Um disco indispensável: Botellita de Jerez - Botellita de Jerez (Polydor/PolyGram Discos, 1984)

Cidade do México, 19 de setembro de 1985, sete horas e 19 minutos da manhã: o que parecer o começo de um dia tranquilo, se tornaria em poucos momentos um drama que comoveria o mundo inclusive, um terremoto abalava o país e despertava aos poucos uma nação do silêncio velado pelo poder. O governo, que tentou ajudar a encontrar pessoas nos escombros, ficou atrapalhando e deixando muita gente desnorteada e frustrada contra a tentativa do poder tentar limpar a imagem do país, que em pouco tempo, receberia mais uma Copa do Mundo em 1986 com a Argentina de Maradona sendo bicampeã com uma campanha incrível e o momento "mano de Dios". Mas o futebol aqui não é o nosso foco, pois, dias antes do terremoto, uma casa de espetáculos havia sido construída na Cidade do México, porém, não era uma casa de espetáculos qualquer. Era o lendário Rockotitlán, que abrigaria o novo cenário roqueiro que estava surgindo durante anos no obscurantismo profundo depois que o governo de Luis Echeverría proibira o rock depois que aconteceu o festival de Avándaro, o chamado Woodstock mexicano em setembro de 19741. Com a proibição do gênero rebelde e revolucionário do século XX justamente no país dos mariachis, rancheiras e corridos - a música regional sempre foi forte no país, que saibam bem, enquanto o rock no restante dos anos 1970 era obrigado a se esconder nos inferninhos clandestinos que se tornaram conhecidos como hoyos funkies eram os lugares ideais para curtir, ouvir rock enquanto fosse tempo até o momento de a polícia invadir e acabar com as festinhas secretas. Muitas bandas, que na época ainda fazia rocks cantados em inglês, aos poucos, tiveram de abandonar essa estética, no caso dos Three Souls in My Mind, tornando-se El Tri alguns anos mais adiante, os mascotes (jovens) dos Green Hat Spies mudariam-se para Sombrero Verde e futuramente o nome de Maná, Kenny and The Electrics virou Kenny y Los Eléctricos e por aí vai. A história do Rockotitlán basicamente coincide-se com a história de um grupo nascido dois antes, o Botellita de Jerez, e isso, porque a casa noturna era propriedade de um dos integrantes, o vocalista e guitarrista Sergio Arau, que também é envolvido com artes visuais como pintor e cartunista colaborando em revistas, jornais e em livros infantis, acredite se quiser. O conjunto musical Botellita de Jerez surgiu em 1983 quando Arau tinha em mente a ideia de fusionar rock com elementos mexicanos desde a música regional - o son, os corridos, as rancheiras e até a cumbia, gênero caribenho que também fez fama no país - até mesmo a lucha libre, de um jeito mais enérgico, vibrante e teatral.
Mas, Arau - que é filho de um dos grandes nomes da comédia, Alfonso Arau, e irmão do humorista e apresentador de televisão Fernando Arau - não estava sozinho, para o Botellita existir como banda ele teve a presença de Armando Vega Gil no baixo e Francisco Barrios na bateria - cada um tinha uma forma de ser chamado, no caso de Arau era El UyUyUy, enquanto Armando era El Cucurrucucú e Barrios denominado El Mastuerzo. Muito antes do Botellita, Arau já tinha montado banda de rock a princípios dos anos 1970, chamada La Ley de Herodes, que chegou a tocar num evento antecedendo o tão famoso festival de Avándaro. Após fazerem alguns shows considerados não oficiais, eles lançam de cara o tão esperado primeiro disco - assinando com o selo Polydor, eles entram em estúdio logo gravando o que é considerado a pedra fundamental do guacarock - o rock na sua mais pura e melhor tradução mexicana como dito antes, além de contar com Oscar Sarquiz no papel de produtor, a capa - um quê de irreverência teve a ideia concebida pelo grupo, mas feita por Arau e as fotos icônicas de Lourdes Grobet que mostravam o estilo autêntico do Botellita. O disco logo começa de cara com um tema que já serve como cartão de visitas do grupo, Guaca Rock era um manifesto trazendo o rock de volta ao mainstream chicano à tona, apresentando ao mesmo tempo a proposta que eles têm a oferecer unindo guacamole com o gênero, unindo o peso do rock cinquentista ao melhor estilo mexicano - com uma cara bem new wave para aqueles tempos; a faixa seguinte, brinca muito com o estilo modernoso do new wave e punk em Heavy Metro, onde Arau conta e canta sua história em um trem aglomerado na qual se perde pelo destino com tanta gente por perto; não perdendo o bom humor, a banda acaba por debochar do desespero pelo sucesso através de Buscando la Fama que visa nessa coisa obssessiva e com direito a um riff marcante de Arau, guitarrista excepcional; como todo bom disco de estreia, pode haver alguns momentos que passam despercebido, apesar da boa fusão de rock com elementos chicanos, De Fabula acaba mostrando a forma como mexicanizam o blues e o reggae numa metáfora sobre o que o escritor grego Esopo pensaria sobre os tempos atuais e sobre as mudanças através dos milênios sobre os valores ensinados nas suas fábulas célebres; em diante, a banda constrói em cima de uma pedrada o que soa como um punk chicano, ¡Saca! parece ser mais uma brincadeira com a situação da vida urbana dos mexicanos envolvendo assaltos onde transeuntes acabam pedindo que tirem tudo o que pertence, aqui guitarra e bateria fazem seu belo serviço enquanto Arau canta e leva a um final matador bem hard rock com um trocadilho a "se acabó" com "sacabó" de forma única e divertida; adiante, a banda sabe muito bem unir elementos da cultura do país de Cantinflas com a essência roqueira, como no caso de Charrock And Roll, que, ao mesmo tempo, traz referências à jornada mexicana dos grupos para sobreviverem com o rock nos tempos difíceis, os coros do refrão e a linha baixo-bateria mais as expressões locais ajudam muito nesse ritmo do grupo; chegando na próxima música, como se derrubassem a porta a um chute, San Jorge Y El Dragón, traz a narrativa um homem que vê na imagem do santo enquanto dirige um caminhão coisas cotidianas, e logo cita a inflação e certamente comete alguma besteira no trânsito, guitarra dando o ar da graça; mostrando que ainda tinham mais a oferecer, a banda mostra afinação pura em Oh Dennis, uma brincadeira com a pronúncia do inglês e brinca um pouco com a americanização dentro do território do mariachi, a levada rockabilly faz soar bem anos 50 pela pegada, com a exceção de algumas passagens de guitarra que dão uma distorcida que dá certo aqui; adiante, temos na próxima música um riff de guitarra simulando o som de uma sirene que dá a deixa para Alármala de Tos, envolvendo uma moça corcunda chamada Lola que perdidamente vive em uma família a ponto de matar seu pai - a música foi inspirada em uma revista sensacionalista conhecida por suas histórias macabras e policiais, com uma levada meio Police pela parte instrumental; enquanto achamos que tudo estaria perdido, eis que a banda dá outra cartada sem que percebamos - Los Maderos de San Juan singelamente trata de uma canção folclórica mexicana sobre os lenhadores que pedindo aos seus chefes algo para comer e beber, nunca era concebido, aqui há rock puro com diversas passagens instrumentais matadoras com solos de guitarra incríveis; o encerramento do disco acaba sendo a prova de que o Botellita veio para ficar, a vinheta El Final traz uma pauleira da grossa (sente a guitarra ao ouvir) e em seguida uma mensagem que, se rodar o disco ao contrário, entenderá a mensagem como "la música viva siempre es mejor", ou seja, a música viva tocada de forma natural sempre é melhor - e como prova de que o rock ainda resistia e renascia mesmo que timidamente no México do meio dos 1980.
Com o sucesso do disco, marcado graças a Heavy Metro - um dos principais temas do LP, a banda consegue a consagração definitiva no cenário mexicano, e logo em seguida, conseguiu abrir as portas para o rock deixar de ser algo imoral - passados 14 anos depois de Avándaro, o gênero fazia as pazes depois de todo o ocorrido, e isso abriu portas para Caifanes, La Lupita, Maná, Tijuana No, Maldita Vecindad e o Café Tacvba posteriormente, assim como El Tri também deu essa mãozinha amiga. O sucesso do primeiro LP ajudou e tanto o trio a continuarem a compor outro disco sem perder a essência e o bom humor, que foi La Venganza del Hijo del Guacarock lançado em 1985, mas aí é outra história. A influência deste disco foi extremamente importante para o rock mexicano, que ajudou a colocar o Botellita como um dos principais grupos, e ajudando a figurar em listas como a do site Cultura Colectiva que os colocaram como o 13º álbum importante do rock na terra dos guacamoles, enquanto o site Región Cuatro os consagraram com o 4º lugar dos melhores álbuns de rock mexicano e a revista especializada no rock latino Al Borde os premiaram com o 51º lugar na célebre lista dos 250 Melhores Álbuns de Rock Iberoamericano, nada mal pra quem conseguiu fazer de um guaca rock a sua melhor receita de sucesso.
SET DO DISCO
1 - Guaca Rock (Sergio Arau/Armando Vega Gil/Francisco Barrios)
2 - Heavy Metro (Sergio Arau/Armando Vega Gil/Francisco Barrios)
3 - Buscando la Fama (Sergio Arau/Armando Vega Gil/Francisco Barrios)
4 - De Fabula (Sergio Arau/Armando Vega Gil/Francisco Barrios/Luis Alejandro Vélez)
5 - ¡Saca! (Sergio Arau/Armando Vega Gil/Francisco Barrios)
6 - Charrock And Roll (Sergio Arau/Armando Vega Gil/Francisco Barrios/Mila Ojeda)
7 - San Jorge Y El Dragón (Sergio Arau/Armando Vega Gil/Francisco Barrios)
8 - Oh Dennis (Sergio Arau/Armando Vega Gil/Francisco Barrios)
9 - Alármala de Tos (Sergio Arau/Armando Vega Gil/Francisco Barrios)
10 - Los Maderos de San Juan (canção folclórica mexicana, adaptação: Sergio Arau/Armando Vega Gil/Francisco Barrios)
11 - El Final (Sergio Arau/Armando Vega Gil/Francisco Barrios) - vinheta

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