Fresh Cream - Cream (Reaction Records/Polydor, 1966)

Ninguém consegue imaginar o que seria do rock britânico e do rock em todo para definirmos melhor sem a existência dos Beatles, isso é fato. Agora, imagine o que real seria sem Beatles, Stones, Who, Kinks, Yardbirds prestando seus serviços ao rock desde a terra do chá das cinco e berço de um dos esportes que é paixão mundial: o futebol como nós conhecemos. E foi nos Yardbirds que começamos a descobrir guitarristas talentosos e brilhantes, alguns se tornando extremamente monstruosos posteriormente como Jimmy Page, outros sempre se inovando com o tempo como no caso de Jeff Beck e outros que apesar de hoje fazerem algumas mancadas em tempos de coronavírus, não devemos negar sua importância como brilhante e autêntico, apesar de também ser acusado de plagiar algumas melodias, não muitas: Eric Clapton pode ser lembrado hoje como o cara que pregou o negacionismo e se declarou contra as vacinas do coronavírus, mas esquecemos que antes de tudo, ele entrou de sola nos anos 60 se tornando um dos grandes guitar heroes de todos os tempos. E sua história até 1966 é a seguinte: Eric, criado pelos avós embora mal soubesse até os 9 anos que a sua "irmã" Patricia era na verdade sua mãe, na adolescência descobriu o gosto pela música aprendendo a tocar flauta doce e foi com esse instrumento que ganhou um concurso tocando Greensleeves e logo com 13 anos, trabalhando como carteiro, conseguiu ganhar seu violão onde tirou de lá sons que vinha ouvindo em discos de blues, e após concluir o ginasial, ele se juntou a um grupo chamado The Roosters, e brevemente, após um toque dado por outro músico esperto chamado Keith Richards de uma banda iniciante chamada Rolling Stones, sobre uma banda em que um guitarrista estava a sair de um conjunto que estava acontecendo na cena inglesa, e essa era os Yardbirds. Foi ali que Eric começou a ser notado, porém, aos poucos a banda começava a soar pop demais para o estilo do músico, foi quando ele decidiu sair para tocar junto de um grupo chamado Bluesbreakers, liderado por um afinadíssimo músico chamado John Mayall e do qual participou durante um curto tempo. E foi nesse curto tempo onde gravou o excelente álbum Blues Breakers With Eric Clapton do qual também estava o baixista John McVie, e Mayall mal imaginava que viria músicos de sua banda lançarem grupos como Fleetwood Mac - o baterista Mick Fleetwood se juntaria no ano seguinte, e um onde Clapton e um baixista chamado Jack Bruce formariam o que seria um supergrupo e o primeiro power trio de peso da história do rock: o Cream.
Para começarmos a falar do Cream, precisamos de falar sobre duas bandas: a já mencionada Bluesbreakers de onde Jack Bruce e Clapton se conheceram, e a Graham Bond Organisation (GBO), um conjunto que transitava entre o jazz e o beat liderado por Graham Bond, um pianista e saxofonista que tinha uma carreira promissora vindo da noite, e do qual fez parte Bruce e um baterista chamado Peter Edward "Ginger" Baker - os dois viriam a ter vários atritos desde esses tempos. Clapton estava se sentindo desconfortável ainda nos Bluesbreakers, e logo que seu nome começava a se tornar gigante, conseguiu chamar a atenção de muitos fãs a ponto de seu nome aparecer em grafites como "Clapton is God", e logo pensou em montar um trio com os dois, sem saber que Jack e Baker eram tretados desde antes, e foi durante uma conversa no carro do baterista que Eric sugeriu a ideia de juntar os dois novamente no tal grupo. Logo com os ensaios, Clapton surgiu com o nome de Cream porque Jack e Ginger eram considerados o "créme de la créme" dos músicos de jazz da cena britânica. Foi no dia 29 de julho de 1966 que eles fizeram sua estreia não-oficial no Twisted Wheel, e dois dias depois a definitiva estreia na sexta edição do Festival de Jazz & Blues de Windsor, e durante esse período a banda estava em estúdio gravando com o produtor Robert Stigwood - futuro responsável por sucessos como o próprio Clapton, os Bee Gees, e de produções musicais como Hair, Grease e até Saturday Night Fever que virou filme de sucesso. As gravações nos estúdios Rayrik e Ryemuse em Londres com o engenheiro John Timperley, e foram realizadas no período de agosto até novembro quando a banda já estava vendo o disco como pronto e excursionando pela Europa. Sob o título de Fresh Cream editado em 9 de dezembro de 1966 pelo selo Reaction Records, esse disco seria o marco de uma nova fase na carreira de Clapton depois dos Yardbirds e Bluesbreakers, onde além de ir mais além do que podia, se tornar o norte no blues elétrico que estava tomando forma não só na Inglaterra, mas mundialmente. A capa estampava uma foto de Baker com um chapéu de animal, Bruce e Clapton sérios como se estivessem recebendo um desafio que viria pela frente.
O disco, seguindo as reedições mais recentes, começava com um tema que antes não se fazia presente no LP original, que é o single I Feel Free, que é um rock nervoso na qual o eu-lírico se derrete ao sentir o mar quando dança com ela e tudo no momento em que se apaixona - aqui Clapton inaugurou o Woman Tone, o som de guitarra usado no volume máximo do amplificador com que aumente os agudos e corte os graves, e a batida nervosa de Baker, um baterista sagaz dá o tom preciso; a faixa seguinte apresenta uma característica bem peculiar que é o trio sintonizado na música, N.S.U. no qual fala sobre ter fortuna e depressão e sobre como a primeira não consegue curar a última, vemos Jack Bruce cantar sobre ele se gabar de suas riquezas, mas não busca respostas para a vida ou a felicidade que deseja, o baixo de Bruce e a bateria de Baker conseguem ser a espinha dorsal com a guitarra monstruosa de God ao longo da canção; ainda por diante, temos mais uma faixa que não decepciona nesse batismo de fogo da banda, Sleepy Time Time na qual, fala sobre uma provável substância verde (alô Planet Hemp!) que se pode ser usada para dormir melhor, marcada por um riff chapante da guitarra de Clapton, sem perder o primor junto da bateria matadora de Baker com o ritmo certo pra canção que dura 4 minutos e 20 segundos (quem pegou a referência aí?); em seguida, temos aqui outro tema que faz a gente viajar na sonoridade e estou falando sobre Dreaming, com uma narrativa de um cara apaixonado que sonha sobre o amor que o traz alegria e felicidade, com um tom bem balada marcada pelo baixo e a voz de Jack que se destacam nos quase 2 minutos da canção; e o rock não deixa de rolar total no decorrer do disco, o trio ainda apresenta pedradas da melhor garantia, só ouvirmos Sweet Wine criação de Baker com Janet Godfrey (esposa de Bruce) onde um jogo de frases tenta fazer algum sentido, mas pode ser como se fosse a alegria de quem bebe um vinho e esquece se preocupar com o caos rotineiro da cidade grande, aqui o trio sabe muito bem como tocar conforme o que a canção precisa; a próxima faixa enverga mais nas raízes roqueiras, o blues em sua mais pura essência já que a banda decide trazer um clássico de Willie Dixon pro repertório - Spoonful é basicamente a porta para que a banda abrisse as portas para grandes releituras chapantes de temas de lendas do blues como Willie Dixon, envolvendo doses em colheres do que pode ser até mesmo do amor, mas a letra pode haver um duplo-sentido sobre a tal colherada, o bacana além da guitarra é a forte presença da harmônica tocada por Bruce que engrossa o caldo durante a canção; em seguida temos aqui o tema que apresentou a banda em disco, mas como single - Wrapping Paper não mostra muita coisa relevante, embora a letra envolvesse uma coisa mais próxima de alguém visto como um simples papel de embrulho dentro de uma relação, com uma linha de baixo profunda e uma bateria agregadora que matam a pau junto de uma guitarra viajandona pra valer; adiante, Bruce dá aquela descansadinha na voz pra mandarem um instrumental de peso - Cat's Squirrel, um blues elétrico chapante intercalado por um trecho em que Bruce repete a palavra "alright" como se estivesse elogiando os colegas, destaco aqui a sua gaita e a guitarra de Clapton formando uma bela união de sons, a música é um blues de Doctor Ross, outro músico americano de blues da época dos anos 40/50 que ganhou uma interpretação de peso; o repertório da banda é variado pelo que se ouve, e prova disso é a faixa presente em edições fora da Inglaterra que é The Coffee Song baseado numa canção antiga envolvendo um amor misturando o gosto de um café sob um arranjo alucinante marcado pela guitarrra; mantendo o lado B dedicado às interpretações, deixamos aqui uma pérola clássica do blues de raiz, Four Until Late é um dos 29 blues gravados por Robert Johnson entre 1936 e 37 que definiram a história das origens do rock, e desta vez, a história de um cara que é desprezado em um bar por uma mulher a ponto de deixar a cidade é cantada por Clapton - sua única faixa cantada no disco e mantendo a crueza do blues à la Cream na sonoridade; para a próxima faixa, temos que ter os ouvidos bem atentos pois em Rollin' and Tumblin' além da banda evocar um tema muito clássico do gênero onde um casal divertiu mais do que devia pelo que dá-se a entender a letra, o som é mais nervoso, a bateria e a guitarra soam mais pro que viria a ser punk rock futuramente; fechando a série de covers no disco, temos ainda aqui um achado e tanto para os nossos ouvidos - a versão do trio para I'm so Glad, clássico de Skip James onde alguém exala felicidade depois de ficar cansado de chorar e gemer pela pessoa amada que partiu, e aqui a versão dá um ar mais pro beat do que só pro blues, e funciona bem, o baixo de Bruce mais sua voz funcionam bem aqui; o encerramento fica por mais um instrumental presente no LP que é uma verdadeira aula de ritmos, pois Toad - criação de Ginger Baker o baterista - é uma verdadeira prova do que estaríamos testemunhando, a canção pioneira dos longos solos de bateria proporcionados pela galera heavy metal a partir de 1:12 Clapton e Bruce deixam de lançar melodias para o baterista dar o seu show digno de encerramento de disco até 4:38 onde a guitarra ainda dá seu toque final junto do baixo.
O disco teve um sucesso médio mesmo sendo o primeiro e já com a fama de Clapton rodando, apesar da boa repercussão de temas como Spoonful, aparições televisivas pela Europa divulgando o trabalho, eles decidiram ir mais além, com o auge da psicodelia e incorporando mais temas autorais e trabalhando com um produtor diferente - o que levou o trio a irem para os EUA gravarem o próximo disco com o produtor Felix Pappalardi, vindo a resultar no brilhante e ótimo segundo disco da banda, o viajante Disraeli Gears, mas aí é uma outra historia. Desmerecer a importância de Fresh Cream para a história do rock seria uma ofensa, visto que foi um disco que ajudou na formação da sonoridade do heavy metal e do punk em especial, o disco foi consagrado em 2012 com o 102º lugar dos 500 Maiores Álbuns de Todos os Tempos pela revista Rolling Stone, né brinquedo não.
Set do disco:
1 - I Feel Free (Jack Bruce/Pete Brown)
2 - N.S.U. (Jack Bruce)
3 - Sleepy Time Time (Jack Bruce)
4 - Dreaming (Jack Bruce)
5 - Sweet Wine (Ginger Baker/Janet Godfrey)
6 - Spoonful (Willie Dixon)
7 - Wrapping Paper (Jack Bruce/Pete Brown)
8 - Cat's Squirrel (Doctor Ross/versão: Ginger Baker/Jack Bruce/Eric Clapton)
9 -  The Coffee Song (Ray Smith/Tony Colton)
10 - Four Until Late (Robert Johnson/adaptação: Eric Clapton)
11 - Rollin' and Tumblin' (Hambone Willie Newbern)
12 - I'm So Glad (Skip James)
13 - Toad (Ginger Baker)

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