Um disco indispensável: Johnny Cash at Folsom Prison - Johnny Cash (Columbia Records,1968)

Na década de 1960, o mundo começou a acelerar o ritmo das coisas: os fatos, os levantares dos movimentos em busca de igualdade e direitos sociais, o fervilhar das revoluções propagadas ao redor do mundo, os ideais de paz e amor, liberdade e tudo, era um mundo repleto de caos, som e fúria. Agora, volte para 1968 e se imagine dentro da situação que alguns países latinoamericanos viviam com seus regimes/ditaduras, a Espanha sob as mãos de Franco, Portugal ainda com Salazar no poder, a Guerra do Vietnã fazendo parte dos EUA se incomodarem com aquele momento. Gente jovem de cabelos longos, roupas coloridas, cheios de flores nas mãos pediam paz e amor nas ruas não só da América, mas do mundo todo, o auge do flower power ou hippie marcaram o final dos anos 60. A música foi uma forma de fazer revolução com seus discos longos, sons que pareciam nos levar a um universo diferente, proporcionados por gente como The Doors, Jimi Hendrix, Janis Joplin, Cream, os próprios Rolling Stones e os Beatles estavam numa vibe bem porralocona, psicodélica. Mas, um artista que se revangloriou no momento em que só se falava de paz e amor, onde cores vibrantes dominavam as ruas e a moda, ditando as regras culturamente, foi Johnny Cash. Ícone do country nascido no Arkansas, filho de um humilde fazendeiro, John Robert Cash começou a vida cedo, trabalhando em campos de algodão aos cinco anos e tinha um laço muito forte com o irmão mais velho, Jack, que faleceu quando tinha 12 anos, uma semana depois de ter sido puxado por uma serra de madeira no moinho em que trabalhava. Depois disso, ficou traumatizado e ficou esperando que um dia fosse encontrá-lo no paraíso, e isso ele dizia muito em revistas, canções, e foi até nos deixar em 12 de setembro de 2003 aos 71 anos, que reencontrou seu velho amigo. Cash serviu na juventude a Força Aérea americana, ele já fazia suas composições e tocava violão, muito antes de servir na Alemanha e já iniciou um caso com Folsom, a cidade, que descobriu assistindo a um documentário sobre a prisão do município californiano. Ao ser dispensado, o futuro Homem de Preto voltou da Alemanha, se casa com sua primeira esposa, Vivian Liberto, futura mãe de seus quatro primeiros filhos. E se encontra com dois músicos iniciando sua jornada como artista, um começo meio tímido em Memphis (cidade do Tennessee), onde se mudou para tentar a sorte grande vendendo ferramentas e também estudando para ser locutor de rádio. Imagina só a honra dele de fazer parte do famoso Million Dollar Quartet, o quarteto de artistas que vendiam muito na Sun Records, o primeiro grande salto: ele, Carl Perkins, Jerry Lee Lewis e um tal de Elvis Presley aí que estava começando a chamar a atenção de muitas jovens em especial pela sua imagem de galã dono de uma voz semelhante a de um cantor negro. Passados os anos, o destino deu muitas voltas na vida dele para que tudo começasse a se tornar diferente na vida dele: a começar pelos sucessos, ao invés de seguir na casa de Sam Phillips, foi para a Columbia, mas a vida quase lhe custou um preço muito alto.
Sendo um artista aclamado até mundialmente, o countrystar acabou ganhando uma fama de outlaw (fora-da-lei) que o levou até o final da sua carreira, diversas passagens pela prisão, muitas das penas não-cumpridas - mesmo que tenha passado só uma noite atrás das grades - e dono de uma selvageria marcante, o casamento com Liberto teve um fim duro e ele começou a se reinventar depois que começou um romance com June Carter, que junto de outros amigos do cantor, começaram a incentivar na sua recuperação e luta contra o vício em anfetaminas e barbitúricos, a partir da recuperação, conseguiu achar no amor e na música uma forma de se auto-reconstruir.
"Está bom pessoal, vou mostrar que faço música boa pra vocês"
E sua carreira conseguiu um grande novo salto na sua vida através de um disco gravado direto da prisão - sim, direto de uma prisão, tendo como plateia um monte de gente que está cumprindo sua pena pelos erros e crimes cometidos durante suas vidas! Mas, quem não compreendeu a ideia vindo da cabeça do Homem de Preto foi o pessoal da gravadora Columbia Records, da qual fazia parte há 10 anos, pelo fato de não saber o que passava na cabeça do homem da voz de trovão do Arkansas. Parafraseando o poeta Fernando pessoa, e não sabendo que era impossível, foi lá e fez: no dia 13 de janeiro de 1968, o cantor e compositor, acompanhado de sua banda que contava com Marshall Grant no baixo, Luther Perkins na guitarra e seu irmão, o velho conhecido Carl Perkins nas guitarras e vocais, W.S. Holland na bateria, e também os Statler Brothers nos vocais, além de contar com sua amada June Carter o acompanhando e dando uma canja, tudo isso com os registros trazendo sons dos elementos cumprindo suas penas ali se emocionando e rindo, captados por Bob Johnston - o produtor. O registro acabou mudando para sempre a história da música, deixando de levar seu som apenas para casas de espetáculos, mas para casas penitenciárias cheias de detentos, e é deste registro que vamos falar: Johnny Cash at Folsom Prison, lançado meses depois, ajudando ele a se manter em alta no público apreciador de country, trazendo na capa um icônico clique do Man in Black com um olhar sério e até suspeito, fotografado por Jim Marshall, um dos especialistas em retratar artistas de vários segmentos em momentos diversos. O álbum já abre com um anúncio "Hello, I'm Johnny Cash" que marcou para sempre suas entradas nos shows, e já dando a deixa para a canção Folsom Prison Blues, um tema inspirado após assistir um documentário, e que acabou se identificando com os detentos presentes no show; mais em diante, nós ainda temos a canção Dark as the Dungeon, escrito nos anos 1940 por Merle Travis e resgatado por Cash para trazer a história das condições de trabalho dos mineradores americanos, ganha uma versão bem emocionante que traz ovação no meio da cantoria, sinal de que estão gostando; na sequência, há um momento divertido até começar a canção I Still Miss Someone, gravado ainda há 10 anos quando estreou na Columbia, mantém os tons e o primor da versão original aqui; a seguir, dois temas que imortalizaram este trabalho, a primeira faixa é Cocaine Blues, um velho tema dos anos 40 trazendo um pouco daquele estilo western, o conto de um homem que mata sua mulher por influência do whisky e da cocaína traz uma certa ligação com alguns dos presos, a outra faixa a seguir é 25 Minutes to Go, aonde nosso Homem de Preto conta os últimos minutos de um detento antes de ir para o corredor da morte e passar pelos derradeiros sofrimentos até a cadeira elétrica, traz uma narrativa bem cronológica e até cinematográfica nos seus versos ao ouvirmos; ao puxar sons da sua harmônica, já sabemos que é o sinal para começar logo a executarem Orange Blossom Special, que não decepciona a gente ao decorrer da escuta deste álbum; um dos tantos contos retratados em canções que aparecem aqui é The Long Black Veil, onde Cash narra a história de um sujeito que foi executado de forma falsa sob a acusação de assassinato, que recusou na noite anterior a oferecer um álibi, pois teve um caso com a mulher de seu melhor amigo - e ainda afirma que preferia levar seu segredo ao seu lado quando morrer, do que falar a verdade - com apenas voz e violão da forma mais profunda o arranjo deste tema.

"June, como que o pessoal da Columbia achou que esse
show não vingaria em um grande álbum ao vivo? Tolos!"
Já o lado B do disco abre com uma canção autoral, Send a Picture of Mother, uma narrativa sobre alguém que parte e o eu-lírico pede para mandar lembranças aos pais e que acaba dando um toque bem suave no repertório do show, e já não decepciona demais quem esperava pouca coisa; em seguida, um tema antigo de Harlan Howard é resgatado no álbum com menos de dois minutos de duração, intitulada The Wall, que o vozeirão do Arkansas havia gravado em 1965 para o álbum Orange Blossom Special, e serve como uma base das suas canções; mais outra canção da antiga que aparece no repertório também para dar um toque a mais é Dirty Old Egg-Suckin' Dog, no melhor momento voz-e-violão do tema que já havia sido gravado antes em Everybody Loves a Nut (1966) aqui ganha esse tom mais simples com risos e ovação dos detentos em quase toda a canção; um tema que ainda mostra todo o poder vocal de Cash é Flushed from the Bathroom of Your Heart, com a mesma pegada do restante, a euforia da plateia, com seus 2:40, as duas canções são de Jack Clement - compositor de Memphis conhecido por suas canções country muito gravadas por gente como o próprio Cash, Dolly Parton, Tom Jones, Carl Perkins, Ray Charles, Elvis Presley entre outros; na próxima faixa, temos um dueto que acaba sendo o momento mais marcante deste registro: Johnny divide os vocais com sua amada June Carter, um country com ritmo e guitarras chamado Jackson, do próprio Man in Black, que acaba sendo outro ponto importante deste registro histórico da música em todo sobre uma pessoa que acaba querendo voltar para a capital do Mississippi; em seguida, os dois terminam seu momento duo de casal em Give My Love to Rose, uma canção de primor um tanto doce, pela levada um pouco mais soft inclusive, acaba sendo uma das canções que também não faz feio no repertório; no álbum ainda temos canções que mantêm a essência country com seus personagens no melhor estilo outlaw, como em I Got Stripes, de um sujeito que acaba sendo preso e nota que ele têm listras em seus ombros e correntes nos pés, percebam que no meio da música ele fala sobre um dos microfones está com o parafuso solto e diz para esperarem, porque ele iria consertar e fecha com um "alright" dando a deixa para o tema a seguir; em seguida, ele segue desfilando temas com suas histórias de um lado mais profundo e com versos cinematográficos - como no caso de Green, Green Grass of Home e a narrativa de alguém que volta para sua cidade natal e nota que quase nada mudou, até a grama verde da casa, com um coral primoroso dando apoio ao cantor com seus então 35 anos à época vivendo seu momento; antes que o show acabe - para nossa lástima - o cantor anuncia que a música seguinte foi escrita por um detento da prisão de Folsom chamado Glen Shirley (sortudo esse viu!), intitulada Greystone Chapel, carregada de muita religiosidade e falando de uma capela cinza que há na prisão, uma casa de culto dentro do antro do pecado, um ótimo destaque, e ainda fala "You wouldn't think that God had a place here at Folsom" (você nunca achou que Deus tivesse um lugar aqui em Folsom) provando a fé dentro do coração de alguns prisioneiros, fechando com chave de ouro este grande trabalho ao vivo, seguido de um instrumental empolgante que anuncia fim do show com a ovação dos detentos com um agradecimento pelo cantor e seu show na casa de detenção.
O disco entrou mesmo para a história, transformando-se em um dos melhores registros ao vivo de sempre, assim como seu sucessor na prisão de San Quentin, também situada na Califórnia e lançada no final de 1969. Cash seguiu sua trajetória brilhante com álbuns maravilhosos até nos deixar em 2003 e sempre mantendo a essência que perdurou através dos tempos, vindo a trabalhar nos últimos anos ao lado do produtor Rick Rubin, um dos últimos grandes parceiros na música. Estando em diversas listas importantes sobre música, o álbum conseguiu conquistar o 88° lugar na famosa e sempre citada lista da Rolling Stone dos 500 Maiores Álbuns de Todos os Tempos, e também comparecendo na lista dos 1001 Discos Para Ouvir Antes de Morrer, organizada pelo jornalista Robert Dimery, e em qualquer outra lista que você achar por aí, que mostre o grande legado do eterno voz de trovão do Arkansas.
Set do disco:
1 - Folsom Prison Blues (Johnny Cash)
2 - Dark as the Dungeon (Merle Travis)
3 - I Still Miss Someone (Johnny Cash/Roy Cash Jr.)
4 - Cocaine Blues (T.J. Arnall)
5 - 25 Minutes to Go (Shel Silverstein)
6 - Orange Blossom Special (Ervin T. Rouse)
7 - The Long Black Veil (Marijohn Will/Danny Dill)
8 - Send a Picture of Mother (Johnny Cash)
9 - The Wall (Harlan Howard)
10 - Dirty Old Egg-Suckin' Dog (Jack Clement)
11 - Flushed from the Bathroom of Your Heart (Jack Clement)
12 - Jackson (Jerry Leiber/Billy Edd Wheeler)
13 - Give My Love to Rose (Johnny Cash)
14 - I Got Stripes (Johnny Cash/Charlie Williams)
15 - Green, Green Grass of Home (Curly Putman)
16 - Greystone Chapel (Glen Shirley)

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