Fatal: Gal A Todo Vapor - Gal Costa (Philips/Phonogram, 1971)

Se a Jovem Guarda foi considerado um fenômeno jovem de massa na cultura brasileira, que atraísse multidões com uma versão abrasileirada do beat pop dos anos 60, talvez o Tropicalismo foi o elo que uniu a bossa nova com a dita música jovem daqueles tempos e sido o fator X para a modernização da música popular brasileira. Com nomes recém-vindos da chamada nova geração da MPB como os baianos Gilberto Gil, Caetano Veloso e Tom Zé além da intérprete e considerada musa do tropicalismo, Gal Costa - que infelizmente nos deixou no dia 9 de novembro recente. Gal, que veio da Bahia junto de Gil e Caetano, soube de uma forma única deixar uma marca registrada imperdível que era a forma de trabalhar sua voz e porta-voz de uma geração que estava quase despercebida do grande público. Consolidada como uma versão feminina de João Gilberto (1931-2019) que ficou fascinado quando viria a ouvi-la ao vivo, já havia gravado compactos e um long-play em conjunto com Caetano, o primeiro registro completo dos dois - o álbum Domingo que os dois dividiram juntos e gravaram temas da autoria do então jovem poeta de Santo Amaro como Avarandado e Coração Vagabundo - marca registrada de Gal em seu repertório. No mesmo 1967 veio a participar de festivais, dos quais o incendiário III Festival de Música Popular Brasileira organizado pela TV Record, e no ano seguinte participou da quarta edição do mesmo se aclamou com a belíssima Divino, Maravilhoso da autoria de Gil e Veloso, com um visual bem hippie e cabelos bem longos à moda black power e também foi no mesmo 1968, o ano tropicalista, em que se fez presença no disco Tropicalia ou Panis Et Circensis junto dos dois contemporâneos mais outro baiano, Tom Zé vindo de Irará, da banda Os Mutantes - que eletrificavam pra valer a música brasileira com guitarras elétricas e um som muito próximo ao que os Beatles faziam à época. Foi durante 1968 que o primeiro LP solo de Gal estava sendo gravado, enquanto Gil estava em seu segundo e Caetano no primeiro solo lançado no início daquele ano, porém, assim como o próprio, Gal só teve seu primeiro LP editado em janeiro de 1969 com músicas inéditas - além da arrebatadora versão de Divino, Maravilhoso teve também gravação de temas da dupla Roberto & Erasmo como Vou Recomeçar e a arrebatadora versão com o peso do soul em Se Você Pensa além da gravação de Baby, lançada ainda no coletivo Tropicalia. O segundo LP solo, com uma veia mais roqueira, foi lançado já com Gil e Caetano partindo para o exílio em Londres após ficarem meses na Bahia, mas antes presos dias depois da instauração do AI5 em dezembro de 1968, mas com a presença dos dois sejam em composições como Objeto Sim, Objeto Não, a enérgica Cinema Olympia e também com os dois cantando junto na versão bixo-grilo tropicalista de País Tropical, a famosa canção do Jorge Ben. Com os dois passando uma temporada triste e amarga no exílio no Velho Continente, mas sempre fazendo algumas visitas para deixar o clima menos triste e mais familiar quando podia. No ano de 1971, decidiu lançar um show que marcaria história nos rumos da MPB - logo após o lançamento de Le Gal/Legal/LeGal (1970), um trabalho onde Gal mantinha um pouco da chama tropicalista acesa, mas dessa vez era o desbunde que começava a dar as cartas pelo Rio de Janeiro, com uma atitude mais libertária e bem a versão brasileira do movimento hippie, onde sexo livre, atitudes independentes e o combate à caretice começaram a ditar as novas tendências da juventude - e Gal, seria considerada a rainha do desbunde.
Com o sucesso do show Deixa Sangrar em cartaz no Teatro Opinião a partir de janeiro de 1971 no qual contou com a presença de um novato grupo chamado Som Imaginário no qual tinham músicos como o lendário tecladista Wagner Tiso e o multi-instrumentista Zé Rodrix e junto do grupo o percussionista Naná Vasconcelos, Gal explorou um repertório vastoso, que ia desde os colegas baianos passando por Jards Macalé, Capinam, Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, Geraldo Pereira, Roberto e Erasmo, até mesmo Lennon & McCartney e um poeta baiano que estava acontecendo no udigrúdi - Waly Salomão, que tinha voltado dos EUA e iniciado sua jornada na poesia marginal na época. Naquela época, o próprio poeta assinava como Waly Sailormoon  - nada lembrando o anime japoonês Sailor Moon, estava começando a trabalhar junto em um novo show, uma remodelação do Deixa Sangrar onde Waly assumia a direção com produção de Paulo Lima e cenografia do artista visual Luciano Figueiredo, e em vez do Som Imaginário - que era também banda de apoio do aclamado cantautor Milton Nascimento na época, uma banda tão incendiária em palco pela sonoridade: Lanny Gordin na guitarra elétrica, Novelli no baixo, Jorginho Gomes na bateria e Baixinho na percussão - os dois últimos eram membros de um grupo chamado Cor do Som, que nada mais era do que um grupo de apoio de outro conjunto que estava revolucionando a MPB, esses eram os Novos Baianos, do qual faziam partes Moraes Moreira (1946-2020) nos vocais e violão, Baby Consuelo e Paulinho Boca de Cantor nos vocais mais o poeta Luiz Galvão, que ao mesmo tempo, encabeçava com Moraes a dupla de frente da poesia sonora do grupo, e também junto dele estava o guitarrista Pepeu Gomes, que na época já era casado com Baby Consuelo à época. Em outubro, com uma série de shows no Teatro Tereza Rachel, grava-se por lá -Fa-Tal- Gal A Todo Vapor com a produção de Roberto Menescal e gravação de Jorge Karan, o projeto gráfico de Luciano Figueiredo e Oscar Ramos estampava além da forma escrita Fatal separada por hífens, além de destacar um close da boca bem vermelha de Gal com um microfone à frente de sua boca, e na contracapa uma extensão da imagem onde aparece o seu rosto a partir da boca e com violão com os dedos da mão na parte do braço do instrumento. O gatefold interno, além de imagens do shows, traz uma espécie de poesia visual, traz fotos de vista do Rio de Janeiro e dela com membros dos Novos Baianos - o que já é um deleite. O disco, lançado entre novembro e dezembro de 1971, é o terceiro álbum duplo já lançado ou segundo - pois Dez Anos Depois lançado naquele mesmo ano por Nara Leão foi lançado antes do de Gal, mas teve também Show em Simonal editado em 1967 pelo Wilson Simonal, embora não se tenha muito conhecimento da galera deste.
É com o primeiro disco que começamos a resenha do álbum, já com pedrada garantida e bem ao estilo da Gal na época - Dê um Rolê, criação magnífica da dupla neobaiana Moraes e Galvão, fazia sentido abrir pois era o cartão de visitas daquela geração mais libertária de padrões, mostrando um caminho que os fugia do medo da opressão e se dizendo amor da cabeça aos pés, a guitarra de Lanny e a bateria de Jorginho é icônica como um acompanhamento sonoro único; adiante, temos aqui um tema com forte presença no repertório da baiana em sua carreira e apresentando também um jovem compositor carioca - vindo do morro do São Carlos, o jovem Luiz Carlos dos Santos estava sendo apresentado ao mundo por meio de sua música, mas se tornaria mais conhecido como Luiz Melodia - apresentado à Gal por meio de Waly, aqui com Pérola Negra uma interpretação sublime que ajuda muito - os dois reviveriam a música 25 anos depois no Acústico MTV da própria cantora; em seguida, ainda temos também uma das primeiras criações da dupla Waly & Macalé presente nesse material: falo de Mal Secreto, cheia de indiretas à ditadura militar, lançado aqui por ela e no ano seguinte, seria Jards a lançar na sua versão, diferente daqui que vai por um ar mais acid blues com uma base bem pulsante; a próxima música é uma das primeiras das tantas que Caetano deixou para Gal gravar neste LP - a primeira versão aqui no disco de Como 2 e 2 é bem blues e baladista ao mesmo tempo, fala de um consolo de alguém quando a vê chorar e cantar, de um amor intenso com um arranjo bem viajandão onde o baixo e a guitarra se destacam muito, em especial a bassline de Novelli que é uma das mais lindas do disco; na sequência, vamos a outra canção lançada no show que rende altos elogios só de falar - Hotel das Estrelas entra como um algo mais no lado B do primeiro disco é uma bela criação vinda de Macalé com Duda Machado é uma viagem poético-sonora do eu-lírico que vê na juventude perder seus amigos seja para a ditadura ou para o vício em drogas, e que carrega um quê do rock do segundo álbum dela de 1969 (o do Tuareg) na energia marcada pela guitarra e pela voz da baiana; em seguida, temos aqui as raízes nordestinas fortemente presente através de um clássico da música criação de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, Assum Preto se destaca pela forma de cantar sobre a ave que tiveram de furar os olhos para poder cantar melhor, o jeito nordestino de cantar e o violão quase mal escutado são o destaque aqui; em seguida, temos outra canção que remete às raízes da eterna Gracinha nas terras baianas, o tema folclórico Bota a Mão nas Cadeiras tem como origem um samba-de-roda que trazia o jeito baiano de dançar, aqui com uma pegada mais forrock que lembra Novos Baianos e Alceu Valença ao mesmo tempo pelo suingue da guitarra e a levada rítmica; a próxima música do disco é apenas uma versão curtinha da música Maria Bethânia, composta em inglês por Caetano no exílio pedindo que sua irmã escreva uma carta, com a levada bem suave, quase jazzística onde Gal canta apenas o refrão; pra manter o astral enérgico dessa primeira parte do disco, ela traz uma música inédita também pelo próprio poeta de Santo Amaro - a marchinha Chuva, Suor e Cerveja aqui intitulada como Não Se Esqueça de Mim onde traz o espírito carnavalesco bem vivo dentro do repertório, e o arranjo oferece ao ouvinte um frevo-rock bem enérgico e viajandão; a primeira parte do LP termina com uma canção que carrega ainda a parte elétrica do show, Luz do Sol é uma criação dos poetas Carlos Pinto e Waly Salomão aborda as mudanças daqueles tempos ainda sombrios aqui no Brasil causados pelo AI-5, o arranjo traz aquele ar de psicodelia muito presente dos anos 60 nos arranjos quando vai por um lado mais leve, mas no refrão a guitarra de Lanny soa tão elétrica a nível hendrixiano.
O segundo volume do disco que entra com uma parte mais acústica, mais leve do que a agressividade sonora da primeira parte já dá uma música que serve como cartão de visita - Fruta Gogoia, tema que foi originalmente recolhido do folclore baiano onde uma mulher se apresenta, é quase uma introdução de Gal no segundo disco onde canta 40 segundos acapella; a próxima música é também curtinha - Charles, Anjo 45 traz aqui Gal cantando o refrão do tema de Jorge Ben lançado em 1969 sobre um malandro heróico em seus quase 30 segundos e dessa vez voz-e-violão passando rápido como se fosse quase um medley essa com a anterior; a seguir, temos aqui para nossos ouvidos uma versão diferente da que ouvimos na parte mais elétrica/roqueira desse disco de Como 2 e 2, aqui temos apenas Gal com sua voz e mandando ver no violão - afinição perfeita sem nenhum erro por aqui, e é nessa que temos a versão mais conhecida da música na voz dela e a mais tocada em rádios provavelmente; adiante, contamos com outro tema que é um velho conhecido do repertório da eterna e saudosa Gracinha que a apresentou de vez que é Coração Vagabundo - dessa vez sem Caetano pra dividir os vocais, e novamente é aquela canção onde fala sobre seu coração não se cansa de ter esperança e que no final afirma que quer guardar o mundo em si, mantém a doçura e a suavidade da primeira versão, com um violão bem executado e levando pra dentro a essência bossa nova que fez a canção ser imortalizada pelos dois; com um repertório bem autêntico, o disco ainda traz uma interpretação divina de Falsa Baiana - clássico samba da autoria de Geraldo Pereira dos anos 40/50 que Gal havia gravado em LeGal/Legal/Le Gal (1970) onde fala de uma suposta mulher que não traz muito das características autênticas de uma baiana lembrando até Carmen Miranda que carregava a imagem da mulher baiana em seus filmes - mantendo o esquema voz-e-violão, aqui ela ainda brinca em imitar sons de instrumentos tipo scat (e pensar que a gente só conheceria isso anos depois com Ed Motta, viu?); mantendo a parte mais ligada aos sambas presente no repertório, agora outro autor tem uma canção redescoberta pela juventude da época - Antonico foi criação de Ismael Silva dos anos 40 na qual fala do pedido pra alguém fazer ao tal Antonico um samba (vindo provavelmente de uma mulher) como se fosse por ela, e a melodia do violão soa divino aqui; adiante, o disco ainda acaba trazendo aqui uma versão belíssima e que supera até mesmo a de um dos autores, Sua Estupidez que Roberto e Erasmo compuseram em 1969, ano em que Roberto gravou no seu disco na época, usando da dor de cotovelo e da falta de sensatez da pessoa amada que não vê direito o amor real que o eu-lírico sente, aqui nesse disco, com Gal, o arranjo é mais intimista quando ouvimos a música - o que ajuda bem; a seguir, temos ainda outra versão bem mais estendida de Fruta Gogoia, onde Gal começa ainda no violão, mas interrompido por alguma coisa caindo onde pede "corta essa" deixando o público distraído nas risadas e continuando como se nada tivesse acontecido; o encerramento de vez desse disco fica por conta de uma música que se tornou até um dos hinos da geração do desbunde, Vapor Barato - criação de Macalé e Waly - trazia o desabafo dos jovens que se sentiam desvalorizados, com uma crítica velada à ditadura e fazendo menções sobre liberdade sexual
 e que ganha acompanhamento da base (Lanny, Novelli, Jorginho e Baixinho) a partir dos 4:37 da canção, caminhando por uma estética bem tropicalista fusionada com o blues elétrico inglês onde Lanny e Gal desfilam uma união de harmonias da guitarra com a voz enquanto no final da canção Gal grita e faz alguns vocalises e termina aplaudida.
Embora o disco tenha ficado pra história como a trilha sonora da juventude desbundada, que temia a caretice e preferia um modo de vida mais libertário, contra padrões da sociedade, ele também foi uma luz para a galera que tentava buscar ali uma forma de se manterem antenados no que estavam a cantar. Gal ainda excursionou pelo Brasil divulgando esse disco durante um tempo e iniciaria suas apresentações no exterior, em países da América do Sul e na Europa onde Gil, ainda no exílio em fins de 1971. Gal virava uma artista que sabia se inovar, e sabia muito bem aonde estava acertando a cada disco que lançava, no repertório e no arranjo e sendo até homenageada no Posto 9 da praia de Ipanema onde ficou conhecido como as Dunas da Gal onde havia também um pier demolido anos depois. Gal só voltaria mesmo ao estúdio em meados de 1973 para gravar sob a produção de Gilberto Gil o emblemático álbum Índia, lançado no mesmo ano, mas aí já é uma outra história. Com o tempo, se descobriu que Fatal foi uma luz não só para a geração 70, mas também para gerações que descobriam o disco e para as cantoras que buscavam se inspirar em Gal Costa como referência na voz e estilo, e se tornou presença constante em listas como a da Rolling Stone dos 100 Maiores Álbuns da Música Brasileira conquistando o 20º lugar junto de outros títulos. A nossa eterna Gracinha baiana nos deixou no último dia 9 de novembro, porém, deixou sua voz ainda a ecoar pelos ouvidos mundo afora através de seus registros.
Set do disco (seguindo a tracklist original do vinil, de 1971):
1 - Dê um Rolê (Moraes Moreira/Luiz Galvão)
2 - Pérola Negra (Luiz Melodia)
3 - Mal Secreto (Waly Salomão/Jards Macalé)
4 - Como 2 e 2 (Caetano Veloso)
5 - Hotel das Estrelas (Jards Macalé/Duda Machado)
6 - Assum Preto (Luiz Gonzaga/Humberto Teixeira)
7 - Bota a Mão nas Cadeiras (recolhido do folclore tradicional baiano)
8 - Maria Bethânia (Caetano Veloso)
9 - Não Se Esqueça de Mim (Chuva, Suor e Cerveja) (Caetano Veloso)
10 - Luz do Sol (Carlos Pinto/Waly Salomão)
11 - Fruta Gogoia (recolhido do folclore tradicional baiano)
12 - Charles, Anjo 45 (Jorge Ben) - vinheta
13 - Como 2 e 2 (Caetano Veloso) - versão acústica
14 - Coração Vagabundo (Caetano Veloso)
15 - Falsa Baiana (Geraldo Pereira)
16 - Antonico (Ismael Silva)
17 - Sua Estupidez (Roberto Carlos/Erasmo Carlos)
18 - Fruta Gogoia (recolhido do folclore tradicional baiano) - versão 2
19 - Vapor Barato (Jards Macalé/Waly Salomão)

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