Um disco indispensável: Fear of a Black Planet - Public Enemy (Def Jam, 1990)

Os últimos anos do século XX prometiam, a União Soviética ruía e virava pó em 74 anos, os avanços da tecnologia e a expansão mundial da rede mundial de computadores levavam a Internet para conectar de forma cybernética os quatro cantos do planeta. Eis que a música sofre também sofre mudanças, o pop começa a receber influências também do hip-hop, um gênero revolucionário que saiu do subúrbio estadunidense para abalar as estruturas mundo afora, os primeiros hits que ajudaram a levar o gênero às multidões foram Rapper's Dellight do conjunto The Sugarhill Gang - que usava como base a linha de baixo da música Good Times, do Chic (um dos primeiros samplers da história), e também Grandmaster Flash & The Furious Five com sua empolgante The Message em 1982 - essa música ajudou a atrair jovens que começaram a ter esse flerte com um novo jeito de criar e fazer música - juntando dois tocadores de vinil, improvisando versos com precisão. O hip-hop dos anos 80 catapultou diversos nomes e grupos de rap que fizeram e ainda seguem a fazer barulho: o sexy symbol LL Cool J, os jovens brancos do Beastie Boys, o trio Run-DMC, Kurtis Blow, a dupla Eric B & Rakim, EPMD, Big Daddy Kane, e dois grupos de rap faziam a linha de frente com suas críticas sociais e fortemente politizadas - o N.W.A - sigla para Niggaz With Attitude, formado por nomes como Eazy-E, MC Ren mais o DJ Yella e os grandes Dr. Dre - produtor aclamado e que ajudou a lançar nomes como Snoop Dogg, Eminem e 50 Cent - e o futuro ator Ice Cube, que também teve uma carreira bem-sucedida como rapper solo após o fim do grupo em 1991. O outro grupo, que fazia o contraponto ao estilo do N.W.A. e seu gangsta rap marcado por críticas ao racismo e marcada de violências, o Public Enemy - surgido em 1982 com Chuck D, que cursava design gráfico, e Flavor Flav, e assinaram com o selo Def Jam - com o produtor Rick Rubin, e em 1987 editou seu LP de estreia Yo! Bum Rush The Show e foi de cara uma estreia avassaladora e apresentou uma das mensagens que apresentava a verdadeira face do grupo: Public Enemy No. 1, e um sentimento de patriotismo negro - mas também um recheio de samplers para complementar a base sonora, indo desde figurões como o lendário rei James Brown, The Meters e a soberana Aretha Franklin, passando pelo pessoal mais da geração 80 como Kurtis Blow, Run-DMC e o Grandmaster Flash & The Furious Five tiveram trechos de canções sampleados. Como no rap sempre foi uma aula de usar samples exatos para a música - como se o mágico estivesse tirando im coelho da cartola. A história favoreceria mais ainda o sucesso deles, pois isso gerou uma repercussão imediata, que só foi crescendo mais ainda, e o disco seguinte It Takes a Millions to Hold Us Back - aí sim foi uma grande bomba nos ouvidos com fortes letras e gerando uma repercussão bem maior que seu antecessor, só ouvirmos Bring the Noise com seus versos fortes e uma pegada empolgante, fazia uma referência ao pugilista Jack Johnson (1878-1946) um dos maiores nomes do boxe e um dos primeiros negros a conquistar o título dos peso-pesados de 1908 a 1915 "Too black, too strong" (Preto demais, forte demais) e se converteu em um clássico instantâneo. Sem esquecer os outros temas de destaque, dentre eles, Don't Believe The Hype, que virou uma frase muito usada em pichações, mais Rebel Without a Pause - também um grande hino do grupo - e Night of the Living Baseheads transformaram o grupo em um forte ícone do rap oitenteira. Milhões de cópias vendidas, clipes mostrando a voz e a vez dos negros com reflexões sobre uma América que evoluía para o futuro, mas isso ainda não deixava de lado os preconceitos e discriminações aos negros.
Naquele 1989, o grupo conseguiu levar suas mensagens antirracista e seu orgulho afroamericano para as telonas do cinema. O diretor Spike Lee convidou o grupo para participar musicalmente de um dos seus filmes. Eles partiriam em turnê na Europa com o Run-DMC, e o cineasta não errou feio na escolha: o filme seria sobre uma tensão racial em um dos mais populares bairros de New York, logo o Brooklyn, e este filme se chamaria Do the Right Thing (Faça a Coisa Certa - tradução livre) e explicou à Time da escolha "Eu queria que fosse desafiador, eu queria que ficasse com raiva, eu queria que fosse muito rítmico. Pensei imediatamente em Public Enemy", tacada de sinuca certeira. Ele foi ao Lower Manhattan, onde conversou com Chuck D, o produtor do The Bomb Squad, Hanck Shocklee e o produtor executivo Bill Stephney de que queria um tema antológico pro seu novo longa-metragem sobre a música. Durante a passagem do PE na Itália, o frontman estava inspirado e começou a escrever boa parte da música, e lembrou de um tema dos Isley Brothers chamado Fight the Power dos anos 70, e - pronto! Nascia ali o hino mais black power do hip-hop que promoveria o grupo no filme e viria a ser um tiro na América dos preconceitos que ainda perduram até hoje - Fight the Power se tornou um dos maiores hinos do rap, manteve o PE como um dos grupos importantes do gênero e segue a ter uma forte influência. O filme foi um grande sucesso e a música ficou popular de vez, ganhando uma repercussão até um tanto maior que o filme, ganhando um prêmio mais tarde de Melhor Canção Original no The 20/20 Awards - o Oscar não deu chance. Mas, isto ajudou também o PE a criar um novo material motivado pelo sucesso brilhante da música Fight the Power, já prepararam um conjunto de novas músicas e entraram em estúdio com a produção do time à frente do The Bomb Squad - Eric "Vietnam" Sadler mais os irmãos Hank e Keith Shocklee e também Chuck D no time de produtores, durante o período de junho a outubro de 1989 no lendário Greene Street Recording, um dos estúdios importantes para o rap e também para o pop, situado em NY e também no The Music Palace em West Hempstead, e por fim no Spectrum City Studios em Hempstead - depois disso, o momento era de esperar a próxima pedrada de uma voz da nação afro-americana. Então, em abril de 1990, após a queda do Muro de Berlim e no momento em que a URSS estava começando a desgastar, o Brasil sofreu um golpe nos bolsos com a administração Fernando Collor na presidência, o grupo de rap soltava a sua nova obra chamada Fear of a Black Planet - editado no dia 10, confirmou mais uma vez a prova de que o Public Enemy consegue ir além do que se imagina.
Abrindo o álbum, já temos aqui de cara com um tema bem épico, uma abertura fortemente marcado pela reação da mídia às controvérsias do grupo, Contact On The World Love Jam, recheada de samples - de James Brown, Funkadelic, The Meters e até do comediante Richard Pryor (1940-2005) serviram como base pra essa música que expressava a reação deles; continuando o repertório deste trabalho, não existe momento de parar como PE e ainda mais em Brother's Gonna Work It Out, um tema que faz homenagem à música homônima de Willie Hutch feita em 1973, é nela que fazem comparação a uma dúzia de músicas diferentes (incluindo 3 do próprio PE) para defender a unidade negra e imaginam um futuro no ano de 1995 onde todos iriam se ajustar a essa melodia - dentre os temas sampleados estão Let's Go Crazy do próprio Prince, Buffalo Gals do grande Malcolm McLaren - ex-manager dos próprios Pistols, Atomic Dog do lendário George Clinton e também Sing a Simple Song do grupo Sly & The Family Stone presente no clássico Stand! (1969) combinando com o tema - é mole?! Uma outra música que carrega dose de sinceridade realista dos bairros negros é 911 is a Joke, vindo da indignação de Flavor Flav sobre a falta de respostas vindas de chamadas de emergência em bairros negros, uma clara referência à má resposta das equipes de paramédicos e não da polícia, um equívoco comum, o 911 é o número para chamadas de emergência nos EUA, e, se preparem para esta curiosidade - a música traz como um dos samples o clássico tema Thriller, do próprio Michael Jackson (sim!), nada mal pra quem conseguiu colocar o Rei do Pop em um rap; a próxima música é uma espécie de intervalo do disco entre uma música e outra - Incident at 66.6 FM é uma entrevista ao vivo em uma rádio que Chuck fazia antes de um concerto com o Run-DMC , e logo ela dá a deixa para o tema seguinte; neste tema que mantêm o gás e a distribuição de verdades, Chuck compôs na época Welcome To the Terrordome em alusão à uma entrevista controversa do Professor Griff e também a toda tempestade midiática que se sucedeu - resultando na saída de Griff (que mancada hein!?) e basicamente é um dos destaques do repertório com sua dosagem poética à moda Chuck D e é o tema com mais samples de músicas do James Brown: 5, além de Jackson 5, Temptations, Kurtis Blow, Instant Funk e Kool & The Gang formando boas bases criadas por Terminator X, e pelo Bomb Squad, que ajudava muito nesta parte; após uma música que colocasse a real sobre o ex-integrante, um breve intervalo de 50 segundos aqui com uma brincadeira de Flav no território homofóbico dos anos 90 no cenário do hip-hop, Meet The G That Killed Me é também um momento que o PE aborda sobre a AIDS na comunidade negra dentro desse esquete polêmico da canção; sem muitas delongas, bora pra mais pedrada, aqui a banda ainda se garante com Pollywannacracka, na qual aborda preferência de raça de muitos negros quererem garotas brancas - com base no que eles acham que estas podem oferecer, não no amor, e o mesmo vale para as negras conversando com os rapazes brancos pelo fato de terem alguns fins - mesmo que os negros sejam rejeitados porque elas (Polly) buscam homens brancos (Cracka = cracker) e que sejam ricos - daí o nome da canção; se já sobrou pros serviços de emergência e para mulheres brancas, imagine com a censura artística americana, pois ao ouvirmos Anti-Nigger Machine, temos uma crítica à questão policial, ao sistema e ao governo - vistos como uma máquina de anti-afroamericanos, que os policiais são essa máquina - desmistificando esse estilo bom-mocista do american way of life que conhecemos onde se destacam mais os brancos; não sobra nem para a máquina de sonhos e paraíso do entretenimento (cinema em geral) americano, o grupo conta com a ajuda dos lendários Ice Cube e Big Daddy Kane para detonarem Hollywood na pesada (poeticamente) Burn Hollywood Burn, uma visão contundente dos negros como são vistos em filmes de Hollywood - sejam como empregados, figurantes, etc. e eles não erraram nessa música; terminando aqui a primeira parte deste disco com um tema também de mensagens fortes, Power to The People (que não tem nada a ver com a canção homônima de John Lennon lá dos anos 70) e começa com uma batida de berçário, e depois vai se tornando uma batida rápida e pede para que os negros estejam juntos e unidos, um grande destaque do repertório aqui.
Continuando a análise, com as próximas 10 músicas, mantendo a energia disparando mais versos realistas de uma América negra que precisava ser ouvida, e vamos logo por Who Stole The Soul? contextualizando a tentativa de roubarem a alma dos negros e trazendo nas bases sonoras os samples que vão de Stand! do próprio Sly & The Family Stone inclusive do próprio PE o tema Bring The Noise e também - imaginem só! - dois temas dos Beatles vindos do clássico Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band (1967), mais precisamente Getting Better e a épica A Day In The Life, além do indispensável e onipresente James Brown usado em quase muitas canções do grupo; em diante, vamos tratar sobre o tema que acaba levando o nome deste disco: logo Fear of a Black Planet, que acaba por abordar o medo de pessoas brancas se misturarem com pessoas negras em relacionamentos e situações pessoais, com direito a Chuck pedindo a um branco assustado não ficar com medo e aliviar suas tendências racistas, o que soa como um aviso de "hey homem branco, não fique com medo, pois não lhe farei mal, se livre de seus preconceitos" e a música funciona muito aqui; na sequência, eles acabam por colocar aqui o assunto da interseccionalidade entre o movimento Black Power e o movimento feminista em Revolutionary Generation, que lida com o mau tratamento das mulheres da América e da comunidade negra, só notar em cada verso; para o próximo tema, um pouquinho de distração vindo de Flav que fala sobre ajudar um amigo cheio de problemas com drogas em Can't Do Nuttin' For Ya Man e buscando referências sobre a canção que lembra até o passado de Flav quando largou os estudos na décima-primeira série (equivalente ao segundo ano no ensino médio) e depois de se envolver em prisões tanto antes quanto já no conjunto - e isso custou pra ele; na sequência, ainda temos também um rap bem freestyle que engrossa o caldo da segunda parte chamado Reggie Jax com Chuck mandando uma pegada bem jamaicana no sotaque e tendo uma sonoridade de downtempo, lembrando um pouco do reggae e traz mensagem de amor entre os negros pedindo que não se auto-destruíssem e precisam se reconstruir, um acerto em cheio; adiante, temos um tema instrumental recheado de samplers que vão de Hall & Oates até Gramdmaster Flash encabeçados pelo Terminator X que recebeu o nome de Leave This Off Your Fuckin' Charts - meio que um intervalo logo na finaleira deste álbum; na sequência, eles ainda apresentam mais pedradas cheias de verdades sinceras, e é o que se pode ver em B Side Wins Again sendo uma metáfora ao boom do grupo fazendo com que não somente os negros captem a mensagem, e eles mandaram muito aqui; não perdendo o rumo do cancioneiro afro-americano contemporâneo, eles ainda mostram potência em War at 33 1/3 no qual mostram a reação contra a forte supremacia branca que controlava a mídia, o rádio e o dinheiro nos EUA, que tentava sufocar o tal "inimigo" não danddo a estes voz e vez, o "inimigo" são os negros - é uma grande faixa deste lado B do segundo disco; ainda no disco, um intervalo curto de apenas 40 segundos bem curto com um nome bem impressionante chamado Final Count of The Collision Between Us and Damned, servindo até como uma espécie de esquenta para o grand finale deste disco; encerrando definitivamente esta obra-prima do rap, temos aqui o grande hino do gênero, uma das grandes canções de protesto da história, Fight the Power que surgiu por encomenda de Spike Lee para seu filme Faça a Coisa Certa e logo numa tournée europeia nasceu a canção, onde não sobrou nem para o astro dos westerns John Wayne e o próprio Elvis - o primeiro já com ideais conservadores e racistas, e segue a conquistar muitos, vindo a ser uma das mais importantes músicas de protesto até hoje.
O disco se tornou um dos maiores sucessos daquele ano de 1990, e recebeu diversas críticas dos jornais e revistas ligados a música, e ficaram por dez semana no Billboard Hot Pop Albums nesse período, e seguiram em uma tournée mundo afora, vindo a se apresentar no Brasil em 1991 durante a performance do grupo em São Paulo no Ginásio do Ibirapuera com a abertura feita por um grupo do Capão Redondo que estava fazendo o gênero acontecer por aqui - influenciados pelo PE, os Racionais MC's, que estavam tendo notoriedade com um álbum lançado até então. Polêmicas não faltaram durante esta passagem deles, soltaram declarações sobre a violência policial, a falta de muitos negros na televisão brasileira e não sobrou nem para a Rainha dos Baixinhos - sim, a própria Xuxa Meneghel também foi lembrada por eles. Em 2003, o disco conseguiu entrar na clássica lista da Rolling Stone dos 500 Maiores Álbuns de Todos os Tempos no 300° lugar, e em 2005 foi a vez de entrar na lista dos 1001 Discos Para Ouvir Antes de Morrer organizado por Robert Dimery - e também figurando em diversas listas especializadas em hip-hop mostrando como uma América negra merece ser notada e compreendida. 
Set do disco:
1 - Contact On The World Love Jam (Keith Shocklee/Eric Sadler/Carlton "Chuck D" Ridenhour)
2 - Brother's Gonna Work It Out (Keith Shocklee/Eric Sadler/Carlton "Chuck D" Ridenhour)
3 - 911 is a Joke (Keith Shocklee/Eric Sadler/William "Flavor Flav" Drayton)
4 - Incident at 66.6 FM (Keith Shocklee/Eric Sadler/Carlton "Chuck D" Ridenhour)
5 - Welcome To the Terrordome (Keith Shocklee/Eric Sadler/Carlton "Chuck D" Ridenhour) 
6 - Meet The G That Killed Me (Keith Shocklee/Eric Sadler/Carlton "Chuck D" Ridenhour) 
7 - Pollywannacracka (Keith Shocklee/Eric Sadler/Carlton "Chuck D" Ridenhour)
8 - Anti-Nigger Machine (Keith Shocklee/Eric Sadler/Carlton "Chuck D" Ridenhour)
9 - Burn Hollywood Burn (Keith Shocklee/Eric Sadler/Carlton "Chuck D" Ridenhour/O'Shea "Ice Cube" Jackson/Antonio "Big Daddy Kane" Hardy) - participação de Ice Cube e Big Daddy Kane
10 - Power to The People (Keith Shocklee/Eric Sadler/Carlton "Chuck D" Ridenhour) 
11 - Who Stole The Soul? (Keith Shocklee/Eric Sadler/Carlton "Chuck D" Ridenhour)
12 -  Fear of a Black Planet (Keith Shocklee/Eric Sadler/Carlton "Chuck D" Ridenhour)
13 - Revolutionary Generation (Keith Shocklee/Eric Sadler/Carlton "Chuck D" Ridenhour)
14 - Can't Do Nuttin' For Ya Man (Keith Shocklee/Eric Sadler/Carlton "Chuck D" Ridenhour)
15 - Reggie Jax (Keith Shocklee/Eric Sadler/Carlton "Chuck D" Ridenhour)
16 - Leave This Off Your Fuckin' Charts (Norman "Terminator X" Rogers)
17 - B Side Wins Again (Keith Shocklee/Eric Sadler/Carlton "Chuck D" Ridenhour)
18 - War at 33 1/3 (Keith Shocklee/Eric Sadler/Carlton "Chuck D" Ridenhour)
19 -  Final Count of The Collision Between Us and Damned (Keith Shocklee/Eric Sadler/Carlton "Chuck D" Ridenhour)
20 - Fight the Power (Keith Shocklee/Eric Sadler/Carlton "Chuck D" Ridenhour)

Comentários

Mais vistos no blog