Um disco indispensável: Caetano Veloso - Caetano Veloso (Philips/CBD, 1967)

O ano era 1967. Iniciavam-se os grandes movimentos de contracultura, o livre uso de drogas e os protestos pela Guerra do Vietnã nos Estados Unidos. Os Beatles lançavam o seu mais ousado trabalho, o inovador Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band. Syd Barrett teve várias viagens lisérgicas e de drogas que o deixaram sem rumo enquanto membro da banda britânica de rock progressivo Pink Floyd. O festival Monterey Pop contou com Jimi Hendrix queimando sua guitarra e The Who arrebentando os instrumentos, além de um dos últimos grandes shows da lenda do soul music Otis Redding, que veio a falecer num acidente aéreo em dezembro. Era o ano de The Doors, Velvet Underground, Janis Joplin, Jefferson Airplane e outras bandas sacudiram o mundo da música com muita psicodelia e viagens sonoras. Aqui no Brasil, o governo militar de Arthur da Costa e Silva estava preparando algo que constrangesse a liberdade de expressão e os movimentos de esquerda e que seria o AI-5, instaurado em dezembro do ano seguinte. A Jovem Guarda seguia desbancando (em sentido de público e audiência) o programa O Fino da Bossa na Record, e isso tornou Roberto Carlos o verdadeiro ídolo da juventude na época e quanto ao Fino, os cantores/apresentadores Elis Regina e Jair Rodrigues se despediram do programa naquele ano. O ex-militar e ex-secretário de Carlos Imperial, o mulato Wilson Simonal sacudia a plateia do Teatro Record com seu programa Show Em Si Monal e até Brasil afora muito antes da expressão showman ser popular nos anos de hoje. Chico Buarque e Nara Leão, com o programa Pra Ver a Banda Passar, mostravam-se completamente tímidos em frente às câmeras. Uma manifestação com artistas da área mais conservadora e que valorizavam o velho estilo de fazer samba e bossa nova, além de saberem o que era “MPB de verdade” organizaram uma passeata conta a guitarra elétrica, estavam Chico, Nara, Elis, Jair, Edu Lobo, Gilberto Gil e outros artistas mais. O único que não foi à passeata foi outro baiano, como João, Caymmi e Gil: Caetano Emanuel Vianna Telles Velloso, ou melhor dizendo, Caetano Veloso. O baiano de Santo Amaro da Purificação viu os anos de 1967 e 1968 serem os melhores para ele naquela década, pois já começando com a performance histórica no clássico e inesquecível III Festival da Música Popular Brasileira com os Beat Boys tocando Alegria, Alegria e cantando a plenos pulmões “eu vou sem lenço, sem documento, nada no bolso ou nas mãos...” e rompendo barreiras com guitarras elétricas em um festival aonde apenas se apresentava coisas mais aproximadas ao samba, bossa nova e música brasileira “pura” até então com referências às raízes. No mesmo festival, Gil e um trio de jovens chamados Os Mutantes seguiu os ideais de Sgt. Pepper’s e fizeram de Domingo No Parque, outra prova de que a grande chance de “eletrificar” a Música Popular Brasileira era imensa e que estava só dando origem ao movimento efêmero e que com influências de Chacrinha, do Cinema Novo, da poesia concreta dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos mais o culto à Carmem Miranda e aos cantores de rádio, além de reverenciar João Gilberto, que assim se transformou em algo grandioso: o Tropicalismo.
Caetano Veloso em seu momento apoteótico no III Festival da
Música Popular Brasileira, em outubro de 1967: levou o 4º
lugar com "Alegria Alegria" acompanhado dos argentinos Beat Boys
No segundo disco de carreira e o primeiro como solista, o baiano converte este álbum homônimo, lançado meses depois da estreia com Gal Costa em Domingo, no seu cartão de visitas para o tropicalismo e sua música. A começar pela faixa Tropicália, um manifesto baseado em uma instalação do artista plástico Hélio Oiticica, aonde reverencia o seu estado Bahia, a eterna Carmen Miranda (1909-1955), a bossa nova e cita Roberto Carlos “... que tudo mais vai pro inferno, meu bem” com os arranjos de Julio Medaglia; a próxima faixa é Clarice, uma canção simples e cheia dos encantos poéticos que se podem perceber nos versos, com uma levada de bossa e que ganha uma levada de samba antes de encerrar a música; até no programa Jovem Guarda, o baiano já se apresentou e em No Dia Que Eu Vim-me Embora, carregava um pouco dessa onda iêiêiê promovida por Roberto, Erasmo e Wanderléa e tendo os Beat Boys como acompanhamento - aliás, foi desse conjunto argentino que saiu o guitarrista Tony Osannah (que acompanhou Raul Seixas ao longo dos anos 70 e 80) e o baterista Marcelo Frias (fez parte dos Secos & Molhados nos anos 70); a música considerada histórica no álbum pelo fato do III Festival da Música Popular Brasileira é a já dita Alegria, Alegria – frase que o baiano tirou do bordão de Wilson Simonal, quando apresentava seu programa televisivo e aqui acompanhado pelos Beat Boys ousando eletrificar de vez a MPB; uma simples levada de bossa suave em Onde Andarás, de parceria com o poeta Ferreira Gullar na qual os versos de Gullar acabam se cruzando com a melodia e a suavidade musical de Veloso; em Anunciação, uma pegada de baião e versos carregados de visão cinematográfica, acabam dando um quê de perfeição até; o estilo de som mais iêiêiê volta em Superbacana, de temática referente aos super-heróis, tanto dos quadrinhos quanto dos cinemas e citando a famosa moeda número 1 do Tio Patinhas, personagem de Walt Disney (1901-1966) e sob a companhia da RC7, a banda de apoio do capixaba consagrado como Rei e hoje conhecido mundialmente; já em Paisagem Útil, com arranjos que lembrem um pouco as lendárias canções de fossa das décadas de 1930 até 1950, Caetano consegue unir o perfeccionismo poético e musical como ele só consegue fazer; o dueto com Gal Costa em Clara parece soar como uma das faixas inéditas do álbum Domingo, até pelo fato de terem dividido juntos esta música, nada mal por aí; o lado portunhol em Soy Loco Por Ti, América - de Gil, Torquato Neto (1945-1972) e José Carlos Capinam – com arranjos nos levando para um som mais caribenho, com uma parte em espanhol e outra em português, acabou agradando a todos, até mesmo a diva cubana Celia Cruz (1925-2003), que em 1997 gravou a música ao lado do nosso hoje velho tropicalista; com uma pegada bem mais moderna, contando com guitarra, a tradicional Ave Maria é entoada em latim e com referências a versão musicada pelo alemão Franz Schübert; o disco encerra com Eles, uma bossa com ares já mais tropicalistas, notando-se pela presença de órgão Hammond B3 e guitarra, aonde Caetano fala sobre “o dia de amanhã” e com um encerramento elogiando o trio de Sérgio Dias, Arnaldo Baptista e Rita Lee “Os Mutantes são demais”.
A produção foi de Manuel Barenbeim, com arranjos de Damiano Cozzella e também de Julio Medaglia, contando com a presença do conjunto de apoio de Roberto Carlos, o RC7 e dos próprios Mutantes, apadrinhados por Gil. Seu lançamento original foi em fins de 1967, embora muito se diz em sites e revistas especializadas em música que foi lançado em 1968, ano em que foi lançado o disco-manifesto/projeto paralelo Tropicália Ou Panis Et Circensis. O disco, que teve problemas em reedições pelo fato de Ave Maria estar como 6ª faixa no CD e encerrar o lado A, sendo que está creditada com Anunciação e esta faixa ser a penúltima do lado B no vinil e do CD, o tal problema só veio a ser resolvido nas reedições mais recentes em CD. A capa é assinada por Rogério Duarte, já mostrando um pouco da onda Tropicália que veio a se engrandecer no ano de 1968, aonde uma mulher nua (cobrindo os peitos com os braços) segura o molde de uma foto de Caetano clicada por David Drew Zingg e na contracapa, uma carta do baiano destinada para Gilberto Gil e avisando que não tem comida para a irmã, a também cantora Maria Bethânia. Um disco que veio a marcar de vez o território de Caetano Veloso para sempre na história da MPB.
Set do disco:
1 - Tropicália (Caetano Veloso)
2 - Clarice (Caetano Veloso/José Carlos Capinam)
3 - No Dia Que Eu Vim-me Embora (Caetano Veloso/Gilberto Gil)
4 - Alegria, Alegria (Caetano Veloso)
5 - Onde Andarás (Caetano Veloso/Ferreira Gullar)
6 - Anunciação (Caetano Veloso/Rogério Duarte)
7 - Superbacana (Caetano Veloso)
8 - Paisagem Útil (Caetano Veloso)
9 - Clara (Caetano Veloso/Perinho Albuquerque) - participação de Gal Costa
10 - Soy Loco Por Ti, América (Gilberto Gil/José Carlos Capinam)
11 - Ave Maria (Caetano Veloso)
12 - Eles (Caetano Veloso/Gilberto Gil)

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