Um disco indispensável: Oswaldir & Carlos Magrão - Oswaldir & Carlos Magrão (ACIT, 1996)

O Brasil vivia um caos político e econômico, mas vivia época de festa e ecletismo nos anos 90. Se no início da década, o rock e a MPB sofriam um grande declínio de popularidade – ambos perdendo o espaço para o sertanejo que invadia as grandes cidades e as rádios e televisões, no meio da década obtiveram seu espaço de volta, mas dividindo também com o pessoal do samba romântico – também conhecido como pagode, e também com o forró – mas o forró mais moderno, com uma pegada mais aproximada do brega. E houve quem ouvisse as canções do Sul – sim, a música regionalista, que tanto ficou um pouco restrita ao público do resto do Brasil, esse país tão diversificado culturalmente, e que na época, se dividia entre o sertanejo vindo do Sudeste (mais precisamente do interior paulista, goiano e mineiro), o axé da Bahia e seu boom com conjuntos formados por cantores e dançarinos, o brega do Norte e Nordeste, o samba do Rio de Janeiro (mas com grupos de SP e MG) e o mangue beat do Pernambuco, que unia rock com rap, samba, maracatu e um pouco de tudo. Em resposta à axé music, os gaúchos decidiram inventar um termo parecido - a tchê music, que além de contar com a sonoridade tradicional e seus ritmos – xote, vaneira, chamamé, milonga, com elementos brasileiros que vão do samba até o sertanejo incluindo até rock nessa salada. E um dos artistas que mais representam esse fenômeno da tchê music, embora mantivessem as raízes nativistas são a dupla Oswaldir & Carlos Magrão, que em setembro de 2017 anunciaram o fim das atividades para que os dois seguissem com seus projetos paralelos – Oswaldir (Sertão, 9 de abril de 1951) está com o Quinteto Nativo desde outubro de 2017 e já lançaram um álbum intitulado Gaúcho Em Qualquer Lugar. Já o Carlos Magrão (Campo Bom, 25 de agosto de 1960) seguiu carreira solo, tanto na música gaúcha, mas com um pé no gospel e já lançou um material chamado Gaita Amiga recentemente. Como que os dois se encontraram? Quando um certo Oswaldir Didoné Souto era um jovem músico nas terras gaúchas de Passo Fundo nos anos 70, ele integrava conjuntos, dentre ele os grupos Banda Um, Os Rebeldes e Os Invencíveis, ele acabou conhecendo Sérgio Reis em 1975, e com o então cantor de Menino da Porteira, fez estrada e apresentou a ele a música e cultura gaúcha, vindo dele as gravações de temas como Coração de Luto e também Panela Velha, do lendário músico e compositor Moraezinho, vindo a estourar em 1983 e 84. Já em 1985 ele monta em Passo Fundo um bar dedicado à música nativista gaúcha e leva o nome de Recanto Nativo, e na época, fazia algumas apresentações pelo bar e trazia diversos nomes daquele cenário que pipocava, dentre estes Elton Saldanha, Rui Biriva, César Passarinho e Luiz Carlos Borges – nomes que Oswaldir mantinha contato. Neste bar, ele fazia os números musicais ao vivo ao lado de Pedro Neves, e lá pelas bandas de Porto Alegre, conheceu nas gravações de um videoclipe feito pelo amigo Dutra um rapaz que sabia tocar acordeon, este era Carlos Eugênio Knop, que foi a Passo Fundo e chegou a tempo para formar a dupla que conhecemos - largando o baixo e assumindo o violão. Já consolidados, participaram em 1989 de um festival de música regional interpretando a música Tetinha, que acabou levando o prêmio e ajudou a plateia do Olympia – casa de espetáculos em São Paulo onde foi realizado o festival. A música, acabou entrando também no segundo LP intitulado Ruas e Luas em 1990, e três anos depois, assinam com a Chantecler por onde gravam dois discos – o primeiro é Velha Gaita, aonde a dupla regravou várias músicas regionais – dentre eles, um tema quase esquecido no cancioneiro gaúcho, Querência Amada, escrita e cantada por Teixeirinha no seu LP de 1975 intitulado Aliança de Ouro, e que já era cantada pela torcida do Grêmio – clube do qual os dois são torcedores. No ano de 1994, a dupla lança mais outro disco, desta vez, um disco de tremendo sucesso, intitulado Festeral, o quarto disco da banda e que teve a ilustre presença de Dominguinhos cantando e tocando acordeom em Você Endoideceu Meu Coração, além de faixas como O Colono, também de Teixeirinha, mais um novo hit que estava surgindo para o repertório de bailes: Moça Fandangueira, que já era sucesso com o Tchê Barbaridade quando lançaram em 1992 no segundo disco. Mas, mesmo em uma grande gravadora nacional que ajudava na carreira de grandes nomes da música sertaneja, a dupla ainda parecia ser visto como artistas regionais que faziam um raro sucesso fora do Sul. Mas isto tudo mudou com o 5º disco, 12 faixas e um mix de repertório de baile gaúcho com uma dose de romantismo sertanejo que acabou dando certo.
Levando o nome de Oswaldir & Carlos Magrão, o álbum editado em meados de 1996 pela mesma ACIT onde lançaram seu primeiro LP, intitulado Versos, Guitarra e Caminho (1988) a dupla parecia ter investido em um grande repertório, parece aquele disco que você já deve ter ouvido várias vezes. É o tipo de disco que sentimos ausência em qualquer lista de melhores álbuns da música brasileira, pois mistura o nativismo gaúcho, a linguagem sulista com um pouco do ecletismo à brasileira: rock, axé, sertanejo, pop, samba e até mesmo jazz - características da tchê music de fato. O fato de ser um simples disco de uma dupla sulista não deixa de dar o merecido destaque para a parte instrumental: como os músicos que aparecem, vão desde o guitarrista Bonitinho até o acordeonista Luiz Carlos Borges, o saxofonista Pedrinho Figueiredo, o guitarrista e violonista Edison Campagna (que produz este álbum) mais o percussionista Fernando do Ó, fora a banda que acompanhava a dupla naquela época: Adolar “Dólar” Duarte nos teclados, Evanndro Lazzarotto na guitarra, Paulo Renato “Canela” Pereira no baixo e Alvori “Toro” Gomes na bateria ajudam a construir belas melodias, sem esquecer o acordeon do Magrão que ajuda dar cor para as músicas. O álbum já abre da melhor forma, com um chamamé intitulado Outras Fronteiras, da autoria do compositor mato-grossense Elizeu Vargas, mais conhecido como Capim, juntamente de Carlos Magrão, e já havia sido gravada antes pelo Grupo Bailanta, que descobrira um guri talentoso na gaita ponto: este era Michel Teló, o grupo incluiu no álbum Dia de Surungo (1993) primeiro registro em áudio do futuro astro do sertanejo, aqui na versão da dupla, uma pegada bem sulista, com uma bateria que ajuda no acompanhamento sonoro e um sapucay (grito característico do índio) fechando a história de alguém que vive pelas bandas do Mato Grosso do Sul a aproveitar um baile e dividido entre duas morenas – coisas de gente apaixonado; em seguida, a música que mais se destaca no repertório do álbum, originalmente composta e gravada por Teixeirinha e inicialmente lançada pela dupla no LP Velha Gaita, o quase-hino gaúcho Querência Amada reapareceu aqui para conquistar o público, com um solo de pedal steel guitar que dá um brilho na música, e ajudou a embalar o ano de 1997 quando a torcida do Grêmio ganhou a Copa do Brasil naquele ano vencendo o Flamengo, e segue sendo a música mais entoada pela torcida do Tricolor dos Pampas até hoje e onipresente nas carreiras individuais, seja de Oswaldir & Quinteto Nativo, seja do Carlos Magrão solo, a versão deste álbum é a mais indispensável de todas; na sequência, outro clássico da música gaúcha de renome, estamos falando da Prece, do grande José Mendes (1939-1974) uma homenagem aos pais, os homens que ajudam a criar seus próprios filhos, mas que, depois partem para outro lado do Universo, carregada com uma pegada meio guarânia, que acaba ganhando uma levada voltada ao rock, com um solo meio blues na guitarra, uma interpretação que emociona ao ouvirmos; logo voltamos ao clima animado do repertório, o vanerão Nós é nada mais, nada menos do que o lamento de alguém com saudade de sua amada, mas esperançoso de alguma mensagem sobre sua vida “Aqui, talvez não cruze nem a pomba mensageira para dizer se você ainda está solteira...” é um trecho da letra que serve como exemplo; um fato importante é que a dupla era especialista em resgatar temas quase esquecidos do cancioneiro gaúcho, e d’Os Filhos do Rio Grande, a dupla resgatou o Xote do Caminhoneiro, uma ode aos viajantes que transportam alimentos, produtos para compartilhar com os brasileiros e quiçá o resto do mundo, o arranjo é digno de fazer o peão gastar a sola da bota e animar bailes dos CTGs, casas de espetáculos e rodeios não só no Sul, podem garantir; e a dupla ocasionalmente resgatava clássicos da Califórnia da Canção Nativa, festival de música nativista realizada em 1971 na cidade de Uruguaiana (RS) e que depois de interrompida as realizações em 2009, têm sido retomada em 2013, e um dos temas da Califórnia que reaparece aqui é Tropa de Osso, do santo-angelense Luiz Carlos Borges com Humberto Zanatta, que relembra um pouco as brincadeiras com ossos de animais – brincadeira típica gaúcha, com a dupla, mantêm o estilo de milonga, mas com uma presença de teclados, e Magrão consegue se superar nos momentos de vocal a solo nesta versão, simplesmente; os primeiros segundos da música seguinte, soam como um grito de orgulho: é isso que a versão deles para Eu Sou do Sul querem trazer, na mistura de milonga com um rock mais pesado com uma mistura de ritmos afrolatinos ao ouvirmos a percussão executada por Fernando do Ó, e ajuda nessa louvação ao Rio Grande do Sul a fugir um pouco da pegada regionalista, diferente da versão do autor, o itaquiense Elton Saldanha, que gravou em sua obra-prima Cavaleiros da Paz (1994), que, mesmo tendo um saxofone, não deixa de carregar a musicalidade sulista, e na versão da dupla, fica aproximada de um sertanejo e de um axé com toques roqueiros (boa mistura essa hein, ô Batista!?); ainda temos uma buenacha dose de puro chamamé gaudério, daqueles bem apaixonados de fazer serenata para a prenda: este chamamé que aparece a seguir é Xucros Desejos, de Vaine Darde e Dudu, gravada em 1991 pelo grupo Os Caibatés no álbum Festa do Meu Jeito, e que mantêm aquele primor maravilhoso de música gaúcha raiz, mesmo com a incrementada de piano e bateria, que deixa o arranjo da canção soar puro, com os mais belos versos campeiros de amor “Quando te tomo nos braços como quem pega a guitarra, meu coração perde as rédeas do seu compasso e dispara” que não deixa passar batido nos nossos ouvidos; para complementar a dosagem de romantismo, sem a presença de acordeon, uma milonga com cara de canção sertaneja romântica ajuda a complementar parte do repertório, esta é Rio e Canoa, escrita por Fábio Jr. (ele mesmo, “obrigaduuuu”), e a gaita – forma gaudéria de chamar o acordeon – é substituída pelo teclado e pelo saxofone de Pedrinho Figueiredo, que já nos orienta - como dissemos antes - a uma direção mais aproximada do sertanejo que fazia sucesso à época; ainda temos também outra música sem acordeon no repertório, com forte presença de violão e guitarra, Herdeiro da Pampa Pobre – de Vaine Darde e Gaúcho da Fronteira, que ficou popular graças aos Engenheiros do Hawaii em 1991 no LP clássico Várias Variáveis – dá essa cara de música gaúcha com um quê de rock and roll, mantendo esse estilo meio rock bagual, pra definir bem a forma com que a dupla faz a releitura; as últimas duas músicas trazem de volta a sonoridade nativista: a primeira faz jus ao orgulho gaúcho e convida o ouvinte para uma Roda de Chimarrão (sim, este é o nome da música), aonde seguem a louvar as belezas do campo e da vida gaúcha com um acordeon (ou gaita) mantendo o primor da instrumentalidade gaúcha; a última música que dá esse toque da música sul-riograndense, é Canção do Rádio, escrita pelo próprio Saldanha, que faz esse apelo à prenda que ouça a canção que o eu-lírico da música compôs e gravou, e fecha com tudo este álbum: com um ecletismo sonoro que ajuda a não fugirem das raízes, a dupla acertou em cheio nas músicas e no som que fazem aqui.
Vocês acham que só artistas do axé, pagode e sertanejo vendiam mais do que 100 mil cópias? Acharam errado. Era muito raro desde Teixeirinha, José Mendes, fora os conjuntos Os Serranos, Os Monarcas, Garotos de Ouro e até mesmo Berenice Azambuja, ver artistas emplacarem disco de ouro, mesmo que vendam apenas num segmento mais voltado ao público da região Sul. Os caras tiveram a brilhante façanha de venderem, em 1997, mais de 100 mil cópias (hoje deve estar na casa do quê? possivelmente mais de 500 mil) um feito indiscutível, e até hoje segue sendo o CD mais vendido da música gaúcha, juntamente de Pago Sul (1998) dos Garotos de Ouro e algum outro trabalho dos Tchês – Tchê Garotos, Tchê Barbaridade e Tchê Guri. Mais de 20 anos depois, falo como admirador da música gaúcha, como um gaúcho que conhece o sucesso desses tauras, que é indiscutível a forma como Oswaldir & Carlos Magrão inovaram com o ecletismo à moda sulista, que ajudou muito na fórmula da tchê music. Depois disso, o álbum seguinte, em 1998, ajudou a manter a fórmula que deu certo, e isso também no restante do conjunto da obra da dupla, que, mesmo separados desde outubro de 2017, não deixam de cantar com orgulho que Deus é gaúcho de espora e mango.
Set do disco:
1 - Outras Fronteiras (Elizeu Vargas "Capim"/Carlos Magrão)
2 - Querência Amada (Teixeirinha)
3 - Prece (José Mendes/Jayme Caetano Braun)
4 - Nós (Valteron Cardoso)
5 - Xote do Caminhoneiro (Darci Lopes)
6 - Tropa de Osso (Humberto Gabbi Zanatta/Luiz Carlos Borges)
7 - Eu Sou do Sul (Elton Saldanha)
8 - Xucros Desejos (Vaine Darde/Dudu)
9 - Rio e Canoa (Fábio Jr.)
10 - Herdeiro da Pampa Pobre (Vaine Darde/Gaúcho da Fronteira)
11 - Roda de Chimarrão (Joel Marques)
12 - Canção do Rádio (Elton Saldanha)

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