Um disco indispensável: What's Going On - Marvin Gaye (Tamla/Motown Records, 1971)

Com o fervilhar do movimento negro, das manifestações e da luta pelos direitos civis, a América fervilhava a revoluções políticas, sociais e culturais, mesmo que o fim do "sonho" ou melhor dizendo, dos anos coloridos e da era psicodélica, já estavam com os dias contados, definitivamente. Com o auge no lendário festival de Woodstock, onde centenas de milhares de pessoas curtiram o máximo da Santíssima Trindade aclamada: o sex, drugs & rock 'n' roll em uma fazenda na cidade de Bethel, a multidão conferiu Janis Joplin, Grateful Dead, Sly & The Family Stone, The Who, Joe Cocker, Santana, John Sebastian e fechando com tudo, um dos mais emblemáticos e marcantes shows daquele festival: o do guitarrista e astro do momento Jimi Hendrix, que amanheceu a multidão com suas alucinações sonoras na guitarra, agora com a Gypsy Sun and Rainbows - que depois se tornara a Band of Gypsys mais adiante. Hendrix apresentou no meio do seu repertório uma adaptação para o hino estadunidense - The Star Spangled Banner, uma forma de protesto contra a guerra do Vietnã, e isso se tornou um dos maiores jeitos de combater, através da música, como muitos fizeram. Naquele mesmo ano de 1969, meses depois, um festival organizado pelos Rolling Stones na Califórnia (EUA) traz os primeiros sinais do fim do sonho - contratando os motoqueiros dos Hell's Angels e ainda tendo algumas mortes, era para ser a primeira turnê da banda na América após a morte de Brian Jones em junho, mas o clima não era realmente de "paz e amor" desta vez. O final da década de 1960 foi marcado pela grande renovação do soul, com mensagens anti-guerra, mensagens positivas ao povo afroamericano e também com suas porraloquices além do psicodélico: foi preciso que Sly & The Family Stone lançassem o clássico Stand! (leia o texto aqui) e também o soulman e produtor Isaac Hayes lançasse sua magnus opum Hot Buttered Soul (leia também o texto) para que o movimento funk começasse a ganhar uma expansão maior e tivesse uma enorme influência no rock e até no jazz, e uma nova safra de artistas surgiam, os grupos como Funkadelic, The Meters, Ohio Players entre outros estavam propagando essa vibe mais colorida da música black feita nos EUA, e alguns artistas aclamados, como os da Motown decidiram pegar carona no embalo, como no caso do cantor e compositor Marvin Gaye, que com seus 10 anos de trajetória, havia acumulado sucessos tanto em solo quanto na dupla que formava com Tammi Terrell, uma jovem moça que era a aposta da Motown e dona de uma das mais belas vozes que haviam surgido no soul, e havia sido escolhida para substituir Kim Weston em 1967 dividindo os vocais com Mr. Gaye no clássico Ain't No Moutain High Enough, mas um tumor cerebral maligno interrompeu de vez sua breve trajetória: afastada dos palcos, mas com grande vontade de dar voz, ela passou por oito operações malsucedidas até falecer em 16 de março de 1970. Marvin, mal estava preparado para seguir na música, com a perda da parceira e mergulhado nas drogas, viu que ele não ficaria vendo o mundo passar, ele decidiu então se reinventar total. Mas, para isso, teve de começar a negociar seu próximo álbum com a Motown, diferente de tudo que já havia feito até então, e com seu bom humor e talento, achou a resposta para tudo, o difícil era convencer Berry Gordy (executivo da gravadora e sogro de Marvin) a investir nesse seu álbum que marcaria para sempre a história da música, para não dizer apenas do soul e do rhythm and blues (R&B), óbvio.
Deixando a vontade de se aposentar após a morte da parceira Terrell, ele prepara seu material e chega a Gordy com a ideia de gravar um disco bastante politizado, crítico e também com um quê de ecologia no ambiente poético-musical, só que não esperava com uma indignação daquele que tanto o deu espaço na gravadora e o lançou, e quase rejeitou a proposta de uma das faixas de What's Going On, gravada em junho de 1970, converter-se em single e Gaye avisou que se não lançassem, que ele não gravaria nada, e, sob pressão do artista, a gravadora atendeu o pedido e lançou em janeiro de 1971 a faixa What's Going On, o primeiro single deste álbum que marcou para sempre a era setentista do soul como todo. Ao ouvirmos o disco, que foi lançado mais precisamente no dia 21 de maio de 1971, no auge do estouro do funk e bem no gigantismo do rock progressivo, você sente que são os 35 minutos mais marcantes da sua vida, isso eu posso lhes garantir:  inspirado após a volta de Frankie Gaye (irmão de Marvin) depois de um período de três anos servindo a América na guerra do Vietnã, ele serviu como pano de fundo para poder se tornar nas faixas a narrativa de um soldado que volta da guerra para seu chão estadunidense, e ele encontra nada além de ódio, sofrimento e injustiça e mostra um pouco das crenças espirituais do artista, no caso da corrupção policial e da pobreza - temas até então pouco debatidos. Ao ouvirmos os primeiros segundos da faixa que abre o disco, sentimos um ambiente de festa nos diálogos, mas sucedidos por um balanço soulzeiro bem suave e boom! - nós temos What's Going On, uma música linda de se ouvir desde os arranjos até a poética, e ele deixa claro que a guerra não é a resposta para nada no mundo, e transborda uma mensagem belíssima nos versos; em seguida somos surpreendidos por What's Happening Brother, marcado pela percussão embalante e sem decepcionar a gente: a faixa mostra essa confusão mental e emocional que todos estavam inseridos, sem comida, emprego, dinheiro e família num mundo de incertezas e desesperos destacados a cada verso da música; o momento mais bonito deste álbum - senão um dos mais bonitos é em Flyin' High (In the Friendly Sky), com uma pegada bem afrolatina nos arranjos e cheia de elementos do jazz e mostra o porquê de Marvin ser um dos maiores cantores de todos os tempos, e pronto; na próxima canção do disco a seguir, nós temos também um apelo para as crianças, um pedido de ajuda em Save The Children que lembra um discurso do então jogador de futebol Pelé após seu milésimo gol (na época, jogando no Santos) pedindo para ajudarmos e não esquecer das crianças, mas diferente do que o maior camisa 10 da história disse, aqui é cheio de diálogos que não fazem feio e com um belíssimo destaque para as cordas que encantam nossos ouvidos; na sequência, sem perder o lado religioso, nós temos um pouco de gospel aqui em God is Love, e aqui ele fala que Deus e Jesus são nossos amigos e dá belas lições aos cristãos ou não-cristãos, como por exemplo, a de que Deus nos perdoará por todos nossos pecados - gospel sem perder a essência soul ambientada neste disco; e em diante nós temos uma música onde fala-se de um tema totalmente raro de se discutir naqueles anos 70 - a ecologia, muito antes de virar comum nas campanhas de preservação ao meio-ambiente, Marvin já trazia sua preocupação em Mercy Mercy Me (The Ecology) e já deixava recados bem dado, e se você está lendo isso, é bom botar a mão na consciência sobre as preocupações, retratadas na canção com aquele suingue empolgante de sempre fechando o lado A do disco; para não perdermos o caminho do baile oferecido por mister Gaye, ainda temos a mais longa faixa deste álbum, intitulada Right On nos impressiona logo com sua cozinha sonora e suas melodias ambientadas nos seus sete minutos e trinta segundos de duração, que nos fazem ir para a pista de dança e curtir numa boa esse soulzaço de primeira; e esse suingue continua com peso na faixa seguinte, recheada de otimismo e mensagens para que tenhamos uma atitude para melhorar o mundo e sociedade nos versos de Wholy Holy que parecem soar como um poema clássico nos versos, com toques críticos para os anos 70, é claro; o fechamento deste disco fica por conta de um tema que prova todo o talento de Gaye em todo e o significado da palavra SOUL, bem autobiográfica pelo jeito - Inner City Blues (Make Me Wanna Holler) terminam com tudo este belíssimo álbum que marcou a música para sempre e inovou até os rumos artísticos na Motown, inspirando até colegas de gravadora como Stevie Wonder - a expandirem suas mentes para sons que fariam em seus discos seguintes, como Music of My Mind e também em Talking Book, ambos lançados em 1972.
Pelo fato de ser considerado uma obra-prima, é necessário re-explicar que o ambiente poético dentro das 9 faixas do disco soam como impactantes quando a gente escuta, e dá uma prova de que Marvin Gaye conseguiu dar sua volta por cima e lançar uma magnus opum eternizante sem deixar de sair de moda até hoje. Nos anos 80, a revista inglesa especializada em música, a própria New Musical Express (NME) elegeu este disco como o Melhor Disco de Todos os Tempos, e foi preciso comprovar novamente 18 anos depois de ter figurado em diversas listas de álbuns dos anos 70 e também do século XX, seu devido valor, e a Rolling Stone deu a ele o 6º lugar na lista dos 500 Maiores Álbuns de Todos os Tempos, e também fazendo presença na lista dos 1001 Discos Para Ouvir Antes de Morrer, é realmente a nossa bíblia do soul cheia de hinos ou também um hino em forma de disco, como vocês leitores queiram entendê-lo.
Set do disco:
1 - What's Going On (Al Cleveland/Renaldo Benson/Marvin Gaye)
2 - What's Happening Brother (James Nyx/Marvin Gaye)
3 - Flyin' High (In the Friendly Sky) (Elgie Stover/Anna Gordy Gaye/Marvin Gaye)
4 - Save The Children (Al Cleveland/Renaldo Benson/Marvin Gaye)
5 - God Is Love (Elgie Stover/Anna Gordy Gaye/James Nyx/Marvin Gaye)
6 - Mercy Mercy Me (The Ecology) (Marvin Gaye)
7 - Right On (Earl DeRouen/Marvin Gaye)
8 - Wholy Holy (Al Cleveland/Renaldo Benson/Marvin Gaye)
9 -  Inner City Blues (Make Me Wanna Holler) (James Nyx/Marvin Gaye)

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