, onde ele fala sobre a madeira que é levada para mundo afora e sobre o pinheiro que é tão importante para a produção madeiril, num tom bem de milonga que funciona pra canção; a seguir, Gildo puxa o fole de sua sanfona para poder cantar mais uma de suas poesias sonoras - Espantem a Tristeza é uma espécie de lamento sobre a arte de levar sua música para as pessoas que vivem tristes e lastimadas e incentivando as pessoas a cantarem para levarem alegria para si, com uma pegada de valsa que funciona perfeitamente pela batida do violão com uma sanfona em tom triste; a seguir, uma prova do bom trovador segue sendo vista no tema Show do Gildo onde simula uma apresentação dele com seus versos para determinados temas como a saudade e o amor, e agradece ao público (no caso, o ouvinte do disco) e aqui o ronco do acordeon puxa pra um lado de toada com uma percussão baixinha; em seguida, temos uma música que retratava os dilemas familiares entre pai e filho - Retorno do Papai traz a narrativa de um homem que passou 6 anos distante de seu filho e busca se reaproximar mostrando-se arrependido das decisões e termina com os dois afirmando que com a volta da figura paterna, a felicidade volta com a presença de um cantor, o repentista Marco Aurélio provavelmente como o filho da canção.
A próxima música, o Trovador dos Pampas - como ele se tornou aclamado - entrega outro sucesso do disco, Homem Feio e Sem Coragem Não Possui Mulher Bonita, uma levada muito próxima do vaneirão de hoje que lembra uma espécie de "samba campeiro" contando a história de um homem que partia pela noite com seu cavalo para um baile na fazenda que mostra ter sorte com seu pouco de beleza conquistar mulheres com um final bem divertido no estilo do cantor; não perdendo o seu primor, Gildo ataca com tudo como sempre em seus versos através de Lembranças do Passado onde ele busca narrar um pouco de nostalgia dos outros tempos quando ainda era muito jovenzinho e dos tempos do começo de carreira, aqui além da sanfona e da marcação rítmica, temos uma guitarra no estilo havaiana/slide (Antoninho Duarte, é você?) numa levada bem bem de milonga; com todo o jeito de entregar qualidade para o repertório, o disco oferece Mulher Aventureira, uma música onde Freitas se mostra um tanto resistente a um tipo de mulher que vive procurando problema, e o Gildo já deixa claro que é casado e feliz, e incentiva a procurar outra pessoa que ela possa encontrar o amor de verdade, o ritmo segue 100% autêntico ao estilo gaúcho com um solo de violão que se ouve maravilhosamente; com todo o seu brilho, ele segue a provar no disco o porquê de ter sido aclamado o maior dos trovadores em Trova do Gildo onde ele duela com o jovem Marco Aurélio, um repentista gaúcho na época com 18 anos, a dar conselhos para a vida que caem como uma luva, como os conselhos de um veterano para quem está começando a viver a vida de vez, o arranjo não decepciona quem ouve; a próxima música é quase que um último momento épico do disco, mas traz algo que comove ao escutarmos - Pedidos de um Gaúcho deixa claro de que o personagem da canção quer guardar seus últimos recados ao povo na hora de sua partida, enquanto Marco Aurélio canta, Gildo declama os versos - a dobradinha acordeom e violão dá todo o primor necessário de sempre; e se a faixa anterior parecia ser sua última mensagem dada, é porque a faixa de encerramento apresenta mais do que uma canção, senão o maior hino do cancioneiro popular sulista Eu Reconheço Que Sou Um Grosso, que traz uma narrativa autobiográfica de sua trajetória de vida, de quem aprendeu sem escola, e ainda busca incentivar os jovens a irem ao CTG (local destinado às tradições do RS) e já explica sobre os vestidos usados pelas moças - o verso acaba sendo um pouco pesado pra geração de ouve ou para quem é de fora - mas o "grosso" da canção baseia-se no conceito do gaúcho raiz nas grandes cidades, visto pelos outros como um fora do mundo, sem cultura, embora Gildo coloque reconhecer a sua própria "grossura" de forma sincera, com um arranjo bem de valsa ou rancheira lenta e um solo de acordeon único na música gaúcha presente no disco.
Depois deste trabalho, ainda houve em especial relançamentos de alguns de seus discos, porém, Gildo estava começando a ficar mais idoso, com esse disco, ele lançou quando estava a fazer 60 anos em 19 de junho, porém, o peso da idade e a saúde começaram a fragilizar o insuperável Gildo, que ainda era organizador do próprio rodeio onde havia desafio de peões nas montarias com cavalos mais maduros, e de uma churrascaria na cidade de Viamão. Mas ainda havia tempo para que, mesmo com sinais de saúde frágil, conseguisse gravar dois anos depois O Rei dos Trovadores, mas aí já é uma outra história. O disco consegue ser uma forte prova viva do legado de Gildo para a cultura e tradição sul-riograndense e contribui fortemente para a discografia não somente da música regional sulista, mas da MPB ao mesmo tempo - porque sim.
Set do disco:
1 - Eu Não Sou Convencido (Gildo de Freitas)
2 - É Assim que Eu Sou (Gildo de Freitas)
3 - Pinheiro Sagrado (Gildo de Freitas)
4 - Espantem a Tristeza (Gildo de Freitas)
5 - Show do Gildo (Gildo de Freitas)
6 - Retorno do Papai (Gildo de Freitas)
7 - Homem Feio e Sem Coragem Não Possui Mulher Bonita (Gildo de Freitas)
8 - Lembranças do Passado (Gildo de Freitas/Jorge Cardoso)
9 - Mulher Aventureira (Dorival Ignacio da Silva/Gildo de Freitas)
10 - Trova do Gildo (Gildo de Freitas)
11 - Pedidos de um Gaúcho (Gildo de Freitas/Marco Aurélio)
12 - Eu Reconheço Que Sou Um Grosso (Gildo de Freitas)

Comentários

Mais vistos no blog