Tem Mas Acabou - Pato Fu (Plug/BMG Music, 1996)

No meio da década de 1990, o Brasil buscava se recuperar da amarga crise que atormentou milhões de pessoas, levando ao confisco de poupanças, desemprego e o buraco ficava mais fundo. Com o surgimento do Plano Real, em 1994, o brasileiro podia ter um alívio e ter um poder aquisitivo que ajudasse a manter uma boa estabilidade financeira, comprar eletrodomésticos, automóveis e até mesmo ostentar sem perder a pose, embora ainda havia uma incerteza no começo da fundação da nova moeda brasileira - muita gente era feliz com o dólar barato e viajando pros Estados Unidos onde se sentiam no paraíso desde visitando New York até realizando sonhos infantis na Disneylândia. O Brasil pós-ditadura vinha renovando sua própria identidade cultural entre os anos finais do regime ditatorial militar e o período do governo Sarney (1985-90), quando o rock brasileiro perdeu grande espaço na mídia dando espaço para a crescente do boom do sertanejo, axé e da lambada - que, diferente dos dois primeiros gêneros, durou alguns anos na transição entre os governos Sarney e Collor - mas, quem pensou que o rock havia adormecido para o mainstream com as bandas da geração 80 virando medalhões enquanto algumas outras hibernaram para sempre ou ficaram paradas no tempo esperando triunfarem de novo - estavam muito errados, a cena só se renovava, ainda mais em Minas Gerais. O cenário estava recheado de bandas e em Minas Gerais o rock seguia rolando, bandas como Sepultura (sim, o Sepultura nasceu em Minas, uai), Kamikaze, Serpente, Língua Solta, Hosana Nas Alturas, Pouso Alto, 
Divergência Socialista, Último Número e Sexo Explícito - essas duas da qual fez parte um jovem rapaz chamado João Daniel Ulhoa, que tinha em Belo Horizonte além desses dois grupos o projeto Sustados Por 1 Gesto, do qual fazia parte também um músico e amigo próximo de John, Bob Faria - um duo convertido em trio a partir do início dos anos 1990 com a adição de uma jovem nascida no Amapá e criada também na Bahia e radicada em Minas e Belo Horizonte em especial desde os 8 anos, Fernanda Takai com passagem pela banda Data Vênia somava-se ao Sustados enquanto partia de intercâmbio para o Arizona (EUA) e voltaria para a capital mineira onde o Sustados viraria de imediato uma outra banda com a troca de músicos - sai Bob Faria e entra Ricardo Koctus no baixo, que trabalhava numa loja de instrumentos da qual John era sócio, a Guitar Shop. Fernanda, que também frequentava a Guitar Shop, havia também conhecido John por ali quando comprava cordas para seu violão, e disso tudo, aos poucos, nascia também o amor entre o futuro casal que estava concebendo o primeiro álbum que seria logo um dos lançamentos mais importantes do rock nacional: Rotomusic de Liquidificapum, editado pela Cogumelo Records (selo mineiro especialista em heavy metal) era experimental, cabeça, e muito a cara do começo dos anos 1990 consolidando o grupo como um fenômeno primeiro regional dentro de Minas e em seguida, nacional, e isso fez com que o Pato Fu tivesse uma receptividade boa graças a repercussão dada por emissoras de TV como a MTV, veículos impressos como a revista BIZZ e também botando o pé na estrada com o manager da banda Aluízer Malab que segue até hoje com a banda. Em 1994, a gravadora BMG decide reviver o selo alternativo Plug através do comunicador e fotógrafo Mauricio Valladares e dentre as bandas contratadas estavam Professor Antena, Athalyba e A Firma, Omeriah e o trio mineiro estava nesse bailado. Como contratados de uma multinacional, o sucesso da banda estava prestes a se expandir, e tudo foi ajudando a favorecer a banda - com Gol de Quem?, era o momento de o conjunto conquistar de vez o país e isso graças aos sucessos Sobre o Tempo, Spoc e Mamãe Ama é o Meu Revólver, mais as regravação de Qualquer Bobagem, cover dos Mutantes, a quem o Pato Fu era comparado no início pelo estilo irreverente e pelo formato de trio - dois homens e uma mulher, além da estética sonora diferente das outras bandas.

E foi através desse conceito de estética sonora diferente que a banda decidiu continuar sua irreverência em forma de canções, visto que após o estouro gigantesco de Gol de Quem?, a banda fez uma performance histórica na última edição do Hollywood Rock em 1996 já como quarteto, uma vez que a partir do final do ano, após vários testes, o baterista que assumiu a parte rítmica (antes feita por John programando) foi Xande Tamietti - pronto, o Pato Fu deixava de ser trio em definitivo e logo foi se enturmando a John, Fernanda e Ricardo. No mesmo Hollywood Rock em que a banda tocava para uma multidão, Takai realizava sonho de fã: conhecer seu grande ídolo e referência musical Robert Smith, do The Cure, que ganhou ainda um CD da fã brasileira. Após o festival, hora de levar novas ideias para o estúdio, mas, desta vez, sem Carlos Savalla - produtor do álbum 
Gol de Quem? - pois estava trabalhando com os Paralamas do Sucesso no álbum Nove Luas, e o produtor escolhido para o desafio foi André Abujamra, muito em evidência na época por causa do grupo Karnak do qual ele é o principal membro, como cantor, compositor, guitarrista e produtor. Abujamra e John descobriram conexões similares já que o primeiro se fascinou com as engenhocas sonoras do guitarrista e daí em diante o disco foi sendo um trabalho com uma característica mais pop, mais solar e com letras bem-humoradas com as gravações em Belo Horizonte no lendário estúdio Bemol em abril e maio daquele 1996 e mixado e masterizado em São Paulo - primeiro a mixagem no estúdio Arp e a masterização na Cia. de Áudio. Para o próximo álbum, o resultado foi certeiro - fazendo uma brincadeira com a falta de exemplares do segundo CD nas lojas, o nome Tem Mas Acabou lançado em setembro foi um acerto pois com letras mais diferentes, a banda foi vista como quem estava pegando carona no embalo do rock escrachado e satírico dos Mamonas Assassinas - que faleceram em março daquele ano - fazendo com que diversas bandas fossem pegar carona no mesmo estilo, porém, o Pato Fu ia além da bobageira mamonística que contagiou o Brasil por quase cinco anos, um fato óbvio. O álbum teve presença de gente como o próprio Abujamra entre guitarras, bumbo, piano e vocais e ainda teve o restante do Karnak - Sérgio Bartolo no baixo, Carneiro Sândalo na bateria, Eduardo Cabello na guitarra, Marcos Bowie no trompete, Hugo Hori no saxofone e Tiquinho no trombone, além de Marcelo Cotarelli no trombone e a presença de uma dupla lá da Sbórnia - o Maestro Pletskaya e Kraunus Sang, ou melhor, os gaúchos Nico Nicolaiewsky no acordeon e Hique Gomez no violino, ambos do duo teatro-musical Tangos e Tragédias, além de Aluizer Malab soltando sua voz. A capa do álbum é criação de Ricardo Carvalho com fotos de Cuia Guimarães onde mostra na capa uma espécie de pomada desgastada sob um fundo rosado com o logo da banda acima, a contracapa traz a foto de uma lata de bebida sem nada além de estar aberta e na parte interna da contracapa uma caixa de fósforos também vazia fazendo alusão ao nome do disco, e no encarte interno fotos do conjunto - individuais e juntos.
Éramos três: com Xande Tamietti (camiseta laranja) na bateria,
o Pato Fu agora vira uma banda de quatro cabeças e
expande suas fronteiras para o tipo de música que buscavam fazer
O disco abre de cara com uma vinheta que antecede o que vem por aí na audição - Nós Mes é uma criação de John Ulhoa com Bob Faria, antigo membro do embrião da banda (Sustados), uma electro-salsa-rumba com metais programados marcado por um grito de "buenas", a única coisa realmente dita na faixa, marcada pela guitarra de John e dando a deixa para a próxima faixa - abordando em uma letra quase séria sobre a questão de carência de água em regiões humildes como no sertão nordestino, a banda faz de Água uma canção consciente e de esperança visto que John como a voz principal faz o papel de um homem que clama por uma chuva, além dos vocais do grupo como soando uma dupla sertaneja e a presença do violino de Hique e do acordeon de Nico acrescentando mais riqueza ao som da música; a seguir, somos apresentados ao considerado grande hit deste álbum e da carreira do conjunto - Pinga com o Casal Fu (John e Fernanda) dando um show nos versos em que Fernanda canta "eu tomo pinga" e John faz perguntas de quando alguém está bêbado demais, em seguida eles invertem a parte um do outro, o destaque vai pra pauleira que é escutada após o refrão, característica dos anos 90, e sopros como se fossem trompetes de mariachi feitos por John nos "128 japs" (aparelho de samplers e programações) que dá esse ar de música de filme de faroeste (o clipe da música tem essa vibe); a próxima música tem um conceito bem próximo do rock-cabeça da banda - Capetão 66.6 FM traz no início uma sequência de rádio sintonizada com direito a um verso "sabe aquela gata?" numa pegada de balada pop/R&B e em seguida uma balada bem estilo brega onde se ouve "a paixão e o desejo me consomem" que é a versão de O Homem da Minha Vida da banda Língua de Trapo e depois um rock, depois uma música eletrônica virando um rock nervoso e novamente o rádio tentando se sintonizar onde ouvimos "ela agora é maneta por causa desse rapaz" e logo temos o Capetão invocado pela voz de John num metal bem tenso e que sucede por outra peça sonora executada pelo Karnak, de suposto nome Maristela e volta pra parte do Capetão depois de quase um minuto fechando com tudo - de princípio, acha a letra nonsense, mas entende-se como uma que o demônio estivesse invadindo ondas sonoras; sobrando tempo para mais pérolas, a banda ainda vai com O Peso das Coisas (Maria e Gabriel) busca ir de forma humana na revelação que o anjo Gabriel faz à Maria sobre o filho Jesus que ela espera em seu ventre, de princípio uma guitarra que imita jazz-rock ganha corpo com violão, baixo e bateria que de começo parece imitar The Cure, e ganha presença dos metais do Karnak mais Marcelo Cotarelli no trompete com uma sequência bem jazz com um quê de soul também; em seguida, John entrega outra pérola do disco em sua voz, mas da autoria do baixista Koctus - a singela Tchau, Tô Indo, Já Fui é uma espécie de despedida sem mágoas e nenhuma sensação de que perdeu algo importante, pelo contrário: está terminando a relação, deixando de viver com a pessoa amada e prefere seguir o seu rumo longe, destaque pela levada meio synth com new wave dos 80 com a batida eletrônica e a bassline de Koctus que muda pra um pop simples com cara de iêiêiê/beat dos anos 60 com um tom noventista que dá muito certo; na sequência, o grupo manda ver com tudo em Cérbelo, onde aqui fala sobre a violência e a falta de compaixão numa crítica bem debochada onde sobra até para árvores de natal, a guitarra de John e a bateria de Xande soam bem mais próxima de um pós-punk e de um power pop do que de um hard rock quando tenta entender a sonoridade desta faixa.
Ainda contamos com o momento soft-pop do disco fica por conta de Fernanda, que é a voz e a compositora de Nuvens, que fala da sensação de sonhar algo como se sentir andando nas nuvens, o arranjo lembra muito a pegada bossa nova já na onda do drum'n'bass até pela batida (tendo um bumbo tocado por Abujamra) e com a guitarra jazzy que combina perfeitamente com a sonoridade pra canção; não deixando passar batido no repertório, ainda temos aqui outra pérola ainda do início da banda - Little Mother of Sky originalmente chamada de O Fim do RPM brinca provavelmente com a questão da monotonia e até chega a brincar com alguns nomes como Luciana Ventania (para não mencionar a atriz na cara dura, provavelmente) e fala que a história não pede bis, a base instrumental não erra nas melodias e Xande Tamietti mostra porque é um dos melhores bateristas da geração 90; abrindo exceções para o repertório autoral da banda, aqui temos um cover raro de uma canção espanhola - Porque Te Vas, sucesso na voz de Jeanette graças ao filme Cría Cuervos (1975) de Carlos Sauria, com sua letra falando de quem vê um amor se desfazendo e partindo pra sensação de tristeza por alguém ir, com os mineiros ganha um ar de ska à moda californiana marcado pelo trombone de Tiquinho dando essa aparência ao ouvirmos - lembra meio Café Tacvba nessa vibe; sem mais delongas, vamos à faixa seguinte, como de lei, John dando voz a uma de suas tantas criações poético-sonoras - 1 de Vocês parece tratar sobre alguém conhecendo outra pessoa se perdendo pela cidade provavelmente à noite, com uma guitarra psicodélica e um violão super bem tocado por Fernanda, um rock mais viajandão com elementos sonoros mais atuais pra época; adiante, o disco é tomado por uma positividade enorme ao escutarmos Lá Se Vai Minha Razão de Viver - no encarte do CD, chamada de Lá Se Vai temos Fernanda convidando quem esteja ouvindo ver a vida passar diante dos nossos olhos, e reconhecemos que a voz de Takai sempre dá uma impressão de que ganha um destaque quando é solo, sem desmerecer John, Ricardo e Xande que não erram aqui também; na música que vêm a seguir ela é simples e rápida, criação de Koctus, a rápida Dentro/Fora faz um jogo de palavras meio confusas, mas entendemos que quando estamos num lugar ou situação, é melhor estar dentro do que fora, com 1:45 de duração, a gente parece estar ouvindo uma demo com a bateria programada, mas é John e Fernanda brincando com a música de Ricardo fazendo um som que lembra Devo e Toy Dolls onde o guitarrista manda um riff bem encaixado no arranjo; o encerramento fica por conta de mais uma canção do Koctus fechando com chave de ouro - Feliz Ano Novo é o sinal de que a conta fechou, pede mais uma música "uma valsa, um tango ou mesmo um rock and roll", uma balada jazz com a presença de Abujamra ao piano, Nico ao acordeon e Hique ao violino deixando bem a cara de música dos anos 40 numa letra dos anos 90 - seguido dos aplausos, ainda temos duas surpresas - o primeiro é o recado de uma dupla caipira que dá a sensação de ser o aviso da caixa de recados, logo carrega o nome de Secretária Eletrônica em que escutamos John e Fernanda simulando uma dupla caipira aconselhando a quem for dar recado, que vai até 3:27, e em 10 minutos temos silêncio até 13:27 onde ouvimos o John com uma voz engraçada anunciar "essa é a história do Capitão Oréia" com aquele ar de música empolgante e animada de circo - piano e violino são os principais instrumentos que percebemos ao lembrar da sonoridade, onde brincam em A História do Capitão Oréia sobre um herói que promete ajudar e salvar, e fecha com um som parecido ao grunhido de um cavalo terminando essa obra de arte do pop rock nacional dos anos 90.
Apesar do sucesso relativo do álbum, a banda seguiu crescendo de forma relevante ao público e lotando casas de espetáculo pelo Brasil afora, e mesmo não vendendo o que os colegas do Skank vendiam à época, Pinga fez um sucesso enorme para a época, tocando em várias rádios Brasil afora, a ponto de levar a banda a ter o álbum lançado no México através do selo Culebra, que era destinado ao rock hispânico, da BMG lá nas terras do guacamole e dos mariachis. O disco acabou sendo também um esquenta para o que viria mais adiante, apesar de ter sido um bom trabalho a produção de Abujamra, a banda viria a trabalhar em um próximo trabalho com outro produtor, o best-seller do pop brasileiro da época Dudu Marote vindo de dois álbuns de sucesso com o Skank, faria os Fu emplacarem um álbum mais pop e mais comercial quase dois anos depois com Televisão de Cachorro, mas aí já é uma outra história.
Set do disco:
1 - Nós Mes (John Ulhoa/Bob Faria)
2 - Água (John Ulhoa) - participação de Hique Gomez e Nico Nicolaiewsky
3 - Pinga (John Ulhoa)
4 - Capetão 66.6 FM (John Ulhoa/André Abujamra) - participação de Karnak
5 - O Peso das Coisas (Maria e Gabriel) (John Ulhoa)
6 - Tchau, Tô Indo, Já Fui (Ricardo Koctus)
7 - Cérbelo (John Ulhoa)
8 - Nuvens (Fernanda Takai)
9 - Little Mother of Sky (John Ulhoa)
10 - Porque Te Vas (José Luis Perrales)
11 - 1 de Vocês (John Ulhoa)
12 - Lá Se Vai Minha Razão de Viver (John Ulhoa)
13 - Dentro/Fora (Ricardo Koctus)
14 - Feliz Ano Novo (Ricardo Koctus) - participação de Hique Gomez e Nico Nicolaiewsky
       b. Secretária Eletrônica (John Ulhoa/Fernanda Takai) - faixa escondida a partir de 2:54
       c. A História do Capitão Oréia (John Ulhoa/Fernanda Takai) - faixa escondida a partir de 13:27

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