Um disco indispensável: Os Afro-Sambas de Baden e Vinicius - Baden Powell & Vinicius de Moraes (Forma/Companhia Brasileira de Discos, 1966)

Na segunda metade dos anos 1960, uma coisa já estava certa... anos mais adiante, um certo rockstar polemista diria o que coincide com a frase inicial "A bossa já não é tão nova como pensam os americanos", e isto não era fato. Bossa nova já havia se tornado uma tendência saturada depois do realizado concerto no Carnegie Hall em novembro de 1962 onde João Gilberto, Tom Jobim e até mesmo Sergio Mendes já provavam que o sucesso para eles era mais possível no exterior e até mesmo na América do que somente no Brasil naqueles tempos, o crescimento do gênero pelo mundo despertou interesse em músicos internacionais aclamados na vontade de gravarem esse novo som brasileiro a exemplo de nomes do jazz como Stan Getz, Charlie Byrd, Lionel Hampton, Coleman Hawkins, Herbie Mann e até mesmo o lendário trompetista Miles Davis - e Astrud Gilberto, já divorciada de João, decidira tornar-se fora do país a porta-voz do gênero interpretando clássicos em inglês, fugindo um pouco da poesia vinda daqui feita por Vinicius. Vinicius de Moraes, o poeta e também embaixador, não somente dos países que o Itamaraty lhes enviava para representar o Brasil, mas também da poesia brasileira e da bossa nova, uma vez que sua carreira como compositor só surgiu graças ao musical Orfeu da Conceição, em que se une a Tom Jobim e dali em diante, compõem para nomes como Sylvia Telles, João, Lúcio Alves, Elizeth Cardoso e a lista cresceria mais adiante. Já não era mais embaixador em Montevidéu, capital uruguaia, preferiu seguir no Brasil com sua jornada artística - e trabalhando com outros músicos, dentre eles Francis Hime, Edu Lobo, Carlos Lyra e um violonista que levava o nome do inventor do escotismo - Baden Powell, um prodígio do violão que já gravara na Philips desde 1959 com Apresentando Baden Powell e Seu Violão, e quatro anos depois trabalhava com Vinícius em parcerias como Samba em Prelúdio, Labareda e Só Por Amor - marcaram ali a brilhante parceria entre o escoteiro do violão e o Poetinha, que já estava sempre envolvido com gente diferente, e unindo até nas festas em sua casa com a então esposa Lúcia Proença - gente que ia desde Francis, Edu até o jovem Nelson Motta nas célebres Viniçadas, encontros de amigos na residência do então casal. Naquela altura, já iniciaria também sua carreira fonográfica, uma coisa que é até interessante, pois ele inaugurara o selo Elenco, criação do ex-diretor artístico da Odeon, Aloysio de Oliveira para poder lançar uma série de músicos e ter um catálogo mais alternativo e independente com gravações no estúdio Rio Som (onde também trabalhava com dublagem) - porém, Vinicius dividira o disco com a atriz de 34 anos chamada Odette Lara (1929-2005) trazendo arranjos do saxofonista Moacir Santos e música de Baden Powell - o disco acabou por contar com diversas parcerias da dupla, uma delas Berimbau e também Samba da Bênção entre outras. E em três anos, uma nova ideia surgiria para um disco futuro após o Poetinha dividir mais um long-playing pela Elenco com o Quarteto em Cy e com Baden novamente, mas, por outro selo - também alternativo, com espaço para os artistas mais voltados ao jazz e à música instrumental.
A Forma era um selo jovem criado por Roberto Quartin, um rapaz apaixonado por música que chegou a estudar com nomes como o inovador maestro César Guerra-Peixe e com o lendário Moacir Santos, porém, decidiu fazer história nos bastidores da música, e com o amigo Wadi Geabra, na qual lançaram nomes como Eumir Deodato, Luiz Carlos Vinhas, e a estreia de um conjunto vocal feminino - o Quarteto Em Cy, que lá fora chegou a ser chamada como The Girls From Bahia. A Forma até 1965 tinha uma arte gráfica moderna muito próxima dos discos americanos, trazendo o gatefold (capa dupla) com os detalhes técnicos e mostrando os músicos na ficha técnica, algo muito raro para aqueles tempos. Vinicius ficara fascinado com um disco trazido por seu amigo Carlos Coqueijo direto da Bahia - gravações ao vivo de sambas de roda e cantos de candomblé acompanhadas de variações de berimbau em diversas modalidades rítmicas, o que originou a parceria entre Baden e Vinicius, que, além de ser um fascinado pela umbanda, assume ser o branco mais preto do Brasil - o que esperar mais dele? O disco que vamos falar, surgiu logo após um convite de Quartin, interessado nessa série, teve como uma condição exigida por Vinicius - a de que fosse feito com um máximo de liberdade e um mínimo de interesse comercial, algo que nem todos os discos da Forma tinham, pois não atraíam muito o público popular. Com a produção de Quartin e  Geabra, as gravações realizadas nos dias 3, 4, 5 e 6 de janeiro de 1966 no qual contou com Reisinho na bateria, Jorge Marinho no contrabaixo, Nicolino Copia, o Copinha na flauta, Pedro Luiz de Assis no sax tenor e Aurino Ferreira no saxofone barítono, a percussão conta com uma forte cozinha rítmica: Alfredo Bessa no atabaque, Nelson Luiz no atabaque pequeno, Alexandre Silva Martins no bongô, Gilson de Freitas no pandeiro, Mineirinho no agogô e Adyr José Raimundo no afochê, e a presença vocal do Poetinha mais os vocais harmonizados das baianas do Quarteto em Cy e um coro misto que contava até com Eliana Sabino, filha do escritor Fernando Sabino, e também a atriz Betty Faria, além da mística orquestração feita por Guerra-Peixe que fez toda a diferença. O projeto gráfico de Goebel Weyne mostrava um vermelho destacável de fundo e a imagem do escoteiro do violão com o Poetinha em um momento de inspiração clicada por Pedro de Moraes, filho de Vinicius - e que também além de ser o autor do disco com Baden, assina um texto detalhado sobre o disco, a parceria com Baden e relembra o Maestro - Tom Jobim - no final do texto mencionando o Bar Veloso, onde surgiu o clássico Garota de Ipanema em 1962. 
O disco abre logo de cara com um clássico, obviamente o afro-samba principal Canto de Ossanha, cuja introdução marcada pelo violão de Baden com a flauta de Copinha, uma letra que usa as coisas do amor numa pegada bem balanceada, e o refrão dá a prova de ser um clássico atemporal - e que fora gravada por diversos artistas ao longo do tempo, como Elis Regina e sampleado por Marcelo D2 mais adiante; a faixa seguinte é um canto de exaltação a outro orixá importante, Canto de Xangô não erra no conceito, e a batucada garante muito, Vinicius canta super bem com suavidade; os ecos poético-sonoros da bossa nova ainda prosseguem muito em Bocochê, que significa segredo, é sobre o amor, o mar e em especial sobre Iemanjá - sim, lembrando você, caro leitor, que este é um disco onde a poética é carregada de elementos do candomblé, e Vinicius era um grande entendedor do assunto - e a percussão não erra na sequência rítmica, o que é uma espécie de fluxo da batida (é isso mesmo ou tô errado nas ideias?); o disco ainda há de continuar com seus cantos de exaltação aos orixás, e assim como na faixa anterior, a rainha dos mares é reverenciada na belíssima Canto de Iemanjá, na qual ela anuncia a sua presença e ainda cativa e atrai os homens para uma coisa mais casual (mas não pra tanto) sendo uma sereia que tem a parte de peixe da cintura para baixo - e aqui, não decepciona a ninguém quando ouvimos o belo som do violão e dos sopros, além do coro dando uma embelezada que é precisa de ser notada quando se escuta o disco; em seguida, com outra primorosa pérola e um clássico digamos até mesmo do samba - refiro-me a Tempo de Amor, um samba bem mais direcionado a falar de um tema fora do conceito das canções, que é sobre a umbanda e seus orixás, fala do sofrimento e dos amores e admitindo que não existe coisa mais triste do que a paz, o arranjo de samba vai muito ao estilo da época, mas o violão de Baden dá o tom que a canção precisava - a canção tem o subtítulo de Samba do Veloso por ter sido escrito no bar Montenegro, que também ficou conhecido como Veloso (mas nada a ver com o Caetano); a seguir, mantendo o peso do ritmo, mas com uma poesia impressionante sobre os personagens da umbanda, o Canto do Caboclo Pedra Preta, uma entidade em forma de um líder indígena, dizendo que o caboclo adora o som de um pandeiro e de um violão, e que acontece um duelo entre os instrumentos nos versos, interrompido pelo canto fora de hora do galo no terreiro - aqui a beleza sonora mostra esse quê de Brasil enraizado em suas crenças e suas origens africanas em especial; em seguida, outro belo tema desfila neste que é o mais belo álbum da música popular brasileira pré-tropicalismo, Tristeza e Solidão já nos dá um pouco mais de serenidade, onde Vinicius já abre com o verso "Sou da linha de umbanda, vou no babalaô" num apelo ao pedir para que traga sua amada de volta, inconformado, põe seu drama com a ausência de sua amada, e com uma sofisticação bem no jeito bossa nova onde o Quarteto em Cy também se destaca nos vocais; este disco encerra de vez com mais outra pérola do repertório - logo com Lamento de Exu, mais um resultado brilhante da poesia viniciana com o violão do carioca com nome de escoteiro, a letra (não gravada) é sobre o convite de uma festa para Exu e mencionando personagens ligados ao mundo dos orixás, e com um canto de sereia inspirado feito por Dulce Nunes, que já havia feito projetos ligados à bossa nova como a peça Pobre Menina Rica dois anos antes, e que com a sofisticação que o arranjo pede, e com esse toque cristalino é que esse álbum fecha de vez com chave de ouro.
Ok, tudo bem, a Forma, que apesar dos seus discos mais voltados ao jazz, trouxe aqui um disco que mostrou muito mais do que somente jazz - era o encontro perfeito de duas cabeças da música popular brasileira trazendo pra um público o mundo das religiões afrobrasileiras numa época em que esse assunto a grande público ainda era meio que um tabu. Depois deste disco, Vinicius seguiu sua vida diplomática até ser expulso do Itamaraty por telegrama a pedido do Presidente da República, o general Costa e Silva em 1968, sob o pretexto de eliminar os boêmios e fanfarrões presentes na entidade. Menos mal, o Itamaraty perdeu um embaixador e ele seguiu seus compromissos artísticos, formando até novos parceiros como o jovem compositor e violonista Toquinho com o qual durou 10 anos até a partida do nosso eterno Poetinha, em 9 de julho de 1980. Baden seguiu sendo aclamado como músico também, recheado de parceiros como Paulo César Pinheiro e em 1981 homenageou o parceiro dos afro-smambas em um disco chamado De Baden Para Vinicus, e 15 anos depois, converteu-se em evangélico onde deixou de pronunciar expressões religiosas afro-brasileiras, e em 26 de setembro de 2000 aos 63 anos. Sete anos depois, o disco que já era cultuado mundialmente e lembrado como um dos clássicos da segunda geração da bossa nova (1963 até 1968, provavelmente) e da MPB, ganhou status em figurar na 29ª posição dos 100 maiores discos de música brasileira, organizada aqui pela Rolling Stone, uma prova de que este é um belo registro de um dos mais diversos parceiros de Vinicius e justamente o escoteiro do violão, que juntos deixaram em Os Afro-Sambas um legado intocável pra história dessa rica cultura brasileira.
Set do disco:
1 - Canto de Ossanha (Vinicius de Moraes/Baden Powell)
2 - Canto de Xangô (Vinicius de Moraes/Baden Powell)
3 - Bocochê (Vinicius de Moraes/Baden Powell)
4 - Canto de Iemanjá (Vinicius de Moraes/Baden Powell)
5 - Tempo de Amor (Vinicius de Moraes/Baden Powell)
6 - Canto do Caboclo Pedra Preta (Vinicius de Moraes/Baden Powell)
7 - Tristeza e Solidão (Vinicius de Moraes/Baden Powell)
8 - Lamento de Exu (Vinicius de Moraes/Baden Powell)

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