Um disco indispensável: The Nightfly - Donald Fagen (Warner Bros. Records, 1982)

Os dois primeiros anos da década de 1980 estavam começando meio que timidamente: enquanto ditaduras/regimes militares começavam a ruir e a trazer esperança em países latino-americanos com uma certeza de que dias melhores haveriam de vir. Nos EUA, após quatro anos de Jimmy Carter governando o país, agora quem assumia o poder era o ex-ator Ronald Reagan, que trazia consigo uma imagem de uma América mais neoliberal e dura na queda como nunca - Reagan já havia sido governador na Califórnia de 1967 a 1975, e do outro lado do globo, uma das líderes políticas mais marcantes da época, a primeira-ministra britânica Margaret Thatcher ficou visada pelo papel de manter a linha de frente do discurso do Partido Conservador inglês, embora a mesma também defendesse o liberalismo clásico, e tanto Reagan quanto Thatcher haviam um mesmo alinhamento político se for parar para analisar. Mas, a expansão tecnológica, o crescimento populacional da Terra e a inovação cultural já mostravam que seria uma década diferente. O surgimento do computador Apple III, um dos computadores que ajudou a marca criada por dois jovens de nome Steve Wozniak e Steve Jobs em uma garagem na cidade californiana de Los Altos, ajudava a mesma ser uma das mais respeitadas pelos seus aparelhos modernos, e na sequência a concorrente Microsoft começava também a dominar o mundo com aparelhos também de ponta. Enquanto isso, a música pop transbordava e evoluía, nomes como B-52's, Devo, Blondie, Police, Talking Heads fizeram a trilha sonora da virada da década, assim como nomes já aclamados como Rod Stewart, Elton John, Daryl Hall & John Oates, os Wings (a banda de Paul McCartney e sua esposa Linda), os Bee Gees e a música discothèque sofria um eclipse após o boom do filme Saturday Night Fever e sua trilha sonora campeã de vendas, e também o evento Disco Sucks (disco é uma porcaria - tradução livre) onde em um estádio de beisebol, milhares de pessoas levavam Lps do gênero para uma fogueira. Mas, nos anos 1980 viemos a descobrir a selvagem e moderna Madonna, testemunhar a aclamação de Prince, Michael Jackson, Springsteen e o nascer do hip hop e da eletrônica, e a ruptura de gigantes dos anos 70 com integrantes formando outros conjuntos ou entrando em carreira solo, como no caso do Steely Dan - famoso grupo de rock que flertava mais com o jazz fusion, o soul e o pop adulto do que com o rock de costume da época. Embora com canções recheadas de arranjos ligados ao rock progressivo, o grupo que depois se tornou um duo liderado por Donald Fagen e Walter Becker - mas sempre com músicos de apoio, emplacou sucessos logo em 1972 como Do It Again, Dirty Work e Reelin' in The Years - ambos da sensacional estreia discográfica Can't Buy a Thrill, e dali em diante foi só sucesso para o grupo. Vamos a 1980, o grupo estava concebendo o sétimo LP, e Fagen e Becker haviam alcançado sempre o perfeccionismo em cada disco lançado mesmo sem fazer shows - o fato de serem caras viciados em estúdio de gravação até não incomodava muito, mas nas sessões do que se tornou Gaucho, um dos excelentes álbuns que após diversos momentos de tensão, acabam por encerrar a banda (que voltaria nos anos 1990), e o vício constante em drogas ajudaram ainda mais além do temperamento forte da dupla, custando mais para Becker, que dois anos antes já havia perdido uma ex-namorada quando esta suicidou-se com uma overdose. Era a hora de reciclarem-se, cada um de sua forma.
Donald Fagen, agora sem o Becker e em carreira solo, começava
a explorar novas fronteiras para um som tão pop, mas também
vertido para o jazz - o que vinha tentando fazer mais no SD.
Pois bem: chega o ano de 1981, e logo de cara Fagen entra em estúdio para começar uma nova fase de sua carreira (a estreia definitiva como solista) com o velho parceiro do The Dan, o produtor  Gary Katz presente em toda a discografia do conjunto/duo, em New York nos estúdios Soundworks Digital Audio/Video Recording Studios um dos mais modernos em equipamentos e gravação em digital, e também no Automated Sound enquanto em Los Angeles as sessões continuavam no Village Sound, acompanhado de Roger Nichols na engenharia de gravação comandando um time para essa missão: Daniel Lazerus e Eliot Scheiner, sob a assistência de Cheryl Smith, Robin Lane, Mike Morengell e Wayne Yurgelun que cuidaram da edição digital. Desde que gravou Gaucho, eles começavam a abandonar o sistema de gravação analógico, e migrarem totalmente para o digital - e para isso, eles decidiram se preparar para usar os aparatos modernos na sede da 3M em St. Paul, no Minnesotta - e o trabalho estava comprovado de que seria desafiador pra valer. Eis que, além dos responsáveis pela qualidade, ainda tem os que colaboram para a parte sonora do disco. Fagen trouxe para participar do álbum conhecidos que já participaram dos álbuns do Dan como o baixista Chuck Rainey, o guitarrista Larry Carlton, o baterista Jeff Porcaro, o guitarrista e gaitista Hugh McCracken, o baterista Steve Jordan, o tecladista Greg Phillinganes dentre outros nomes de peso para construírem a sonoridade deste disco. O disco, lançado em 1° de outubro de 1982 chamou-se The Nightfly, nome que substituíra o provisório Talk Radio - já que na capa ele aparece de cabelos curtos em um cenário bem icônico:  em um estúdio de rádio com um cigarro na mão enquanto parece anunciar algo. Já contracapa a imagem de uma casa em destaque durante o anoitecer com uma janela de luz acesa, remetendo às memórias da infância de Fagen. O disco já começa bem, logo de cara com um tema de responsa para o disco, I.G.Y (What a Beautiful World), que mesmo flertando com o jazz, não deixa de assumir a presença de new wave conceitua-se com o ambiente futurístico detalhado na letra, inspirado no International Geophisic Year, um evento no final dos anos 1950 com a intenção de unir cientistas, e aqui Fagen faz uma visão positiva do futuro, citando energia solar, túneis transatlânticos e estações espaciais - realidade pura; a seguir, Fagen nos acaba entregando outra música de goleada certa: a balanceada Green Flower Street onde conta a história de um cara que namora uma mina asiática e esta mora em um bairro considerado ruim e a rua das flores verdes trataria-se do ópio e o tempo passado é a sensação de estar chapado - com um excelente arranjo, Fagen não deixa a banda perder a essência e os metais fazem a diferença aqui; a próxima música é uma das únicas que não traz a assinatura de Donald na composição, Ruby Baby é da autoria de Jerry Lieber e Mike Stoller, é uma releitura sofisticada de uma canção que foi sucesso na voz de Dion DiMucci em 1963, com um toque bem jazz-pop como a cartilha do disco manda, o solo de piano é um show à parte enquanto os vocais soam cristalinos, a sequência instrumental é quase uma jam-session ensaiada no decorrer da música - aqui, o ex-líder do SD canta sobre uma garota que o amava e que não o amava de volta, típico dos anos 1960; adiante, o repertório conta com uma balada bem típica dos 80 pela pegada de R&B, Maxine é sobre um conto de amor entre dois adolescentes ainda no colegial e de se encontrarem no Lincoln Mall e a vontade de se mudarem para Manhattan juntarem o apartamento de amigos, que ainda traz um solo de saxofone para fazer uma média com o conceito de balada da época - totalmente conceitual; em seguida, temos aqui o grande hit deste álbum, sempre tocando em rádios de jazz, retrô e de rock quem sabe: cheio de groove dos 80, New Frontier fala de uma espécie de festa selvagem em um abrigo antiaéreo (debaixo da terra), mas não é bem sobre explorar o espaço, é curtir um rolê no abrigo com uma garota movido a cerveja e discos de Dave Brubeck, além de encenar que os dois são as únicas pessoas no mundo que restaram e tirar a sorte (sim!) com ela, um hit do Adult Pop que funciona como um clássico da geração 80 e com um clipe que foi exibido numa tal de MTV que começava seus anos lançando diversos artistas, a sorte de termos um solo de guitarra marcante tocada por Larry Carlton e uma base bem marcante: Hugh McCracken na gaita, Michael Omartian no piano, Starz Vanderlocket na percussão, Abraham Laboriel na percussão e Ed Greene na bateria fazem com que a cozinha sonora lembre um hit do Steely Dan que poderia ter surgido entre The Royal Scam e o majestoso Aja - sendo sincero; sem perder o rumo, ainda temos para apreciar o repertório, The Nightfly traz a narrativa de um DJ de rádio que toca jazz tarde da noite cheio de versos imitando comerciais e unindo com desabafos de infelicidade, com um toque bem de soul daquela época - nada mal novamente, outro acerto do mestre; já na música que vem a seguir, há uma temática totalmente política e que coincide com o momento de alguns países à época, The Goodbye Look traz a história de um líder governante numa pequena nação insular que contou com o apoio dos EUA na sua ascensão ao poder, porém, a situação política mudou com o tempo e logo perderia o apoio, sabendo que seu tempo é curto, aproveita para beber um possível último drinkzinho antes de escapar, pois sabe que irão lhe assassinar - a pegada caribenha ajuda muito nesse clima, embora uns vejam que a sonoridade fica um pouco clichê, mas não tem do que reclamar quando se trata de Donald Fagen, né non? E encerrando este disco, o repertório do álbum conta ainda com Walk Between The Raindrops, uma história de amor entre dois jovens em Miami impedindo que rompam mesmo com todos os sentimentos e sonhos, mas, nas entrelinhas parece ter sido um sonho de algo que nunca aconteceu ou ainda não aconteceu, e a cozinha jazzística funcionou muito excelente, primorosa e que reinventa um pouco a atmosfera sonora dos anos 1950/60 sem dar errado em apenas 2 minutos e 40 segundos - um final épico para um excelente disco.
O conceito de trazer fantasias sobre lembranças que podem ter sido entretidas por um jovem crescendo nos subúrbios remotos em uma cidade do nordeste estadunidense durante a virada dos anos 1950 para os 60, ou seja, um pouco de sua altura geral, peso e construção pessoal - funcionou muito bem. Crônicas de coisas que realmente podem ter sido vividas, tão semi-autobiográfico quanto se imagina, Fagen consegue criar um repertório incrível que realmente atinge os limites que tentava desvincular-se do Dan, mas, que, mesmo assim é um filho quase não-assumido pois a sonoridade lembra muito o SD. Com um sucesso mediano, porém, que atraíra o auge quando fora lançado na Europa, Japão e em países latino-americanos. Embora ofuscado pelo sucesso de Nebraska, Rio, Diver Down, Thriller e de 1999, o jazz-pop moderno de The Nightfly mereceu reconhecimento por artistas que estavam a conceber seus trabalhos na década, apesar de notarmos que o que ouvimos é a mesma coisa que os discos de soul da Motown feito nos anos 1980, óbvio. Saber que The Nightfly está muito presente em diversas listas dos melhores álbuns de todos os tempos como o dos 10 Melhores Álbuns de Sempre da EQ Magazine e obviamente na dos 1001 Discos Para Ouvir Antes de Morrer, organizado por Robert Dimery - se fez justiça ao legado deste na música pop, enfim.
Set do disco:
1 - I.G.Y (What a Beautiful World) (Donald Fagen)
2 - Green Flower Street (Donald Fagen)
3 - Ruby Baby(Jerry Lieber/Mike Stoller)
4 - Maxine (Donald Fagen)
5 - New Frontier(Donald Fagen)
6 - The Nightfly (Donald Fagen)
7 - The Goodbye Look (Donald Fagen)
8 - Walk Between The Raindrops (Donald Fagen)

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