Combat Rock - The Clash (CBS Records/Epic Records, 1982)

Pense um pouco: imagine viver numa Inglaterra dos anos 1980 em que desemprego e desesperança andavam lado a lado quando se tinha além da monarquia, uma primeira-ministra que comandava a parte política de forma tão crítica que ganhou o apelido de Dama de Ferro. Isso mesmo, aquela Inglaterra que nos gerou nos anos 60 o big four do rock britânico clássico Beatles, Stones, Who e Kinks e em seguida o hard rock com Black Sabbath abrindo portas para o heavy metal, Led Zeppelin que viraria um estrondo mundial através de seus discos e com shows sempre lotados, Deep Purple que fazia um som meio viajandão, e o pessoal do Queen já com um pop rock mais cabeça, com uma formação mais variada e discos diferentes do pessoal roqueiro. O rock progressivo também não escapava de ter seu quadrado mágico, tendo Pink Floyd com seus álbuns repletos de arranjos como se fossem de outro mundo e capas de encantarem olhos, o Yes que fazia shows esporádicos e sempre uma viagem sonora a cada álbum e espetáculo, o Genesis que tinha um conceito mais teatral com Peter Gabriel nos vocais até 1975 quando é substituído pelo baterista Phil Collins e enverga para um caminho mais pop, e o King Crimson que já tinha sua trajetória consolidada e com um público fiel, conquistava seu espaço no mundo de vez. Diferente de tudo isso, chegava o punk com suas roupas de couro, calças jeans rasgadas, cabelos estilo moicanos e cuspindo na geração viajandona, detonando o rock progressivo e indo contra a corrente do sistema. A cena punk inglesa começou a dominar de vez após a vinda dos New York Dolls ao país do chá das 5 e berço do futebol em que conheceram Malcolm McLaren que ofereceu roupas de sua loja, e com isso, virou um marqueteiro genial ao colocar na boca da galera quatro músicos que tocavam e cantavam mal, faziam shows míticos, cuspiam nas pessoas e bradavam contra tudo, das gravadoras à Família Real britânica - esses eram os Sex Pistols, que em 1977 causaram tanto com suas aparições midiáticas, concertos ousados, e um disco que entrou para a história - com Never Mind The Bollocks, Here's The Sex Pistols, quem imaginaria que com um só disco a banda abriu portas para uma nova geração junto de mais outras 3 bandas: The Damned - que tinha uma repercussão bem diferente, The Jam que ajudou a reintroduzir o conceito da cultura mod inventada por The Who e uma banda em especial que fez tanto sucesso na Europa quanto nos EUA, justamente The Clash. O caso é o seguinte: os Sex Pistols tiveram que andar para que logo o Clash pudesse correr, pois como a primeira banda se dissolveu após a tournée americana em 1978, o Clash foi mais sortudo e conseguiu emplacar um disco atrás do outro. Tendo na banda quatro músicos que sabiam o som que estavam fazendo, mal sabiam Mick Jones (voz e guitarra), Joe Strummer (voz e guitarra), Paul Simonon (voz e baixo) e Topper Headon (bateria) que tinham tomado a sorte logo após lançarem a obra-prima London Calling às vésperas de 1979 acabar sendo o capítulo essencial para o fim do gigantesco auge do punk rock. A banda estava conquistando a mesma América que os Beatles 15 anos antes e influenciando novas bandas no cenário, com letras de fortes mensagens críticas e cheias de posições políticas em que não perdoam nada e ninguém, o próprio conjunto tomou as rédeas e assumiu de forma própria a produção do álbum seguinte Sandinista!, lançado dias após o trágico fim do eterno beatle John Lennon, e dessa vez o grupo seguia com mais gosto de sangue na boca em um álbum triplo com 36 faixas e 144 minutos, caso raro de banda lançar mais de dois álbuns.
Em 1981, era a hora e a vez da era discothéque perder a força que havia tomado de assalto o final dos anos 70 com seus temas festivos, arranjos cheios de swing e que animou casas noturnas afora como a lendária Studio 54 em Nova York, que era o point de várias personalidades que ia desde ícones do rock como Mick Jagger, Rod Stewart, Lou Reed e David Bowie, astros do cinema como Jack Nicholson, Farrah Fawcett, John Travolta e Sylvester Stallone, o artista plastico Andy Warhol que era o principal habituée da boate, e personalidades que iam desde Jackie Kennedy-Onassis até o futebolista Pelé (1940-2022). Enquanto o Clash do outro lado do Atlântico preparava London Calling, na América aconteceu de um radialista chamado Steve Dahl realizava durante uma partida de baseball em Chicago a considerada Disco Demolition Night, como uma forma de enterrar a disco music queimando álbuns na qual o principal grito de guerra era "Disco sucks" (disco é uma porcaria - tradução livre), fazendo com que o levante new wave começasse a crescer através de artistas como Devo, B-52's, Duran Duran entre outros, além disso, o pós-punk estava muito carregado de influências até do reggae. O Clash veria a crise quando, seguido do lançamento de Sandinista!, os quatro sentiram estar criativamente "à deriva" e Simonon e Strummer demonstravam insatisfação com a Blackhill Enterprises, que estava agenciando a carreira do grupo naquele momento e decidiram trazer de volta o antigo empresário da banda, Bernard Rhodes afim de restaurarem a energia, o caos e a loucura dos primeiros discos - o que não agradou Jones logo de cara, começando a se afastar progressivamente da banda. As gravações foram se iniciando de vez em setembro de 1981 e foi tendo sua retomada novembro e durando até janeiro de 1982, encerrando de vez em abril e foram usados na Inglaterra os estúdios Ear em Londres e Warnford em Hampshire enquanto na América o lendário e memorável Electric Lady - aquele que Jimi Hendrix construiu antes de morrer - foram usados pra gravação. O Clash contou com a presença de Glyn Johns, renomado engenheiro de som inglês, na produção e nos retoques finais de mixagem, e inicialmente Jones tinha sugerido a ideia de um disco duplo com o título provisório Rat Pack From The Bragg que durasse 77 minutos, mas em vez disto, optaram por um disco simples com 46 minutos de duração, e acabou por levar o nome definitivo de Combat Rock. Enquanto isso, a banda curtia uma série de shows em 6 semanas realizada em países como Japão, Austrália, Nova Zelândia, Hong Kong e na Tailândia, onde a banda no meio do intervalo dos shows posou para fotos clicadas por Pennie Smith que virariam a fazer parte da capa de Combat Rock, que lançado em 14 de maio de 1982, novamente colocou o Clash na crista da onda antes do último grande auge de uma das maiores bandas de punk da história. A banda aproveitou o lançamento do disco para poder iniciar a divulgação de alguns de seus temas através de um canal de televisão que estava dedicado a passar 24 horas de videoclipes - a novata MTV, que em pouco tempo estava ajudando a inovar a forma de consumir música como pouco se imaginava naqueles tempos. Eles novamente estavam prontos para o combate, era a hora do contra-ataque. E o Clash iria vencer isolado essa luta sem golpes, trapaças e nenhum jogo sujo.
O disco abre logo de cara com um hino que soa como pedrada nos nossos ouvidos - Know Yopur Rights dá logo o aviso de que isso é um anúncio público com guitarras onde fala de três direitos: o de não sermos assassinados pois é crime, o de dinheiro à alimentação e da liberdade, essencial - Joe Strummer acaba sendo o porta-voz de quem merece voz na canção, a guitarra e a bateria funcionam como o motor principal sonoro; em seguida o grupo entrega no disco uma música que mantêm a essência crítica do grupo, Car Jamming encosta o dedo na ferida dos maus tratos com as pessoas de situação mais humilde num momento em que a Inglaterra vivenciava sua maior crise e alta taxa de desemprego, o arranjo marcado pela linha de baixo de Simonon e Strummer nos vocais, a agressividade sonora causa uma surpresa ao ouvirmos com mais atenção; o grande destaque de verdade fica para a faixa seguinte que se tornou o maior hit da carreira da banda: Should I Stay or Should I Go? onde narra um momento em que o cara fica em dúvida com a sua amada se ela quer ficar ou ir com ele, a dúvida ainda traz versos em espanhol entoados depois das frases em inglês, destaco aqui a épica entrada de guitarra da abertura, a voz de Jones e os coros em espanhol de Strummer entraram pra história sendo o maior legado do Clash em sua trajetória musical; a próxima música também foi um grande sucesso como se pode imaginar, a embalante e um tanto controversa Rock The Cashbah foi uma criação Headon com a dupla Strummer & Jones sobre como seria o ponto de vista de como as pessoas seriam apedrejadas apenas por possuirem um álbum de música disco num país como o Irã, o flerte com a pegada caribenha que remete ao chachachá e também a salsa funciona com a pegada roqueira, o piano tocado pelo baterista funciona como uma peça-chave no som, porém, anos depois viria a ser censurada em países árabes durante a Operação Tempestade no Deserto por promoverem o anti-arabismo (doideira!); com tanta mensagem de cunho político e social, é claro que o Clash não iria perder de falar sobre a violência que tanto dominou a cidade de New York como mencionada em Red Angel Dragnet, que fala sobre os Guardian Angels, uma patrulha antiarmamentista que combate a violência na principal metrópole mundial e foi inspirada na morte de um de seus ativistas, com menção até mesmo ao personagem de Rober De Niro em Taxi Driver (1976), o rock dá uma desacelerada, mas sem perder a força, apesar de também ser uma rara exceção de Simonon como solista ao lado de Kosmo Vinyl como um diálogo radiofônico; mais adiante, fazendo justiça com a mensagem musical que entregam, Straight to Hell faz poeticamente uma abordagem de três pontos de vista a imigração, a primeira é a britânica por ter visto suas ex-colônias no Caribe receberem imigrantes e no subcontinente indiano após a II Guerra Mundial, enquanto o segundo ponto de vista coloca os EUA e os filhos dos soldados americanos no Vietnam que foram impedidos de obter o visto de cidadania estadunidense, já o terceiro põe uma visão muito expandida de forma geral em qualquer fronteira e hemisfério - essa canção carrega uma cutucada na forma como os outros países se mostram diante da questão imigracional, e até na parte instrumental dá pra entender o recado com a bateria bem enérgica e uma guitarra que começa nervosa e vai soando mais básica, Strummer acerta em cheio cantando esse hino; em seguida, o grupo ainda entrega outra pérola quase escondida dentro do disco e que deveria ser mais notada - Overpowered By Funk tem uma pegada muito próxima de uma sonoridade disco era uma letra em que debochava da linha consumista e da galera que estava dominada pela onda funky, além de uma espécie de poema improvisado pelo grafiteiro Futura 2000 falando sobre a importância da arte feita nas ruas e da luta pra conseguir expor sua arte feita clandestinamente em prédios, trens e subterrâneos, o arranjo bem mais balançado dá esse ar de funk neowavístico pela sequência rítmica e pelo groove do baixo de Simonon além da voz enérgica de Strummer que não dava sinais de desgaste; indo para a próxima faixa, o grupo ainda mantém o pique e a energia que entregam a cada canção, e o caso de Atom Tan já não é diferente, uma vez que fala de um assalto a um banco e também uma visão de um cenário apocalíptico, aqui a mistura de rock com elementos afrocaribenhos pela percussão dando essa impressão do flerte do Clash com a música latina aparente; na sequência, o grupo apresenta um tema que carrega a história de um personagem real e com um final trágico - Sean Flynn o Clash fala a respeito de um ator com carreira promissora em Hollywood que decidiu virar fotojornalista e durante a Guerra do Cambodja em 1970 ele é desaparecido e até hoje pouco se sabe sobre o que realmente aconteceu, Strummer usa a pegada de ritmos africanos e efeitos simulando ruídos de guerra dando a impressão de soar mais dark pela melodia e pelos acordes de baixo e guitarra, além do sax soar melancólico, um dos pontos mais altos do lado B do disco talvez; continuando a análise, o grupo sempre mostrou ser cheio de referências, e a canção seguinte trouxe um convidado de nível cult - Ghetto Defendant foi colaboração com o lendário poeta beat Allen Ginsberg e fala das diferenças de condições de vida numa cidade em especial da galera mais simples, os moradores de rua e os vícios que estão expostos, mantendo a essência punk, a banda vai por uma vibe sonora mais regueira que une a Inglaterra à sua antiga colônia (logo a Jamaica) e com Ginsberg cantando meio que de forma falada aqui; em seguida, temos mais uma música onde temos um choque de realidade descrito em versos - Inoculated City ousa abordar a ideia de viver no estado como burocrática, tranquila, privilegiada, protegida e longe do conflito global, também coloca uma reflexão do clima pós-colonial e temos um momento bom pra guitarra e bateria, um dos últimos momentos de Headon à frente das baquetas e de Jones como guitarrista e vocalista; o encerramento do disco fica por conta de uma das mais diferentonas canções do grupo - Death is a Star faz de forma sincera uma crítica sobre o excesso de violência nos filmes e sobre o desejo das pessoas de verem gente sendo executadas, aqui o disco é encerrado com um arranjo voltado ao jazz dos anos 1920/30 com um piano mais sofisticado e um violão à la espanhola deixando aquele gostinho de quero mais pros fãs de Clash.
Era o momento da banda continuar se consolidando no topo e seguir fazendo o sucesso de sempre, porém, nem tudo são flores, pois após o disco, Headon é demitido por causa de seu vício em drogas especialmente em heroína e em seu lugar Terry Chimes assume as baquetas enquanto a banda fazia apresentações esporádicas como a no estádio Shea Stadium em outubro abrindo para o The Who e em maio de 1983, Jones fazia sua última apresentação com o conjunto no US Festival marcado por controvérsias relacionadas ao cachê e críticas veladas a artistas como David Bowie e Van Halen por receberem mais que outros artistas também participantes. Com a saída de Jones, a banda perdia o rumo e Chimes logo sairia também, substituído por Terry Howard enquanto Nick Shephard ocupava a vaga de Mick resultando na formação que trabalharia com Strummer em seu próximo disco, a bomba Cut The Crap - mas aí já é uma outra história. O álbum tornou-se do ponto de vista de alguns como o último grande grito do punk rock, e embora esteja ausente de listas importantes, ele segue sendo o favorito de muito maluco que dançou o "shurastey or shuraigou" sem saber da importância do disco que gerou este hino, e que mostrou uma banda no seu melhor contra-ataque.
Set do disco:
1 - Know Yopur Rights (Joe Strummer/Mick Jones)
2 - Car Jamming (Joe Strummer/Mick Jones/Paul Simonon/Topper Headon)
3 - Should I Stay or Should I Go? (Joe Strummer/Mick Jones/Paul Simonon/Topper Headon)
4 - Rock The Cashbah (Joe Strummer/Mick Jones/Topper Headon)
5 - Red Angel Dragnet (Joe Strummer/Mick Jones/Paul Simonon/Topper Headon)
6 - Straight to Hell (Joe Strummer/Mick Jones/Paul Simonon/Topper Headon)
7 - Overpowered By Funk (Joe Strummer/Mick Jones/Paul Simonon/Topper Headon/Futura 2000) - participação de Futura 2000
8 - Atom Tan (Joe Strummer/Mick Jones/Paul Simonon/Topper Headon)
9 - Sean Flynn (Joe Strummer/Mick Jones/Paul Simonon/Topper Headon)
10 - Ghetto Defendant  (Joe Strummer/Mick Jones/Paul Simonon/Topper Headon)
11 - Inoculated City (Joe Strummer/Mick Jones/Paul Simonon/Topper Headon)
12 - Death is a Star (Joe Strummer/Mick Jones/Paul Simonon/Topper Headon)

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