Um disco indispensável: Gilberto Gil - Gilberto Gil (Philips/Companhia Brasileira de Discos, 1969)

Parecia que 1968 foi um ano muito tenso e pesado demais, muito marcado pela psicodelia e pela efervescência do rock and roll, mas muito mais também pelos atos políticos, como a Passeata dos Cem Mil no Rio de Janeiro unindo artistas, intelectuais e diversas pessoas contra o regime militar, que já estava a quatro anos no poder. Mas foi dos movimentos estudantis também as vozes dos grandes atos políticos daquele ano, como além do Rio, também em Paris em maio - o principal de todos, o de maior repercussão mundial, cujo um dos líderes era Daniel Cohn-Benedit se tornou um dos ícones da luta naqueles tempos. Em princípios de outubro de 1968, o México havia recebido naquela época os Jogos Olímpicos na capital Cidade do México e no meio disto, os movimentos estudantis foram manifestar contra o autoritarismo do governo de Gustavo Díaz Ordaz onde aconteceu naquele mês o massacre de Tlatelolco, onde muitos jovens morreram de forma trágica pelas forças policiais que agiam brutalmente contra estudantes. O assassinato de Martin Luther King também foi mais um estopim para que a luta pelos direitos do movimento afroamericano e civil permanecessem mais do que por igualdade, toda uma América clamava pelo fim da Guerra do Vietnã imediato antes de Richard Nixon se eleger presidente da mais poderosa nação. Ser hippie, cabeludo, autoproclamar-se contra o sistema era o estopim para que os policiais te prendessem logo no meio da multidão e, logo na prisão, cortassem seu cabelo de forma impiedosa, e voltasse quase irreconhecível - tempos difíceis. O cinema estava ganhando cores e novas visões de mundo, como na ficção científica 2001 - Uma Odisseia no Espaço, dirigida por Stanley Kubrick mostrava o futuro e a relação humano-máquina e como computadores acabavam se comportando a contragosto dos humanos. Sucesso também era o inspirador musical Hair, estreando em definitivo na Broadway, marcou muito e levou as histórias de paz e amor, apesar de ter sido acusada de antiamericanismo, teve diversas músicas marcadas pelos momentos como o ato de nudez no final. O rock seguia eclodindo, tendo diversas bandas como Velvet Underground (remando contra a maré da psicodelia), Blue Cheer, The Doors, Jefferson Airplane, The  Who, Grateful Dead, Big Brother & The Holding Company - em  1968 ainda com Janis Joplin, The Kinks, Beach Boys, Pink Floyd - desta vez sem o doidão Syd Barrett que saiu no auge dos vícios, Rolling Stones e os Beatles numa ressaca do flower power e da temporada de meditação com Maharishi Maheshi Yogi decidiram apostar em canções mais pesadas e com ares de folk, metal (ainda engatinhando) e numa coisa mais de roots rock mesmo no seu Álbum Branco lançado quase no eclipse daquele ano, tornando-se um sucesso assim como o single Hey Jude, um dos hits lançados naquele 68 efervescente. No Brasil a onda não podia ter sido tão longa - enquanto Wilson Simonal queria emplacar seu samba-soul cheio de pilantragem, ajudando a anteceder até mesmo o balanço de Tim Maia, e logo a bossa nova já deixava de ser tão nova assim depois de estourar com peso nos EUA em 1962, com a fusão de samba-jazz mais pulsante e diferente do que era no começo, e alguns compositores buscavam engajar-se por temas sociais e políticos, e isso ajudava a compreender mais o Brasil por brasileiros. Se o chamado fino da bossa já estava em seus dias contados de vez, a Jovem Guarda dava-se por encerrada sua era com sucessos simples (mas marcantes), moldados e alguns deles adaptados de canções em inglês, francês e italiano - Roberto Carlos iniciava sua nova fase e deixava o mocinho do rock para ser o queridão da música romântica, e logo com O Inimitável mostrava-se direito isso, agora estava querendo mostrar seus tons de romance, seguido do sucesso com sua interpretação de Canzone Per Te, que ganhou o Festival de Sanremo. Mas vanguardista e ousado mesmo era justamente o tropicalismo, que vinha de uma gloriosa consagração pelos festivais como o da Record em 1967 no qual Gilberto Gil e Caetano Veloso - cada um com sua música e seu grupo de apoio - apresentaram a fusão dos sons brasileiros com rock and roll, música erudita, sons latinos e até dodecafonia - enfim, uma trupe ajudou na formação do movimento que ajudou enfim a eletrificar a MPB numa época cheia de preconceitos, em que rock era algo contra os princípios da puríssima MPB fincada nas raízes africanas, nordestinas, do interior do país, embora flertasse com jazz e ritmos latinos obviamente. Logo após Gil e Veloso lançarem seguido seus dois discos, o primeiro em seu segundo álbum solo enquanto o último citado iniciava um trabalho individual após em sua estreia dividir o álbum com outra baiana: Gal Costa, que também aparecia ali de cara como a musa tropicalista, os três juntos incluiriam um baiano mais velho, o poeta e cantor de Irará Tom Zé, mais os compositores José Carlos Capinam e Torquato Neto, além da cantora Nara Leão e do trio Os Mutantes formado por Sérgio Dias, Arnaldo Baptista e uma moça ruiva chamada Rita Lee que vinham com seus instrumentos elétricos dando um ar mais jovial à MPB daqueles tempos.
Com isso, foi preciso Manoel Barenbein ligar os gravadores lá por maio de 1968 e Gil, Caetano, Gal, Nara, Tom Zé e os Mutantes gravarem um dos mais importantes álbuns da nossa MPB - a obra-prima e também considerada bíblia Tropicália ou Panis et Circensis, editado dois meses depois, levando através, uma fusão nunca vista antes - e com isto, shows, aparições em importantes festivais - como a de Caetano nas eliminatórias do III FIC (Festival Internacional da Canção) em São Paulo com o happening É Proibido Proibir, onde vaias e até arremesso mesmo de ovos e tomates no palco, fazendo os Mutantes terem que tocar de costas. Logo com isso, os baianos tropicalistas tomaram a televisão fazendo até um programa chamado Divino, Maravilhoso - nome de uma música que Gal cantou "representando" Gil e Caetano no III Festival de Música Popular Brasileira organizado pela TV Record - onde havia diversos momentos curiosos, como banquetes, e até Caetano cantando música natalina com uma arma apontada na cabeça, o que fez o programa sair logo do ar. Após o Natal, no dia 27 de dezembro de 1968, os militares foram atrás de Veloso e Gil para prestarem explicações, devido a denúncias sobre mensagens subversivas que eles propagavam durante a temporada na casa noturna Sucata, uma vez que já haviam procurado nomes como os jornalistas Paulo Francis, Osvaldo Perava e Joel Silveira, ´políticos já cassados como Carlos Lacerda e Juscelino Kubistchek, os cartunistas Jaguar e Ziraldo dentre nomes como o poeta Ferreira Gullar e o multimídia Carlos Imperial - quase ninguém escapou. A prisão foi dada logo na cartada fatal da ditadura militar, 14 dias antes, foi instaurado o temível Ato Institucional número 5, isso mesmo, o AI-5, que tirou muitos direitos até mesmo o de ter um advogado caso fosse preso sem nenhum motivo, é claro. Os dois foram mandados para o Rio em quarteis diferentes e durante esse período, perderam muitos compromissos, porém, já precisavam lançar os próximos discos. Gil foi negociar no Rio sua saída do País quando visitou dona Mariah, mãe de Gal, e dali surgiu um samba-exaltação à cidade do Rio de Janeiro que marcava sua breve despedida do país enquanto decidira exilar-se na Inglaterra, mas antes - quatro meses de estadia na Bahia depois de meses.
Permanecendo na Bahia, tanto ele quanto Caê tiveram de realizar as gravações em Salvador nos estúdios JS e suas fitas eram levadas para o RJ onde Manoel Barenbein só passava o restante do trabalho para o pianista Chiquinho de Moraes, o baixista Sérgio Barroso, o baterista Wilson das Neves e o guitarrista Lanny Gordin - os músicos prestaram serviço para os dois discos, tanto o do nosso citado quanto o de Veloso, obviamente, assim como o produtor Barenbein e o orquestrador e arranjador Rogério Duprat seguiram marcando presença. Com algumas canções compostas ainda na prisão carioca depois que um militar cedeu um violão para poder criar, o restante foi só a adição de overdubs, e para o disco, uma capa simbólica era preciso para significar sua saída do país - e Rogério Duarte novamente caprichou na capa com uma página que parece ser algum escrito do século XIV ou XV, e na contracapa uma espécie de história em quadrinhos de uma aventura entre Gil versus uma espécie de inimigo imbatível chamado Solaris para ser lida com uma lupa. Em julho, ele e Caê fizeram um show de despedida no Teatro Castro Alves com o acompanhamento musical do grupo Leif's do qual fazia parte um jovem prodígio da guitarra, este seria o neobaiano Pepeu Gomes, e dali direto para Londres, no Reino Unido, onde permaneceriam um breve tempo que poderia não ter durado mais que 2 anos. O disco saiu em agosto, ou seja, qualquer oportunidade de divulgarem seus respectivos materiais, já não era mais possível, ambos já estavam no Velho Continente - primeiro em uma breve passagem por Lisboa, a se apresentar pela primeira vez na televisão, e de lá direto para Londres, onde passaram uma época diferente daquela triste temporada nas prisões do Exército no Rio.
O disco logo começa com um iêiêiê psicodélico de primeira, destacando o solo de guitarra de Lanny e o órgão de Chiquinho em Cérebro Eletrônico, um rock onde ele começa celebrando a tecnologia cibernética, depois vê as máquinas como onipotentes, fazendo tudo, mandar sem saber executar, e vê uma ligação entre a modernização e o novo padrão de vida no País, porém tenta acalmar as pessoas dos perigos, e isso também era um sinal de que Gil ainda estava vivo e cheio de ideias a compartilhar; na sequência, o baiano ainda entrega mais surpresas pela frente, como o caso de Volks Volkswagen Blues, um rock brisante onde o baiano se lembra de um belo Fusca azul que seu pai havia tido para dar voltas, e com uma presença forte de metais e uma base rítmica fusionando ali o samba e o blues de forma brilhante; a faixa seguinte acabou por se tornar de vez o último grande suspiro tropicalista, a última cartada essencial do movimento - Aquele Abraço soava mais do que como uma mensagem de adeus, era também uma homenagem exaltando a cidade do Rio de Janeiro, uma debochada com o clube de futebol Flamengo (obs: Gil torce para o Bahia, o Fluminense e também para o Grêmio - sim!) além de exaltar o apresentador Chacrinha, e aproveita o nome da saudação com o nome da música baseado em um bordão do humorista Lilico, e que traz consigo essa pegada de samba mais alegre e festeiro, e logo na introdução decide dedicar o samba a Dorival Caymmi, João Gilberto e Caetano Veloso - uma menção honrosa aos baianos representantes na MPB óbvio e com uma "claque" ovacionando-o como se estivesse sendo gravado ao vivo, e logo no final ele parece já estar se despedindo; passado esse clima de samba animado para anunciar seu último suspiro antes de ir para a Inglaterra, ele ainda dá uma mexidinha num baião, e logo cria um forrock na releitura de 17 Légua e Meia - conhecida na versão de Luiz Gonzaga, onde conta a história de um cara que viajou sem parar para ir num forró dançar, sabendo que a amada Rosinha estava lá, e Lanny ainda brinca com a música Baião na guitarra criando um riff sobre a melodia, algo bem elaborado que Gil levaria para seus trabalhos posteriores; os ecos mutantes soam presentes aqui em um dos poucos temas não pertecentes a Gil - em A Voz do Vivo - do parceiro Veloso, soa notório o fato que Gil sente gratidão e se sente tranquilo apesar do que passou, mas também sobre a necessidade do homem querer se tornar astronauta, os fuzzes de guitarra e o peso sonoro, além do violão de Gil dão a acidez que a música necessitava de vez; logo em seguida, um tema mais frio, Vitrines com um ar viajandão, mas que mergulha na questão do consumismo e da televisão, meio que os baianos com o restante da patota aproveitaram-se para lançarem o movimento de diversas formas, e dá a entender como a tecnologia e o consumismo acabaram por fazer parte da sociedade ao longo do tempo, com um tom mais leve, a canção ganha um quê de bossa lo-fi diferentona de sempre; outra canção que aparece aqui como releitura, desta vez ele adapta à sua forma tropicalista 2001, da autoria de Tom Zé em parceria com a então mutante Rita Lee a modernização, o futuro, novamente a relação humano-máquina e o homem do espaço, com um tom mais de rock suingante e com um arranjo de metais que sucede no segundo verso da canção, mas traz também a beleza do violão do baiano ao longo da canção; novamente num tom mais melodramático no sentido sonoro, o baiano segue a abordar de forma curiosa o futuro, a tecnologia e a reação de como isto pode mudar através de Futurível, que faz uma ligação com os futuros de Gil mesclados com as visões futurísticas de Stanley Kubrick (vide filme 2001), George Orwell, F.T. Marinetti e de Jean-Luc Goodard - mas destaca mais sobre o metal servindo como perífrase para os então produtos novos e tecnológicos numa canção cuja sonoridade faz soar como uma balada ácida e psicodélica nos arranjos; o encerramento fica por conta de uma peça sonora que junta versos e frases encabeçados por Gil com Rogério Duarte na cabeça Objeto Semi-Identificado, uma música mais no estilo spoken word, onde tendo significado sobre coisas como a existência de Deus como um objeto de adoração, usando referências de canções como Cultura e Civilização e da própria Volks Volkswagen Blues além das diversas criações sonoras de Duprat em cima dos versos tornando-se um epílogo do disco e dando um sinal de que o tropicalismo perdurava pelo seu legado e inspirando gerações com o tempo.
Este disco, junto do Álbum Branco de Veloso, são o eclipse do tropicalismo como movimento, mas dão pistas do que ambos deixariam para o público que ainda tinha como sua representante Gal e os Mutantes,  fazendo com que de forma simbólica mantivessem um pouco da chama acesa. Com isso, o álbum figura entre os melhores trabalhos da carreira do músico e também da MPB - seja de sempre ou dos anos 60 em específico, mostrando o peso de seu legado. Para o ano de 1998, a PolyGram (que no fim deste ano, estava mudando seu nome para Universal Music) decidiu presentear os fãs com reedições exclusivas dos álbuns de Gil na Philips (à exceção de Refazenda e Refavela cujos fonogramas foram transferidos para a WEA) no box Ensaio Geral com materiais inéditos, e para o álbum de 1969 foram escolhidas as inéditas Omã Iaô, um afroblues ácido da pesada com um jogo de brincadeiras com o nome da música; além de uma versão estendida de Aquele Abraço completa - 7 minutos da gravação que no disco foram reduzidos para 5:22, uma curiosidade e tanto; além de duas demos, a primeira da música Com Medo, Com Pedro, uma homenagem também ao então esperado filho Pedro Gil (nascido em Londres), e da faixa Cultura e Civilização com mais de 16 minutos de duração - as duas faixas foram gravadas na véspera do embarque como orientação para que Gal gravasse em seu épico disco roqueiraço (leia mais aqui), e fechando as bônus com a inédita gravação Queremos Guerra, composição de Jorge Ben onde ambos mais Caetano haviam gravado para um disco de festival da Philips em 1968. Bem, depois disso, uma temporada brilhante na Inglaterra com a mente efervescendo graças ao que estava pintando lá e em seguida um disco semiacústico totalmente em inglês - mas aí já é uma outra história.
Set do disco:
1 - Cérebro Eletrônico (Gilberto Gil)
2 - Volks Volkswagen Blues (Gilberto Gil)
3 - Aquele Abraço (Gilberto Gil)
4 - 17 Légua e Meia (Carlos Barroso/Humberto Teixeira)
5 - A Voz do Vivo (Caetano Veloso)
6 - Vitrines (Gilberto Gil)
7 - 2001 (Tom Zé/Rita Lee)
8 - Futurível (Gilberto Gil)
9 - Objeto Semi-Identificado (Gilberto Gil/Rogério Duprat/Rogério Duarte)
FAIXAS BÔNUS PARA A REEDIÇÃO ESPECIAL LANÇADA NO BOX ENSAIO GERAL (1998):
10 - Omã Iaô (Gilberto Gil)
11 - Aquele Abraço (Gilberto Gil) - versão completa
12 - Com Medo, Com Pedro (Gilberto Gil)
13 - Cultura e Civilização (Gilberto Gil)
14 - Queremos Guerra (Jorge Ben) - com Jorge Ben e Caetano Veloso

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