Um disco indispensável: La Grasa de las Capitales - Serú Girán (Music Hall, 1979)

É preciso repensarmos bem sobre o primeiro ano de existência do Serú Girán, a banda argentina que nasceu quando, já a fim de dissolver o La Máquina de Hacer Pájaros, o cantor e tecladista Charly García decide ir para um autoexílio no Brasil (se na Argentina a coisa já estava feia com a ditadura/regime de lá, imagina aqui com os quase 15 anos de poder militar - se bem que o processo de abertura iniciaria-se bem nesse período de Geisel na presidência) juntamente do guitarrista David Lebón e inicialmente de José Luis Fernández e Gonzalo Farugia, mas, como ambos acabaram não querendo se envolver, Charly e David decidiram chamar um cara que matava a pau na bateria e já tinha um currículo enorme passando por bandas como Los Gatos, Color Humano e La Máquina (a mesma banda de Charly) e este cara era Oscar Moro, que era um senhor ritmista, e substituindo Fernández - que viajou para os EUA com os ex-parceiros da banda Crucis formando um trio chamado Contraband - quem assume o cargo de baixista é um jovem de nome Pedro Aznar. Pronto, da Argentina vão direto para a cidade de Búzios, onde ensaiam por meses, criam um repertório bem construtivo e fazem algumas apresentações ao voltarem à capital portenha. Um das primeiras apresentações foi em um barco ancorado na foz do Riachuelo (rio do sudeste de Buenos Aires) para a imprensa e alguns convidados, e depois voltaram para o dia 28 de julho ao Luna Park onde tocaram no Festival de la Genética Humana - um começo mais ou menos, pois o som era péssimo. Mesmo com tudo isso, gravam o primeiro LP em São Paulo nos estúdios Eldorado, com a produção de um velho conhecido do rock argentino, o ítalo-argentino-brasileiro Billy Bond (que produzira o 1° álbum solo de Ney Matogrosso três anos antes) e com uma cara mais pop rock, mesmo demonstrando influências do jazz (fusion em específico), progressivo e até do folklore argentino - depois foram aos EUA gravarem as orquestras que perduraram em algumas das 8 faixas do álbum de estreia que levou o simples nome de Serú Girán - com uma sutileza nos vocais de Lebón e García, na época, a Argentina governada por Jorge Rafael Videla tão conservadora e católica, não observava aquelas vozes como de roqueiros, mas o acusavam por terem vozes de homossexuais por causa dos agudos. Mesmo assim, canções como Eiti-Leda (e sua épica sequência instrumental que soa como uma psicodelia pós-60 com ares de jazz e progressivo) e a balada soft Seminare fizeram um sucesso relativo. Disco lançado em novembro, era a hora de enfrentarem de vez o público local, o estádio Obras Sanitarias - palco que testemunharia, ao longo dos quatro anos em que o Serú esteve ativo, de momentos importantes e sempre lotando a casa. A primeira vez do grupo no Obras está longe de ser inesquecível - com a expectativa de uma presença do circuito fechado de televisão mais a orquestra presente no palco, já dizia uma das canções solo de Charly "nada pode andar pior" e piorou - o público jogou as pilhas dos gravadores em direção ao palco e a crítica os considerou como a pior que havia passado pela Argentina, acusando Charly e David de empostarem vozes de hermafroditas e, dizendo que eram dublês. A imprensa já havia feito uma pesada crítica sobre o fato de García deixar Argentina e esquecer do país, e chegando a colocar uma matéria com o nome "Charly García, ¿ídolo o qué?", e com a raiva que tinha do sensacionalismo local, era definitivamente a hora da vingança e da reconciliação com seu público. Com uma sonoridade que podia contar com diversas referências sonoras que iam desde Weather Report, Steely Dan, Return to Forever, Yes, possivelmente Beatles e nomes do hard blues, o novo álbum dispensaria orquestrações e todas as regalias de luxo que soassem muito diferente, mantivessem somente o primor da sonoridade dos quatro, mas, um problema havia no caminho: a relação com a gravadora Music Hall já estava muito tensa, primeiro a questão da banda jamais ter usado os estúdios da fonográfica, e, com as realizações de seu próximo trabalho, o clima não seria outro.
Com o auge do governo Videla e o aproximamento do que pode ser chamado de "bom-mocismo" da elite argentina pró-regime que se via pela resistência como "grasa" algo como escória, uma pessoa cheia de aparências, falsidade e dinheiro, e era essa mesma "grasa" a quem Serú Girán decidiria atacar em seu segundo álbum - nas sessões de junho a agosto de 1979 nos Estúdios ION em Buenos Aires com Amílcar Gilabert na engenharia ajudando a construir a sonoridade que García, Lebón, Aznar e Moro desejavam colocar toda sua raiva e indignação contra o que acontecia na Argentina daqueles anos - a começar pela luxúria estampada em revistas como a Gente, satirizada em La Grasa de Las Capitales: o tão aguardado segundo álbum, gravado no período citado anteriormente e editado a fins de outubro, estampava na capa uma sátira à revista Gente e suas personalidades do ano com um exagero debochado nos títulos sensacionalistas e os integrantes com vestes irreverentes: um quase irreconhecível Aznar como funcionário público ou até advogado, Lebón como jogador de rugby, Charly caracterizado como um executivo da indústria petrolífera e Moro todo a caráter como açougueiro - prontos para a vingança. Logo na faixa de abertura, temos aqui o hino à tal escória argentina dos tempos militares, La Grasa de Las Capitales que mostram um coro à la Beatles nos primeiros versos "¿Qué importan ya tus ideales? ¿Qué importa tu canción? La grasa de las capitales cubre tu corazón" partindo logo para uma pauleira que não para, e as críticas ferozes continuam até que surge uma voz grossa mandando versos que soam como rap "Com la cantina, con la cantora, con la televisión gastadora, con estas chicas bien decoradas, con estas viejas todas quemadas/Gente revista, gente careta, la grasa inunda cual fugazzeta" que foi usado um efeito bem à frente do tempo para que Charly tivesse uma voz semelhante ao do uruguaio Rubén Rada - muitos sites já colocaram o vozeirão da murga como se fosse o próprio nos créditos, e sobra tempo para uma crítica debochante à onda discothèque no meio dessa grasa "Don't stop dancing!", com um épico riff de Lebón mandando lenha na guitarra; em seguida, temos aqui um tema mais voltado ao acústico na parte instrumental, San Francisco y El Lobo é uma criação de Lebón e cuja letra soa como se fosse uma fábula, vinda da parte de um lobo e que encerra com um final bem triste - o violão aqui ganha um belo destaque pela sua beleza na execução; em seguida, temos uma balada com um ar meio de Sui Generis, tanto pela sonoridade quanto pelo nome, Perro Andaluz faz uma espécie de crítica sobre os tipos falsos que só buscam ser aceitos pela sociedade, em um certo momento instrumental a banda manda ver com um baixo bem balanceado, a bateria bem marcada e sintetizadores cadenciados (ora penso se não lembra samba na hora dessa sequência final); partindo para outra, temos aqui Frecuencia Modulada, um hino que faz jus ao repertório deste LP e com uma sonoridade meio Steely Dan, com violão bem grooveado e um arranjo que dá cara de funk americano, ela faz uma crítica às canções de rádio que faziam sucesso à época e que não tinham alma e inspiração segundo Lebón e Charly - justo os autores; na sequência, um dos clássicos de destaque enorme no LP aparece aqui pela primeira vez fechando o lado A do disco, Viernes, 3 A.M. traz uma letra de narrativa pesada que narra os passos de um suicídio até o momento definitivo, o piano de Charly e o baixo de Aznar dão uma combinação perfeita do arranjo - a música teve sua execução proibida pela Censura argentina; em seguida, ainda temos outro dos temas mais profundos do álbum como Noche de Perros, onde seguem encarando a paranoia e a tristeza num ambiente noturno e assombroso e era bem esse clima que eles viviam na época da ditadura, sentimos na audição a grandeza do baixo fretless de Aznar e o solo de guitarra monstruoso vindo de Lebón que ajudaram a engrossar o caldo instrumental do som; a seguir, vamos à próxima música, também caracterizada pelos tempos de ditadura militar nos versos e no enredo, Los Sobrevivientes em que só Charly e Moro participam da canção, narra bem essa tentativa de resistência da juventude no auge da ditadura, o piano de Charly e os sintetizadores mais o riff de guitarra dão essa impressão mais soturna até crescer num final épico bem rocker; mais adiante, uma canção que perdura por essa impressão soturna e profunda ainda dá as caras através de Paranoia y Soledad, criação genial de Aznar, que toca o piano - belamente executado - mais o baixo fretless, o violão e os sintetizadores (talvez o tema em que não tenha nem García e Lebón presentes) num tema onde ele fala dessas sensações de se sentir num estado de paranoia e de solidão que se vivia enquanto Videla comandava a sangue-frio uma Argentina desesperançosa, e ainda solta a voz num tema que carrega, assim como o instrumental, um canto melódico - o jovem de 20 anos realmente mostrou para que veio na banda, goleada de ponta; encerrando com tudo este álbum, ainda temos uma das mais emblemáticas e também cinematográficas músicas da banda, Canción de Hollywood é uma criação de García e soa como falar de uma estrela de cinema em decadência, parecendo ter saído do derradeiro álbum do La Máquina de Hacer Pájaros, o brilhante Películas (1977), o clima de jazz-rock que une os elementos necessários funciona pela instrumentalidade, desde o riff matador de guitarra, o piano melódico (sem esquecer os sintetizadores) até a bateria tudo soa perfeito nos detalhes, com direito a citação de On Broadway de George Benson a partir dos 4:26 executado pelo baixo genial de Aznar terminando a obra-prima como o fechar de uma porta.
Após a má recepção dos shows e até mesmo do primeiro álbum - que depois foi reconsiderado como um tímido salto no escuro - enfim, o público argentino compreendeu a mensagem que a banda queria mandar aos contrrâneos que se sentiam quase sem voz, e a crítica começou a louvar o sucesso da banda. Mesmo com suas vanglórias do momento, o Serú já estava deixando de vez o contrato com a gravadora Music Hall, e em 1980, abriam a SG Discos com outro trabalho de enorme impacto e sucesso de público e crítica, Bicicleta é a continuação do que a banda estava fazendo. García, Moro, Aznar e Lebón percorreram pela Argentina afora lotando casas de espetáculos e fazendo com que multidões se acercavam mais e mais de um fenômeno pouco visto até então naquele final de década, anteriormente nomes como Sui Generis, Vox Dei, Pescado Rabioso, Pappo's Blues e La Máquina inclusive. Em 2007 a revista argentina Rolling Stone lançou uma lista importante dos 100 melhores álbuns do rock argentino, e este clássico teve a honra de destacar-se no 17° lugar, juntamente de outros títulos do conjunto da obra de Charly. Em 2019, o Instituto Nacional de Música (Inamu) decidiu realizar uma edição especial para celebrar as 4 décadas do lançamento deste álbum, e como o Inamu estava na responsabilidade de revitalizar todo catálogo da Music Hall, este título também não deveria faltar - com direito a uma remasterização que mostrasse o som fiel ao do vinil (sob a curadoria de Aznar), e a restauração da capa original até com a foto original de Andón em alta qualidade - uma vez que as reedições em CD ou LP anteriores tiveram alterações no letreiro da capa. O discurso contra a "grasa" ainda segue tão jovem e atual quanto nunca, e a magia deixada pelos 4 ainda resiste em uma Argentina que segue de pé em meio a uma crise que parece duradoura naquele país.
Set do disco:
1 - La Grasa de Las Capitales (Charly García)
2 - San Francisco y El Lobo (David Lebón/Charly García)
3 - Perro Andaluz (Charly García)
4 - Frecuencia Modulada (David Lebón/Charly García)
5 - Viernes, 3 A.M. (Charly García)
6 - Noche de Perros (David Lebón/Charly García)
7 - Los Sobrevivientes (Charly García)
8 - Paranoia y Soledad (Pedro Aznar)
9 - Canción de Hollywood (Charly García)

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