Um disco indispensável: Caifanes - Caifanes (RCA Ariola/BMG Music, 1988)

Entramos nos últimos anos da década de 1980, enquanto isso, o México estava se reerguendo do terremoto de setembro de 1985 que tirou muitas vidas e prejudicou muito o país, aos poucos, o rock - gênero que nos anos 1960 teve sua expansão graças a conjuntos como Los Locos del Ritmo, Los Rebeldes del Rock, Los Hooligans, Julissa Y Los Spitfires e em especial os Teen Tops que contavam com seu principal difusor do rock, a carismática voz de Enrique Guzmán, além do jovem que aos poucos tornava-se o rei do rock mexicano, Javier Bátiz - guitarrista virtuosemente precoce que tinha entre seus discípulos um jovenzinho chamado Carlos Santana, futuro ícone do rock e da chamada world music, é claro. Mas, aos poucos, o rock ficou relegado ao ostracismo no país graças a dois fatores - o massacre de Tlatelolco (1968) em meio a uma manifestação estudantil por mais democracia contra um governo autoritário administrado por um único partido, o PRI (Partido Revolucionário Institucional) que já tinha como 50 anos no poder, e em seguida o Halconazo, massacre que mantinha um clamor pela democracia, no mesmo ano em que um evento de corridas recebia o famoso festival de rock de Avándaro (1971), o Woodstock mexicano - com a má repercussão midiática do festival, o rock foi banido definitivamente, marginalizado de forma infeliz. Nessa época, grupos como La Revolución de Emiliano Zapata, Chac Mool, La Ley de Herodes, Peace and Love, Three Souls In My Mind, o próprio Bátiz, Dug Dug's encontravam em lugares abandonados, seus refúgios para tocarem rock, os hollos funkys (inferninhos funky), alguns com bandas iniciando - no caso dos Green Hat Spies, futuramente conhecidos como Maná, tinham que ser ligeiros sob o risco da polícia descobrirem seus esconderijos. Vamos para 1983 - o momento em que o rock começou a deixar de ser timidamente um tabu, recebe a força quando nasce uma vontade de realmente fazerem rock em espanhol e acontecerem de vez. Surgia o selo alternativo Comrock, onde gravavam El Tri (ex-Three Souls in My Mind), Kenny y Los Elétricos, Casino Shangai, Ritmo Peligroso e Luzbel. Mas também surgia um grupo que trazia todo o mexicanismo pra dentro do gênero, criando um estilo deles, o guacarock - Botellita de Jerez liderado pelo ex-La Ley de Herodes, Sergio Arau - músico completo e artista plástico dos mais brilhantes. Com o sucesso dos espanhos Radio Futura, Mecano, Los Toreros Muertos e de Joaquín Sabina, os argentinos Charly García, Soda Stereo, Miguel Mateos-Zas e Virus, a gravadora BMG Ariola decide investir pesado no gênero e nos conjuntos iberoamericanos com um selo que tornou-se marca da época: o inesquecível Rock en Tu Idioma, fortalecendo mais o rock no idioma de Cervantes. O produtor encabeçado de contratar diversos artistas foi o argentino Oscar López, que, em pouco tempo já estava produzindo grupos - dentre estes, mexicanos como Neón, Maldita Vecindad Y Los Hijos del 5to Patio (com um toque bem chicano), La Cruz, Fobia (um grupo com integrantes na faixa dos 17/18 anos), a tecladista Margarita Saavedra com o pseudônimo de Alquimia, e um conjunto formado por membros que adotavam uma estética gótica, desde os cabelos até a sonoridade do rock britânico - estes eram os Caifanes, considerados também divisores de águas no rock mexicano.
Saúl Hernández, Diego Herrera, Sabo Romo e Alfonso André,
o quarteto que lançou Caifanes. (Reprodução/Wikipédia)
Surgido em  1985 com a ideia de um jovem chamado Alejandro Marcovich de montar uma banda a convite de seu irmão Carlos (cineasta hoje acusado por assediar diversas atrizes), que estava desenvolvendo uma tese para seu curso de cinema. O grupo que se chamava Las Insólitas Imágenes de Aurora contou com Alejandro, Alfonso André na bateria e um jovem cantor de nome Saúl Hernández tocando baixo - na época, membro de um conjunto chamado Frac e que só topou dias antes, tocando baixo e depois guitarra - mas, logo veio o primeiro de uma série de desentendimentos entre ele e Alejandro, e depois o grupo desintegrou-se mesmo com alguns registros. Saúl logo se juntou a Diego Herrera, tecladista e saxofonista num projeto que se chamava Caifanes - anotem esse nome, o termo foi inspirado na questão de serem resistentes ao engano, de verem sempre o mundo como um abismo povoado de prodígios. Em janeiro de 1987, a formação surge com Herrera e Hernández mais Sabo Romo ao baixo e Juan Carlos Novelo na bateria, e sua primeira apresentação foi em abril na lendária casa noturna Rockotitlán, onde diversos grupos como El Tri, Maná, Botellita de Jerez, Maldita Vecindad entre outros. Novelo não pôde atuar nessa primeira apresentação, sendo substituído pelo baterista de Ritmo Peligroso, Jorge Arce - pouco tempo depois, Novelo saíra deixando a vaga aberta, e a opção mais viável era Alfonso André, que já havia sido do Insólitas Imágenes e tinha passagens em outros conjuntos À época, e houve uma breve passagem do guitarrista Santiago Ojeda no conjunto, que durou pouco tempo fazendo com que o Caifanes brevemente se tornava o quarteto dos primeiros anos. Na busca pelo lugar ao sol, a banda buscava seu devido espaço no cenário e tentando agradar executivos de gravadoras que já eram mais acostumadas com a sonoridade local, os ritmos mexicanos - porém, um baque fez com que a gravadora CBS, que estava de princípio, interessada no grupo, um estranhamento com os diretores do selo com o visual e as letras do grupo chocaram de vez - fazendo assim com que os Caifanes logo fossem advertidos de que a gravadora procurava vender discos, não caixões e esse foi um duro golpe para os mexicanos. Até que, por uma favorável intervenção do destino, foram convidados a abrirem um concerto de Miguel Mateos junto da banda Neón - e logo a BMG Ariola estava interessada em contratar as duas bandas. Não deu outra: o show no antigo Hotel de México realizado no dia 31 de outubro de 1987 fez com que dessem o aval para contratarem as duas bandas que estavam abrindo para Zas. Contrato assinado, a banda decidira entrar em estúdio bem no período de dezembro, logo no eclipse de 1987, com o produtor argentino Cachorro López, à época, baixista da banda Zas, embora Oscar tenha também tido envolvimento na produção conforme disse na série Rompan Todo, da Netflix - porém, seu envolvimento seria mais adiante - as sessões foram na Cidade do México nos estúdios da PolyGram, no estúdio Gil-Toussaint e Gas e em Buenos Aires nos lendários estúdios Panda. 
Lançado em agosto de 1988, o primeiro álbum levando o nome do grupo foi um grande estouro logo lançado, embora tenha demorado meses para acontecer, algo muito comum para um conjunto estreante. A abertura do disco traz uma faixa cujo título é quase um pedido, uma necessidade - Mátenme Porque Me Muero logo trata sobre alguém que não aguenta mais e deseja morrer e ser enterrado com uma foto de sua amada, o peso e a levada que remete a The Cure ainda ganham toques latinos dando essa identidade sonora precisa ao grupo, e a bateria e o baixo fazem um belo serviço na hora de mostrarem a fusão de pós-punk com salsa; na sequência, o grupo investe num som nervoso e pulsante que remete ao punk, em Te Estoy Mirando, o que parece ser uma história de adolescente que sente um desejo por uma garota e a fica observando e já não tem mais como escapar dessa sensação obsessiva, aqui a guitarra de Saúl mostra um som matador e o teclado simulando o som de marimba dá essa pegada bem new wave inclusive, um tiro certeiro logo de cara; em seguida, o clima de rock gótico europeu permanece até mesmo na poesia da faixa seguinte, Amanece consegue equilibrar esse clímax Sisters of Mercy/Cure com a morbidez do eu-lírico do personagem, que não tem lá muito ânimo para mais um dia, e esbraveja no refrão que nada e ninguém irá o calar, só vai parar quando morrer, o teclado que imita um cravo e a guitarra agressiva marcam aqui no arranjo desta; já na próxima música, temos algo bem mais sombrio nos arranjos de ¿Será Por Eso? que ajuda e muito a transformar a loucura e a solidão em algo mais profundo, suas incertezas, e envolve a pessoa num sanatório - certamente por causa do tratamento de choque, o rock com uma levada mais baladista, vai mais profundo pelo arranjo com um solo de sax de Herrera puxando o final da canção e a voz de Saúl chega a soar algo que beira o melódico, mas não tanto - menos mal? Há quem diga que certas canções mostrem que o perfeccionismo para uma banda não é problema, e a prova disto está em Nunca Me Voy a Transformar en Tí, na qual um rapaz promete oferecer tudo a uma pessoa que ama, sabendo que nunca se transformará igual a esta, a faixa traz um ritmo mais voltado ao funk/soul, logo percebendo pelo baixo de Sabo e a guitarra de Hernández puxando um fraseado mais melódico; marcando logo de cara pela introdução arrepiante, aqui outro grande destaque do repertório do disco que é Viento, o pedido de alguém que pede ao vento que o leve para mais próximo de sua amada e certamente os mantenham unidos ao infinito, a introdução bem dark, com um arpeggio de guitarra e um solo que surge no meio mostram a banda sintonizada musicalmente; adiante, o grupo se supera de vez na hora de mandar ver em temas que superam a criatividade, é como no caso de Cuéntame Tu Vida e o retrato de alguém que parece se afogar na bebida tentando ouvir a história de alguém e tentando encontrar uma cura para essa amargura sentimental, o arranjo no melhor estilo darkwave (pelos synths e guitarra) funciona bem, soando próximo a The Mission inclusive; em seguida, como qualquer disco de estreia, a banda pode ter uma surpresa escondida para os ouvidos interessados, e neste caso, La Bestia Humana, uma canção que fala sobre os defeitos de uma pessoa e o lamento desta porque acha que está sendo transformada em algo que não é, traz como grande surpresa uma canja sonora: enquanto ao longo do disco, quem manda ver é Saúl na guitarra, desta vez a presença de Gustavo Cerati (1959-2014), então integrante do Soda Stereo, preserva a qualidade que essa música preza total, além da pulsação do baixo que é o grande créme de la créme do destaque sonoro; encerrando o disco, a presença de outra pessoa que deu um empurrãozinho para este disco acontecer, o produtor Cachorro López deu uma mão tocando stick (guitarra sem um corpo, mas com um braço mais longo onde tenha guitarra e baixo junto) em Nada, trazendo na poesia algo que exponha esse lado sombrio e amargo do eu-lírico, com a guitarra chegando a imitar sitar indiana com uma percussão - influência forte de música oriental e que ganha um peso de balada rocker nos minutos finais; o disco, apesar do sucesso, teve que precisar de um impulso maior inclusive para a banda e este impulso foi de um tema (originalmente lançado em um EP) chamado La Negra Tomasa, na verdade uma releitura e que com os Caifanes mostrou ser boa, mostrando uma boa fusão de música caribenha com rock alternativo, logo uma possível influência pura de Santana, e com uma faixa instrumental chamada Bilongo na qual contamos com o sax de Herrera tocando aqui ao longo desta - as duas faixas na reedição CD de 1993 estão unidas, e outro tema que entrou nessa reedição foi Perdí Mi Ojo de Venado - também do mesmo EP da faixa anterior, um rockzinho bem no estilo dos 80 que fala de uma pessoa que acaba por perder um amuleto tão valioso, sua proteção contra toda canalidade, e aqui a base sonora se supera.
Com o sucesso do EP de La Negra Tomasa, o disco de estreia dos Caifanes fortalece o impacto do novo rock mexicano e logo influenciando uma nova geração de músicos e logo a consagração do grupo de vez, obviamente, a partir daí, a coisa é outra, e o sucesso do primeiro disco deu a deixa para que a banda seguisse mostrando o melhor de sua música, e, desta vez com Alejandro Marcovich na guitarra - fazendo o grupo se tornar um quinteto logo durante as gravações de El Diablito, lançado dois anos depois, mas aí já é uma outra história. A influência enorme do Caifanes dentro do rock mexicano é enorme, apesar de depois terem deixado as influências dark de lado mais adiante, e muitos deles guardam até hoje este clássico que figura em listas como a do antigo site Región Cuatro, que a consagrou entre os 70 melhores discos do rock mexicano na 40ª posição, e já a revista Alborde deu o (sem trocadilhos por favor) 69º lugar na lista dos 250 Melhores Álbuns de Rock Iberooamericano dando um belo destaque da mistura de dark rock europeu da época com algo mais tropical.
SET DO DISCO (VERSÃO ORIGINAL):
1 - Mátenme Porque Me Muero (Saúl Hernández)
2 - Te Estoy Mirando (Saúl Hernández)
3 - Amanece (Diego Herrera)
4 - ¿Será Por Eso? (Saúl Hernández)
5 - Nunca Me Voy a Transformar en Tí (Saúl Hernández)
6 - Viento (Saúl Hernández)
7 - Cuéntame Tu Vida (Saúl Hernández)
8 - La Bestia Humana(Saúl Hernández)
9 - Nada (Diego Herrera)
SET DO DISCO (REEDIÇÃO CD 1993):
1 - Mátenme Porque Me Muero (Saúl Hernández)
2 - Te Estoy Mirando (Saúl Hernández)
3 - La Negra Tomasa (Guillermo Rodríguez Effe)/música incidental: Bilongo
4 - Cuéntame Tu Vida (Saúl Hernández)
5 - ¿Será Por Eso? (Saúl Hernández)
6 - Viento (Saúl Hernández)
7 - Nunca Me Voy a Transformar en Tí (Saúl Hernández)
8 - Perdí Mi Ojo de Venado (Saúl Hernández)
9 - Amanece (Diego Herrera)
10 - La Bestia Humana (Saúl Hernández)
11 - Nada (Diego Herrera)

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