Um disco indispensável: La Leyenda del Tiempo - Camarón de la Isla (Philips, 1979)

Em dez anos de carreira, o espanhol José Monje Cruz - vulgo Camarón de la Isla - conseguiu tornar o flamenco aos poucos como um gênero mais popular do que de costume, aos poucos inovando a música de origem das culturas ciganas e mouriscas, o que seria considerado uma heresia em inovar ao colocar ritmos mais acelerados, ou mudar a levada. A Espanha ainda sofria com os terrores do regime militar administrado por Francisco Franco desde o fim dos anos 1930, e com a censura sendo fortemente linha-dura, não sobrava espaço para a total liberdade artística. Embora a ascensão de artistas que visavam inovar na música, e os cantores de segmento romântico como Camilo Sesto, Dyango, Nino Bravo, Raphael, e, obviamente, Julio Iglesias - aclamado mundialmente depois de vencer a Eurovision com Gwendolyne - e lançando canções em diversos idiomas, como em português (no começo de carreira gravou Sentado à Beira do Caminho, de Erasmo e Roberto Carlos). Embora nomes mais engajados socialmente nas suas músicas como Joan Manuel Serrat, que mesmo com a popularidade em alta, sofriam com os vetos em suas letras, e nomes que viviam em ascensão na música espanhola, como Nino Bravo e Cecilia tiveram suas carreiras acabadas precocementes, mas sempre lembrados. O jovem Camarón era cantaor de flamenco desde os 14 anos, já chegou a ser toureiro, mas deu passos atrás deste sonho. As coisas só mudariam quando mudou-se para Madrid aos 18 anos, no que decidiu dar o pontapé inicial na sua vida artística e logo de cara, um contrato com a gravadora holandesa Philips e suas primeiras apresentações na Europa. Logo em seu primeiro disco, contou com a presença de um dos maiores nomes da guitarra flamenca, Paco de Lucía - que veio a acompanhar brevemente durante oito anos além da presença do pai de Paco na produção - e durante este período, os governos de Salazar/Marcello em Portugal e o de Franco na Espanha ruíam lentamente - com a queda da ditadura franquista, nomes como Serrat que estava exilado no México, poderiam voltar tranquilamente ao país sem se preocupar com repressões e ameaças. Àquele momento, o mundo começava a testemunhar mudanças consequentes, depois do Watergate - o escândalo que derrubou Richard Nixon, os EUA ganharam um presidente que se envolveu com a amenização nos regimes ditatoriais latino-americanos, à exceção de Cuba: Jimmy Carter dialogou com diversos presidentes, segurou crises de energia, mas foi até o fim de seu governo. O rock progressivo sentia seu declínio no final dos anos 1970 e bandas como Genesis, Yes, Emerson Lake & Palmer e Pink Floyd tiveram de se evoluir, o punk nascia energeticamente com as bandas Damned, The Clash e os Sex Pistols no território inglês, enquanto nos EUA nomes como Talking Heads, Richard Hell, The Cramps e os Ramones surgiam como o vômito na cena, fazendo contraponto à música discothèque de Bee Gees, Donna Summer, KC and The Sunshine Band, Gloria Gaynor, ABBA, Chic e embalavam noites em casas noturnas que iam do Studio 54 em New York ao Hippopotamus em São Paulo e Frenectic Dancin' Days, primeiro no Shopping Gávea e depois no Morro da Urca na capital carioca. E em 1977 terminava uma saga de discos brilhantes da dupla Camarón & De Lucía realizados durante os oito anos, através do magnífico Castillo de Arena, a tradição flamenca resistia ainda na jornada da música flamenca.
Camarón na guitarra: o momento em que o flamenco
se eletrifica e se moderniza. Com "La Leyenda del Tiempo",
ele inova, mas não obteve o retorno positivo
à época de seu lançamento, em 1979.
No cenário musical espanhol, havia também um produtor que decidira mudar o rumo da música flamenca: Ricardo Pachón havia descoberto um disco do músico Sabicas com o guitarrista Joe Beck gravado em 1966, e levou isto de unir o flamenco ao rock em 1971 com a banda Smash juntamente do cantor Manuel Molina, como algo ligado ao rock progressivo de ares ciganos, e Molina trouxe essa ideia com Pachón para seu projeto novo, uma dupla com Dolores Montoya - e com o álbum Nuevo Día, lançado no momento em que a Espanha rumava à redemocratização. Em 1977, com Adolfo Suárez no poder, revitalizando a democracia no país, o terceiro experimento de Pachón foi com os irmãos Raimundo Amador e Kiko Veneno lançaram juntos o álbum Veneno aproximando-se da linguagem dos Smash novamente. Com isso, Pachón teve a sorte de assinar com a PolyGram espanhola para a produção de quatro discos, e a princípio, contaria com Lole Y Manuel - de quem Camarón era admirador e fã do disco Nuevo Día, mas, não foi adiante. Pachón havia musicado poemas de Federico García Lorca (1898-1936), um dos maiores ícones da poesia e cultura moderna espanhola anos antes, e com isso surgia a ideia e a necessidade de apresentar a uma geração García Lorca anos depois de sua morte, e também colocá-lo de volta ao público espanhol, embora seus poemas já haviam sido publicados depois de seu assassinato em 1936. Pachón, aconselhando Camarón a prepararem o material com Amador e Veneno mais o novo guitarrista flamenco que acompanharia Camarón, um rapaz de 20 anos chamado José Fernández Torres, mas, que acabou sendo muito conhecido como Tomatito, o fiel parceiro de Camarón nos últimos 13 anos. Na casa de Pachón, em Umbrete, povoado de Sevilla, havia um estúdio, e ali juntaram-se para a realização do álbum os amigos de Pachón que Camarón foi apresentado: Jorge Prado, o baterista Antonio "El Tacita", o pessoal do grupo Alameda como o baixista Manolo Rosa, o guitarrista Pepe Roca e o 
tecladista Manolo Marinelli, além de uma sessão rítmica com o baterista José Antonio Galicia e o percussionista (brasileiro) Rubem Dantas - embora as palmas tenham sido sempre presentes, aqui raramente aparecem em La Leyenda del Tiempo, editado em 1979 gravado com essa turma em Madrid nos estúdios da PolyGram espanhola e preparado entre 1978 e 79. Na capa, uma foto de Mario Pacheco estampava De La Isla em ação no estúdio com cigarro na boca parecendo se preparar para uma nova jogada, arquitetando uma nova direção - enquanto a contracapa mostrava o mesmo durante uma de suas paixões, a tourada, que desde a infância o fascinava. Sequência de palmas em fade in, o volume sobe até que surge a guitarra de Tomatito, e um balanceio de baixo, a bateria chegando junto e: pronto, surge assim a música de abertura, La Leyenda del Tiempo - um dos poemas de García Lorca falando sobre os sonhos e o tempo, extraídos da peça Así Se Pasan Cinco Años, publicado em 1933 - a música é uma suíte pura de flamenco com ares de rock progressivo devido as inserções de piano elétrico e Moog, o sintetizador da época, dá uma expansão sem nenhum preconceito; a faixa seguinte, novamente um poema, ganha uma bela adaptação sonora, Romance del Amargo, que une bulerías por soleá, onde aqui os arranjos fluem como o flamenco, e sem a bateria, ainda dá pra sentir algo de novo aqui; em seguida, a parceria póstuma entre o produtor e o poeta ainda perdura em Homenaje a Federico, na narrativa sobre os sentimentos por uma moça, o querer e a tristeza, onde a guitarra flamenca e o cante do gaditano fluem plenamente; adiante, com uma beleza sonora que não deixa um vestígio de que perca o primor, Mi Niña Se Fue Pa La Mar acaba ganhando um toque diferenciado - uma cantiña de pinini com guitarras duelando pra ver qual soa melhor e mais brilhante, cada uma com brilho próprio em uma história envolvendo uma moça que foi para o mar em meio a ondas que pareciam estar fortes, a prova de que, sim, é fácil trazer para a música o universo poético de Federico García Lorca; a seguir, uma outra pérola que não ficou escondida no repertório, sem perder a beleza, La Tarara é aqui uma canção folclórica (popular) revisitada por Pachón, com uma pegada rítmica que não deixa a desejar - a canção romântica com puro tom cigano que acerta de vez; abrindo o lado B do disco, o repertório perdura com um dos únicos hits do álbum que é Volando Voy, criação de Kiko Veneno, que embora não participando como músico, pelo menos faz um belo trabalho com a fantasia de voar liricamente pelos caminhos, o embalo de rumba funciona bem, fazendo lembrar um pouco ritmos afro-caribenhos como o candombe uruguaio por exemplo; a seguir, um ritmo do flamenco que era considerado um dos preferidos de Camarón, as alegrías, tornando presente em Bahía de Cádiz, que, embora sendo uma composição de Fernando Villaló com o produtor deste disco, às vezes faz remeter às origens do músico na província de Cádiz, a cidade de San Fernando, e o bom é que a melodia acaba dando um toque certo pra esta canção, e a bateria ajuda muito com a levada rítmica, enquanto o baixo também encorpa uma harmonia que case com o restante do instrumental - que funcionou bem; enquanto na faixa seguinte, Viejo Mundo é uma contribuição brilhante de Veneno em um conto que mistura fantasia, realismo dos povos espanhóis - os ciganos, e também um pouco da vida do cantaor gaditano pelo que se entenda; em seguida, o bailado continua também em Tangos de la Sultana, a história de um alguém que queixava de sua amada dona de uma beleza impressionante, com o violão de Tomatito a rasguear melodias sem perder a elegância sonora do flamenco como é de lei; e, como todo ciclo discográfico tem seu fim, aqui, o disco encerra com a mística Nana del Caballo Grande, adaptado novamente de um poema de García Lorca, abandonando um pouco a estética flamenca pura e flertando com algo mais místico, flertando com a música hindu - isso porque conta com a sitar indiana tocada por Gualberto deixa as coisas mais vertidas para a Índia do que para o universo cigano - o que soa perfeitamente como uma influência das canções mais orientais de George Harrison nos Beatles.
À altura do lançamento, o disco não foi recebido da forma como se esperava, Camarón era popular e já se tornando um artista renomado no país mesmo quando gravava seus álbuns com Paco, mas, o que já era de se esperar, era que La Leyenda del Tiempo sofresse do mesmo mal desnecessário de Araçá Azul: devoluções de discos, recepção negativa da crítica especializada no gênero que não havia entendido o disco e fazendo com que voltasse ao estilo de antes. Porém, com o passar dos anos - Camarón faleceu em 1992 em decorrência de um câncer -, se fez justiça a este clássico, provando que dali viera a expansão de um novo flamenco, com a adição de guitarra elétrica, baixo, bateria, percussão e teclados - e a forma em que artistas como Bebo & Cigala, grupos como Pata Negra e o Ketama - do qual surgiram nomes como Antonio Carmona e o gênio Ray Heredia (1963-1991),  José Mercé, La Barbería del Sur, dentre outros, que ajudaram o flamenco a se tornar mais universal do que já era naqueles tempos. Com isto, o culto ao disco vem crescendo desde então, fazendo estar em diversas listas relacionadas à música espanhola, ao flamenco e talvez uma ou outra de world music como se pode imaginar, pois, como poucos sabem, Camarón conseguiu fazer através de La Leyenda del Tiempo um clássico que acabou por atravessar tempo e os limites para se tornar mundial.
Set do disco:
1 - La Leyenda del Tiempo (poema de Federico García Lorca/adaptação de Ricardo Pachón)
2 - Romance del Amargo (poema de Federico García Lorca/adaptação de Ricardo Pachón)
3 - Homenaje a Federico (poema de Federico García Lorca/adaptação de Ricardo Pachón)
4 - Mi Niña Se Fue Pa La Mar (poema de Federico García Lorca/adaptação de Ricardo Pachón)
5 - La Tarara (tradicional do folclore/adaptação de Ricardo Pachón)
6 - Volando Voy (Kiko Veneno)
7 - Bahía de Cádiz (Fernando Villalón/Ricardo Pachón)
8 - Viejo Mundo (Kiko Veneno/Omar Khayyam)
9 - Tangos de la Sultana (Antonio Casas/Francisco Díaz Velázquez)
10 - Nana del Caballo Grande (poema de Federico García Lorca/adaptação de Ricardo Pachón)

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