Um disco indispensável: Construção - Chico Buarque (Philips/Phonogram, 1971)

Cidade do Rio de Janeiro, sexta-feira do dia 20 de março de 1970. Local da cidade: Aeroporto do Galeão. 8 horas da manhã. Uma multidão formada pela imprensa, pessoas curiosas e até mesmo celebridades como a atriz Betty Faria, o sambista Paulinho da Viola, o jornalista, compositor e produtor musical Nelson Motta, e outros tantos esperavam ansiosamente a volta de uma pessoa muito famosa. Fãs era o que não faltavam. Parecia que estavam a receber uma celebridade internacional, como Mick Jagger ou algum astro de cinema ou da moda em ascensão, o que não era bem assim. O Galeão estava a receber de volta após 14 meses de exílio particular na Itália o cantor e compositor Chico Buarque de Hollanda, que ficou por lá para evitar qualquer risco de ameaça - enquanto no, já que enquanto ele saía do Brasil em janeiro de 1969, os militares tocavam o terror dias depois da instauração do Ato Institucional número 5 em dezembro de 1968, tirar todos os direitos, inclusive ao de resposta e o de um advogado para caso seja preso sem nenhum motivo. Naquele momento, sendo um dos maiores nomes daquela safra da MPB que surgiam junto de Caetano, Gil, Edu Lobo, Marcos Valle, Jorge Ben, Milton Nascimento, Geraldo Vandré, o próprio Paulinho da Viola, Toquinho entre outros. No momento em que Chico estava em ascensão, a sua peça Roda-Viva sofreu um baque ao ter cenário destruído e atores agredidos pelo movimento reacionário Comando de Caça aos Comunistas (CCC), e tendo que voltar de uma passagem pela Europa para socorrer no Rio o amigo Tom Jobim nas eliminatórias do III Festival Internal da Canção (FIC) depois de o Maestro sofrer uma grande vaia ao lado de Cynara & Cybele, as intérpretes de Sabiá - criação dos dois. Depois deste festival, preparou suas malas ao lado de Marieta Severo e em janeiro de 1969 partira direto para a Itália, onde de lá iniciaria uma breve temporada tocando em diversos lugares e até em alguns cantos da Europa. Num certo momento, chegou a precisar de um parceiro de palco por lá, a ponto de ter que trazer de São Paulo o grande amigo Toquinho para acompanhá-lo em uma turnê - e por aquelas andanças, Buarque foi também o fator que uniu o rapaz do violão ao Poetinha, gerando finalmente a dupla Toquinho & Vinícius, que perdurou até a morte do último, em julho de 1980. Logo durante essa temporada italiana, ele também gravara seu último álbum para a gravadora RGE cantando em italiano, e um projeto com Ennio Morricone (1929-2020) que por anos pouco se sabia da existência - o brilhante Per Un Pugno di Samba, e ao voltar para o Brasil, lançara um material que foi gravado somente voz-e-violão na Itália: Chico Buarque de Hollanda Nº 4 encerrava de forma simples a primeira era do cantor e compositor, iniciada nos compactos em 1965 com Pedro Pedreiro e Sonho de Um Carnaval, e este álbum foi uma missão pois o produtor Manoel Barenbein, que só foi direto a Roma gravar Chico e colocou as bases no Rio, um disco feito como sob encomenda. Buarque lançava seu 4 disco já no país, desta vez assinado com a Philips por onde permaneceu durante dez anos gravando discos de sucesso e trilhas sonoras para teatro e cinema, inclusive. Seguido do seu quinto trabalho individual, ele lança também o compacto com uma de suas maiores canções, e que virou um dos principais hinos de resistência durante a oposição - Apesar de Você já tinha uma forte repercussão até que os militares perceberam o signficado da letra (depois da denúncia de um jornalista), e a vetaram sua execução em rádios, TVs e até em shows - e só foi reaparecer quando a música foi liberada em 1978 para ser gravada em um dos LPs de Chico que se tornou clássico da MPB.
O incidente que gerou o veto ao tema que se destacava no compacto de Buarque foi o primeiro sinal de que os militares não estavam perdoando ninguém, e tentando a todo custo acabar com a MPB politizada, expressiva, de versos combativos. O tema do lado B deste compacto, foi apenas o início de um novo capítulo na discografia após o incidente, Desalento - uma das parcerias com Vinícius de Moraes, entraria no repertório do próximo trabalho. Trabalho este em que não assinaria mais como Chico Buarque de Hollanda, o que sempre foi comum desde 1965. Tiraria o "de Hollanda" e iniciava-se uma nova fase na carreira, sempre mantendo-se próximo sonoramente ao estilo de bossa nova e samba, por mais que sejam sua base, e ao entrar em estúdio, não fez feio ao juntar um repertório bom criado entre a Itália e o Brasil - com o produtor Roberto Menescal, então diretor artístico da Philips, comandando as gravações do sexto LP e oitavo de carreira, intitulado Construção - tendo Menescal como produtor, a direção musical do velho amigo Magro do conjunto MPB4 e dividindo os arranjos em parceria com o maestro tropicalista Rogério Duprat, além de um técnico de som que viria a ser uma das referências na produção musical brasileira: Marco Mazzola, na época, já iniciando sua trajetória como produtor. A capa criada por Aldo Luiz trazia uma fotografia icônica do músico retratada por Carlos Leonam mostrava uma imagem diferente da de sempre... o Chico Buarque dos primeiros anos já havia ficado para trás, o bom-mocismo expressado no rosto fora substituído pelo rosto de alguém mais sério, com o cabelo mais solto e um bigode dando sentido àquela sua nova fase. Com isso, vamos ao início do álbum, através da faixa Deus Lhe Pague que ao seu jeito expressa gratidão aos militares pelas coisas úteis como casa e comida, usando aqui a crítica de uma forma mais irônica, e o trabalho instrumental é algo fantástico, desde o uso das flautas e a marcação rítmica, além do berimbau que dá esse tom de algo dramático, melódico nos arranjos e que cresce a cada acorde; na sequência, temos aqui mais um daqueles sambas brilhantes à moda buarqueana de sempre, Cotidiano usa da forma crítica ao regime e à censura da liberdade individual, dessa coisa rotineira de um casal, muito robotizada que se repete a cada dia que passa e numa bela melodia de samba que funciona pela marcação da percussão, a linha de baixo de grande destaque, além do trombone excelente que dá seu show por aqui; aproveitando o engate que deu origem ao disco, o samba-bossa que marcou sua parceria com Vinícius, logo Desalento, coloca a história de um casal que termina e onde o cara perdoa a ponto de pedir para um terceiro falar sobre os seus sentimentos após o término, o arranjo de cordas e as flautas (mais a mixagem) deixam os instrumentos mais próximos, e o coral encerra com um lalaiá belíssimo com a presença do MPB-4 óbvio, sempre presente nos trabalhos dele desde 1970; o tema seguinte é o épico, a obra-prima de seu cancioneiro,  a melhor coisa que ele criou em toda sua carreira - Construção, a opereta de 6 minutos com o belíssimo arranjo de toques tropicalistas de Duprat, poeticamente une as sensações de raiva, indignação, tristeza em relação o último dia de um operário que morre enquanto trabalha - e pra quem faltou aulas de português, vamos explicar o formato da letra bem rapidinho, são versos divididos em dodecassílabos (alexandrinos), por doze sílabas, e a última palávra sempre trissílaba e proparoxítonas - com 3 estrofes diferentes contando a mesma história, mudando a ordem nas estrofes, entendendo que cada uma expressa um sentimento, e com a forte presença de metais dando um ar bem dramático, além do coro com o MPB-4, o violão e o arranjo de cordas que funcionam com a estética sonora, e encerrando o tema com Deus Lhe Pague, servindo como uma luva os versos desta aqui na canção; fechando aqui o lado A do disco, temos logo um breve sambinha mais simples, mas sem perder o tom politizado e forte dele, Cordão onde ele usa a metáfora de soltar o verbo contra a ditadura, expressando que ninguém podia acorrentá-lo, calá-lo enquanto pudesse ouvir e viver (a primeira faixa teria ligação com isso também?) e que fora censurada, mas também destaco o belo arranjo unindo flautas e violão numa harmonia belíssima, coisa rara de se ouvir hoje.
Juntando-se à dupla clássica de compositores da bossa nova, Chico decide criar aqui uma bela canção onde a sua poesia e a de Vinícius musicaram uma peça instrumental de Jobim chamada Amparo e transformando em Olha Maria , a história de um casal que se separa e carrega um tom forte nos versos de despedida que é de emocionar para o eu-lírico, e que, traz o próprio Jobim mandando ver no piano, que encaixou direito a presença de um dos autores na faixa; voar na imaginação da música sempre foi algo preciso, mas quando a inspiração surge durante os últimos instantes de uma temporada no exterior, haja momento pra isso - Samba de Orly inicialmente se chamava Samba de Fiumicino (Fiumicino é o nome do principal aeroporto de Roma e pela dificuldade do brasileiro pronunciar o nome, optaram pelo aeroporto francês de Orly) e fala dessa viagem forçada de diversos políticos, artistas e intelectuais, tanto que um desses versos iniciais era "Pede perdão pela omissão um tanto forçada" convertida a força para não ser vetada como "Pede perdão pela duração desta temporada", e traz além do MPB-4 nos vocais mais o violão de Toquinho dando o puro ar da graça nos acordes e o Trio Mocotó fazendo uma batucada legal - àquela altura, o grupo de apoio de Jorge Ben entre 1969 e 72, e dando esse embalo com ar esperançoso; com uma entrada belíssima e puramente doce de órgão, temos aqui mais outra da dobradinha Chico & Vinícius nascida durante uma tentativa de fazer uma bela letra, e com a necessidade de criar-se outro clássico presente neste disco, nasceu Valsinha, que conta a história de um casal que estava um pouco afastado, se estranhando, até que um dia ele chega diferente e chama sua amada para sair, e acabam por dançar numa praça chamando a atenção das pessoas gerando uma dança coletiva, o arranjo traz essa coisa pura e doce com um violão soando de forma marcante, além do órgão e das cordas que dão essa beleza que a canção precisava; em seguida, com mais temas preciosos, aqui conhecemos mais o Chico versionista - isto é, adaptando temas para português, apesar de já converter musicalmente poemas de João Cabral de Mello Neto e da própria Cecília Meirelles  (falecida mesmo antes de isto acontecer), aqui Chico adapta 04/03/1943 ou melhor Gesúbambinno, do italiano Lucio Dalla em parceria com Paola Pallotino, originalmente era a história crítica às mulheres que sofriam abandono de seus maridos a caminho da guerra e as deixavam com um bebê esperando pelos seus pais, mas aqui Chico levou em Minha História de forma simples a história de Jesus Cristo aos anos 1970 e à vida carioca, como se pode notar, há uma forte presença do que possa ser uma viola caipira e lembra até uma toada, uma moda caipira de raiz, e o vocal do MPB-4 cai como uma luva dando esse brilho todo que a canção precisava; o encerramento já traz uma atmosfera suave, mas sem perder a forma de crítica velada aos militares na sofisticada Acalanto, uma cantiga de ninar que soa como uma homenagem para a filha Helena nascida pouco tempo antes, mas que usa a metáfora de ir por aí atrás de uma aurora como pedir para dormir mais enquanto ele corre atrás da esperança, e destaco o belo som do violoncelo além do violão e das flautas que dão esse toque estilo cantiga de ninar para fechar com chave de ouro este álbum.
Conclusão final? Dá para ver que este álbum já nasceu clássico logo de cara, tornando-se o amadurecimento poético-sonoro e artístico de Chico, colocando-o de vez no topo do Olimpo dos compositores brasileiros daquela geração, e mostrando que já estava diferente o recado que ele queria passar ao povo. Foi preciso as vendas do disco terem acontecido de forma rápida, especula-se que vendeu mais de 100 mil cópias e a Philips teve que pedir ajuda de duas concorrentes para poder fabricar mais cópias, fazendo de Buarque logo o artista de maior sucesso naquele ano estampando capas como a da revista Realidade, por exemplo. No ano seguinte, entraria de cabeça em dois projetos: um foi a trilha de um filme do cineasta Cacá Diegues, juntando a esposa deste, a cantora Nara Leão (que preferiu se dedicar à carreira universitária e aos filhos), e também com a baiana Maria Bethânia em Quando o Carnaval Chegar, onde ambos ainda protagonizam o filme no melhor estilo chanchada moderna para aqueles tempos com mensagens políticas. O outro projeto foi a realização de um vendedor de discos na Bahia de um disco ao vivo de Chico com o irmão de Bethânia e rival dos tempos de festivais da Record, justamente Caetano - um show histórico gravado no Teatro Castro Alves que sofreu nas mãos da Censura por causa de algumas músicas, mas que foi o encontro inesperado, já que Veloso voltava do exílio em Londres junto de Gil e agora para ficar. Naquele mesmo 1972, Buarque iniciava um brilhante projeto musical para teatro em que contava parte da história do Brasil colônia no século XVII em parceria com o cineasta moçambicano Ruy Guerra intnitulado Calabar, O Elogio da Traição - mas aí já é uma outra história. Com o passar dos anos, o disco seguiu com o devido culto que segue até hoje pelos seguidores e estudiosos de sua obra, influenciando na música brasileira até hoje o álbum Construção, que hoje está em diversas listas, seja dos melhores trabalhos musicais da carreira de Chico, melhores álbuns brasileiros dos anos 70 e dos melhores de sempre, como os 100 Maiores Álbuns da Música Brasileira segundo a Rolling Stone ostentando ali a digna medalha de bronze (3º lugar), honra merecida, e figurando também na lista dos 1001 Discos Para Ouvir Antes de Morrer, mérito dado também a brasileiros como Tom Jobim, Caetano Veloso, Os Mutantes e até seu genro Carlinhos Brown - a prova de que sua música ergueu construções digníssimas sonoramente.
Set do disco:
1 - Deus Lhe Pague (Chico Buarque)
2 - Cotidiano(Chico Buarque)
3 - Desalento (Vinícius de Moraes/Chico Buarque)
4 - Construção (Chico Buarque)/música incidental Deus Lhe Pague (Chico Buarque)
5 - Cordão (Chico Buarque)
6 - Olha Maria (Amparo) (Antonio Carlos Jobim/Vinícius de Moraes/Chico Buarque)
7 - Samba de Orly (Samba de Fiumicino) (Toquinho/Vinícius de Moraes/Chico Buarque)
8 - Valsinha (Vinícius de Moraes/Chico Buarque)
9 - Minha História (Gesúbambino) (Lucio Dalla/Paolla Pallotino, versão de Chico Buarque)
10 - Acalanto (Chico Buarque)

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