Um disco indispensável: Bocanada - Gustavo Cerati (Ariola/BMG Music, 1999)

Buenos Aires, 20 de setembro de 1997, estádio Monumental de Núñez: milhares de pessoas foram ao grande templo esportivo para bater ponto justamente na noite em que um conjunto musical decidira anunciar o encerramento de suas atividades, este era o Soda Stereo, o mais importante grupo do rock argentino e latino em geral, dizia adeus depois de 15 anos na ativa - formado pelo baixista Héctor "Zeta" Bosio, o baterista Charly Alberti e o vocalista e guitarrista Gustavo Cerati, era o momento deles poderem dedicar-se a outros projetos. Projetos estes, fora do foco total no Soda, fora do que vinham apresentando durante estes 15 anos ativos - Zeta, além de suas bandas, abriu o site Proyecto Under e foi diretor da Sony Music argentina. Alberti, com o projeto PLUM, decidiu também converter-se num dos pioneiros dos serviços de música na internet, investindo nesse campo sendo representante da Apple e criando a Cybrel Digital Entertainment, um visionário à frente de nosso tempo. Já o carismático e misterioso Cerati, decidiu também investir em outros projetos, em especial o de trabalhar solo - um projeto que começou após a parceria com o velho conhecido de participações dos álbuns do power trio, o tecladista e produtor Daniel Melero, através de Colores Santos, editado em 1992 e focado em um som mais experimental, recheado de influências que vão do dream pop ao alternativo e focado mais na música eletrônica, fazendo soar como algo neo-psicodélico bem antes de aparecer o Tame Impala, MGMT, Deerhunter e Pond dentre outros, o soda estava com ideias muito diferentes das que colocava em prática no grupo - e Colores Santos foi antecedendo outro registro do trio meses depois, o experimental porraloca Dynamo, que mostrava uma banda aproximada do shoegaze, space-rock e até de um post-wave, podemos dizer assim - era o presente para os fãs pelos 10 anos de história e muita estrada, sucesso na América Latina e em países europeus, e com milhões de discos vendidos. O álbum, sexto de estúdio e sétimo de carreira, trazia um astral muito diferente e viajandão, com uma dose de psicodelia até no conceito gráfico da arte deste, totalmente diferente do que apresentavam até então - e, com isso, rumos diferentes iam tomando na trajetória do grupo. Depois da experiência diferentona com Melero, ele foi seguindo esse caminho e produziu seu primeiro trabalho solo em definitivo - visto que Colores Santos era um trabalho mais como um passo pequeno para o que viria adiante: trocou Buenos Aires por Santiago após se juntar a modelo chilena Cecilia Almenábar, casou-se com ela em 1993 e, com isso, uma pausa na banda para dedicar-se um pouco mais a família - seria pai de primeira viagem com o nascimento de Benito - e, nesse período de descanso após o fim da tournée de Dynamo, ele produziria juntamente com Zeta o seu primeiro trabalho individual, baseado em seus dois trabalhos feitos em 1992 - com o nome de Amor Amarillo, inspirado em pedras amarelas que encontrara em uma praia pela Venezuela, e segundo Cerati, essas cores representavam a energia, o Sol, o que definia este amor. Um disco solar, diferente, e que trazia um Gustavo bem-acompanhado de Zeta e Cecilia nos instrumentos - sim, Almenábar fazia vocais e gravou até baixo - nada mal. O tempo passou, o Soda Stereo voltou a gravar novamente outro trabalho com algo que lembrasse um pouco mais além do que propuseram no trabalho anterior - e assim foi feito em solo argentino Sueño Stereo, o último trabalho de estúdio lançado em junho de 1995 e com o sucesso de Ella Usó Mi Cabeza Como Un Revólver, o álbum foi recorde de vendas em poucos dias, dando a eles o status de platina duplo com 240 mil cópias vendidas só na Argentina. E então chegamos ao fatídico concerto, a tournée de despedida que passou inicialmente no Chile, no México e Venezuela - o grande concerto no estádio do River Plate na qual mais de 65 mil pessoas se emocionaram com aquela última noite "Penso em seguir fazendo música, e, também de alguma forma aproveitar a herança que Soda Stereo nos deu por muitos anos", foi o que ele disse sobre a vida após a banda.
Vida após a banda: projetos diferente, trabalho em estúdio, e tempo para a família. Cerati ainda residia no Chile com Cecilia e os filhos Benito, nascido dias antes de lançar Amor Amarillo, e Lisa - esta veio a nascer após a tournée de Sueño Stereo, e voltou para Buenos Aires mudando-se para o bairro de Vicente López, ali montou seu homestudio em que criara diversos sons, sob o nome de La Casa Submarina, e produzira ali de forma autoral seu segundo trabalho - tocando todos os instrumentos, desde guitarra, baixo e efeitos mais os sintetizadores e programando samplers, além da mixagem e da citada produção - mas, quase nada é feito sozinho, ele teve o apoio de Flavio Echeto, Leo Garcia, Martín Carrizo na bateria e Fernando Nalé no baixo e o tecladista Tweety González, parceiro tanto no SS quanto fora do conjunto. Houve a presença de uma orquestra inglesa, cuja esta teve sua participação gravada em Londres no lendário EMI Studios, vulgo o famoso Abbey Road Studios - nada mal mesmo. A capa de seu segundo trabalho solo, intitulado Bocanada, editado em 22 de junho de 1999 pelo selo Ariola, da BMG Music, estampava um Cerati de perfil envolto a uma fumaça em diversos tons azuis com bolinhas vermelhas ou rosas, fotografado por Gaby Herbstein. Bocanada apresenta para a gente um experimento não somente marcado pela viagem do pop ao trip-hop e ao neopsicodelismo, mas mostra uma forma de desenvolver sem preocupar-se com uma sonoridade que o faça lembrar os tempos do antigo grupo, agora era ele mesmo e do seu jeito. Ao ouvirmos a sequência rítmica dando início ao álbum, ouvimos os mais belos versos de Tabú, e um belo encontro de melodias sampleadas com as feitas pelo próprio Gustavo, onde ele une elementos atuais com um forte toque de música mexicana, mais precisamente as rancheiras, os corridos e os huapangos em uma atmosfera sonora mais sensual e nos dá o caminho que esse disco nos levará; em seguida, temos logo aqui o tema seguinte com um clímax totalmente inspirativo que traz Engaña, com uma estrutura mais clássica e trazendo samplers de Circle of Love do Steve Miller Band mais The Adventurer de John Barry e traz nos versos uma mensagem aos fãs que pediam a volta do Soda "no hay retorno a aquel furor" e dá para ver que ele não erra aqui; na sequência, nos proporciona outro tema que nos comporta a uma atmosfera sonora contemporânea em cima da narrativa de um crooner intoxicado logo em Bocanada, que, ao ouvirmos, notamos ser uma mistura construtiva de trip hop com elementos sonoros de prog que conta com um sample de um dos temas mais longos do álbum Moving Waves (1971) do grupo holandês de rock progressivo Focus, a faixa final Eruption com seus mais de 23 minutos, e não força a barra em uma canção que chega a soar bem new age pelas camadas instrumentais; para a próxima música deste álbum, dispensa o uso de trechos de outras canções para uma criação natural, Puente é uma daquelas músicas que nos ajudam a estar em sintonia com a paz mundial, o grande acerto em cheio na ambientação poético-musical já provam que sozinho ele consegue muito mais; adiante, temos uma faixa de pegada que lembra Portishead com uma dose de Moby, mas, o sample usado é da canção Momma, do Electric Light Orchestra em Río Babel, com uma letra recheada de buscas pelo seu significado, porém, busquem ler e ouvir como vocês imaginam o que Gus estava querendo dizer nela; com o seguimento da proposta de canções mais sofisticadas e brilhantes, na jornada viajandona experimentalista de GC, ele nos apresenta Beautiful como o que possa ser um dos melhores momentos deste trabalho, doce e perfeita até nos versos que fazem um bom casamento poético do "espanglês", a mistura de idiomas que consagrou alguns hits do pop latino de Shakira, Ricky Martin, Enrique Iglesias dentre outros nesta época, mas aqui é outro nível, e usando o Prelúdio à Tarde de Um Fauno, do compositor clássico Claude Debussy (1862-1918 como um pano de fundo perfeito de base sonora a canções como esta; das tantas canções carregadas de versos filosóficos, sobra tempo para mais coisas belas vindas dele e com o auxílio de Flavio nos samplers e composição de Perdonar Es Divino, na qual destaca a importância de perdoar, sobre como conseguir ter este aceito pela pessoa, e há uma guitarra que consegue trazer um brilho muito forte a esta faixa que reina soberanamente na mesma; atenção, o que iremos ouvir na musica seguinte é outro destaque que faz-se presente em Bocanada, estamos falando de Verbo Carne, na qual ele tinha em mente uma ideia mística e religiosa, em especial o catolicismo, e inspirado em uma imagem 3D de Cristo, fez as ligações poéticas e relacionou com a ideia católica da culpa, e foi a única música que não teve sua concepção toda em seu home studio: ele teve a ajuda da London Symphony Orchestra e foi gravado no Abbey Road Studios, o sonho de muitos artistas do mundo - é mole? Vamos continuando aqui o faixa-a-faixa com um caminho pelas origens da América do Sul e suas tradições, com um apego à cultura do altiplano andino, situado entre o Chile, Bolívia, Peru e o noroeste argentino nos versos de Raíz, cuja principal referência musical é um tema do conjunto chileno Los Jaivas, a belíssima Del Aire al Aire presente no icônico Alturas de Macchu Pichu (1981) mais um trecho de Hyperactive do inglês Thomas Dolby e no final uma citação quase irreconhecível de September 13 do grande Eumir Deodato, e a letra fala de um jeito metafórico sobre uma relação amorosa e de que nada pode extingui-lo - romântico até; dando uma pausa aqui nas palavras cantadas, para algo mais solto e sem comprometer com cantar, aqui é como uma jam session cheia de sons programados e de loops novamente apenas ele e Echeto em Y Si El Humo Está En Foco... um instrumental que segue com a intenção de criar uma música totalmente acercada do que soa como um som do futuro totalmente visionário para o público que o sempre via mais como frontman de um grupo cujo passado permaneceu inesquecível; retomando ao universo ceratiano das canções recheadas de poesia, ainda temos aqui uma jornada pelas noitadas, excessos e mulheres através da profunda e crônica Paseo Inmoral, onde ele têm a consciência do que passa com ele, mas deseja com todo seu ser voltar ser quem era de verdade antes desse "passeio", aqui é onde o baixo e a bateria dão uma cara mais pop comercial, um potencial mais a nível do que as divas do pop fazem atualmente e a base é concentrada num fragmento de Rock 'N Roll Part 2 de Gary Glitter, hit durante os anos 70 cujo intérprete acabou seguindo o caminho errado da fama e caindo no esquecimento; agora vamos para uma criação muito influente nesta obra, e dividida em duas partes chamada Aquí y Ahora - a primeira têm um ambiente instrumental bem chillout e têm como nome Los Primeros 3 Minutos, fazendo referências ao surgimento do Universo, e usando uma outra metáfora diferente de que o mundo é tão imerso que até nós humanos parecemos gotas num jardim e de que o curso da vida nos leva a lugares que nós nunca imaginamos - e faz todo o sentido mesmo; já a segunda parte, cujo subtítulo chama-se Y Después, mergulhando num clímax bem de rock eletrônico, como estar viajando total nessa mistura de sons e ambientes, os sintetizadores e as sequências funcionam como um epílogo desta música logo perto do final; prosseguindo o repertório deste trabalho incrível, uma sequência de sintetizadores e uma guitarra dão essa conexão futurística com referência a elementos do passado através de Alma, com um conceito de que uma relação que vai além do amor e todo finito, algo místico, que a alma é mais importante, todos buscam sonhos e fantasias e estes estão em nossa alma - uma explicação mais ou menos concreta, porém aceitável para quem ouve; o disco aqui encerra com uma forte dose de colagens sonoras e o uso de vibrafone (executado por Cerati) na relaxante e serena Balsa, uma brilhante criação do ex-Soda que conta ainda com... Elvis Presley! Sim, no encarte existe um nome creditado às vozes, e esta é a voz do próprio vozeirão de Tupelo como participação póstuma, sendo que foi usado fragmento de It's Now or Never, seu primeiro hit após a temporada no Exército americano em terras alemãs - fim da viagem, podemos nos sentir mais em paz após os 70 minutos de pura genialidade.
Para quem achava que sua volta por cima após a separação da banda não seria bem aceitável, estão muito enganados - Cerati já desenvolvia projetos que flertavam com esse seu lado DJ - assim como ele, Zeta e Charly também mostravam-se antenados com as ideias surgidas naquele momento com o surgimento dos drum 'n bass, do trip hop e downtempo - os anos 2000 estavam mais perto do que nunca. Seus trabalhos solos começaram a aproximar mais ainda os velhos fãs do Soda, que estavam compreendendo os novos rumos dos integrantes, e receberam com louvor este álbum, assim como os críticos que já o admiravam desde o Soda Stereo - em 1999 lançara ainda com Flavio Echeto o projeto paralelo Ocio que rendeu no álbum Medida Universal, lançado apenas pela BMG Music, e dois anos depois, fez a trilha sonora do filme +bien onde também desempenhou seu lado ator - sim, ele também fez filmes. Logo com o lançamento de Bocanada, foi partindo em tournée pelo México, EUA, Chile, e na Argentina, onde acabou vendendo mais de 30 mil cópias só na época, hoje deve ter um número bem maior que este. Infelizmente, após um show promovendo seu então lançamento Fuerza Natural (2009) em Caracas, na Venezuela, passou mal e foi diagnosticado com um acidente vascular cerebral (AVC) que o manteve em coma durante quatro anos até nos deixar em 4 de setembro de 2014, mas cujo legado ainda segue vivo, muito bem vivo.
Set do disco:
1 - Tabú (Gustavo Cerati)
2 - Engaña (Gustavo Cerati)
3 - Bocanada (Gustavo Cerati/Pablo Chaijale)
4 - Puente (Gustavo Cerati)
5 - Río Babel (Gustavo Cerati)
6 - Beautiful (Gustavo Cerati)
7 - Perdonar Es Divino (Gustavo Cerati/Flavio Echeto)
8 - Verbo Carne (Gustavo Cerati)
9 - Raíz (Gustavo Cerati)
10 - Y Si El Humo Está En Foco...(Gustavo Cerati)
11 - Paseo Inmoral (Gustavo Cerati/Francisco Bochatón)
12 - Aquí y Ahora (Los Primeros 3 Minutos(Gustavo Cerati)
13 - Aquí y Ahora (Y Después) (Gustavo Cerati)
14 - Alma (Gustavo Cerati/Flavio Echeto)
15 - Balsa (Gustavo Cerati)

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