Vida Boêmia - João Nogueira (Odeon, 1978)

A década de 1970 foi impactante na história da música popular brasileira, talvez a década em que mais houve desafios para os cantores e compositores onde a ditadura militar estava passando mais de 10 anos no poder, direitos foram tirados e mesmo assim, pessoas eram presas, desaparecidas e mortas de forma injusta. A década que começou com o tricampeonato do Brasil na Copa do Mundo realizada em 1970 no México, ganhou destaque pela grande volta de Chico Buarque após mais de um ano no autoexílio na Itália, e dois anos depois era Gilberto Gil e Caetano Veloso que regressavam ao Brasil após mais de dois longos anos em solo inglês onde tiveram uma profunda expansão de sua música e absorveram como esponjas o que acontecia fervorosamente por lá. Se por um lado, movimentos como a jovem guarda e o tropicalismo deixaram seus legados para as gerações posteriores da música, o samba de raiz ficava como nos anos 70? É aí que vamos destacar um personagem e seu mais relevante disco hoje, um cantautor do samba que vestia a camisa sempre e nunca abandonou suas raízes - estou falando do genial João Nogueira, ele mesmo! Nascido no Rio de Janeiro em 12 de novembro de 1941, ele era filho da cantora amadora Neuza e do advogado e compositor João Baptista Nogueira, que também era um exímio tocador de violão que era elogiado até por Pixinguinha e Jacob do Bandolim - nada mal. Além dos pais, a irmã Adalgisa, que além de também aprender a tocar violão com o pai, era cantora e compositora. Na adolescência, começou a compor para um bloco de seu bairro, o Labaredas, no Méier, o início de uma longa trajetória. Mais tarde, como funcionário da Caixa Econômica Federal, ele já havia uma trajetória pequena como compositor relevante, gravado pelo Conjunto Nosso Samba e também pela Elizeth Cardoso, sua notoriedade foi crescendo quando em 1971 decide compor um samba defendendo a expansão do limite de fronteiras marítimas de 200 milhas em Das Duzentas Pra Lá, o que acabou sendo visto duvidosamente como um samba ufanista, já que era época de ditadura militar, fazer uma canção estampando patriotismo ficava mal visto que . Logo em 1972, lança seu primeiro disco pela gravadora Odeon onde apresentou seu vasto repertório como a mencionada anteriormente Das Duzentas Pra Lá, Morrendo de Verso em Verso, Meu Caminho e Beto Navalha. Em 1975, emplaca seu grande sucesso discográfico Vem Quem Tem, e a história segue a mesma - nenhuma música ruim, basta ver os temas que se destacavam - Nó na Madeira, Chorando Pelos Dedos, Mineira, Pra Fugir Nunca Mais e uma regravação de Não Tem Tradução, criação de Ismael Silva, Francisco Alves e Noel Rosa, um dos nortes na influências musicais de João.
No ano de 1977, a grande aclamação de João vinha através de uma canção que carregava uma beleza autobiográfica e que levava o nome de seu quarto long-play, intitulado Espelho e dali seu nome era imortalizado de vez na história do samba. O disco seguinte mostrava o poder do samba nos anos 1970, uma vez que João não era o único a representar o samba - havia Clara Nunes, Elza Soares, Dona Ivone Lara, Alcione, Beth Carvalho que estavam representando a força feminina do gênero mais brasileiro em meio a nomes como Martinho da Vila, Paulinho da Viola, Benito di Paula, Roberto Ribeiro, Jair Rodrigues, Jorginho do Império e Agepê e também o conjunto Originais do Samba que tinha como um dos integrantes o ritmista Mussum, que já estava no elenco de Os Trapalhões. Veteranos como Cartola, Nelson Cavaquinho, Moreira da Silva, Dorival Caymmi, Roberto Silva, Candeia, Zé Keti e o paulistano Adoniran Barbosa vinham sendo redescobertos em vida e gravando discos excelentes e João era apenas um dos principais representantes que fazia questão de manter a essência do samba por onde fosse, e pro seu quinto disco ele seguiu afiado nas composições e nos parceiros como o onipresente Paulo César Pinheiro, com quem dividiu autoria em diversos sucessos, Nei Lopes, Cláudio Jorge e até uma parceria do além - Nogueira musicou uma letra inédita de Noel Rosa, falecido em 1937. O próximo disco estamparia uma coisa ligada à boemia, ao mundo dos bares, mas sem fugir de outros temas e por isso levava o título simples de Vida Boêmia que trazia na produção Pinheiro e Renato Corrêa além do super time de músicos como Dino 7 Cordas no violão, Wilson das Neves na bateria, Claudio Jorge no violão, Joel no bandolim, Luizão Maia no baixo além de Neco e Manoel do Cavaco respectivamente no cavaquinho e a percussão formada por Elizeu, Luna, Marçal e Oswaldo só pra destacar os nomes que acompanham João ao longo do disco. O disco já começa de cara com um hino da nightlife carioca e da boemia, Bares da Cidade exalta essa imagem do pessoal que vive a frequentar as noitadas e passear pelos lugares onde possa beber, o arranjo com a levada de samba-choro destaca-se muito a presença do violão e do solo de bandolim de Joel que carrega a essência pura do samba de raiz logo de primeira; a seguir, o disco nos oferece uma breve homenagem às pessoas com quilinhos a mais estampados na barriga, a Moda da Barriga prevê uma questão de ter orgulho de ostentar uns kilinhos a mais ainda reverenciando Vinícius de Moraes, Tim Maia, Jô Soares, Carlos Imperial  e Wilza Carla, com uma pegada bem de samba com uma presença tímida de um sintetizador no começo e no fim da música que não pasa de 1 minuto e 40 segundos de duração; adiante, a beleza e a sofisticação dos sambas de raiz oferecem em outro tema que flerta tanto com o choro quanto com o samba-canção em Baile no Elite, que fala dos bailes tradicionais que existiam em clubes, onde menciona desde a marca de cerveja Brahma até a Orquestra Tabajara, o próprio Jamelão e o jornalista e produtor Nelson Motta são citados, a beleza desse samba-canção está além do violão bem melódico, o solo de trombone de Nelsinho e o clarinete de Netinho que criam harmonias perfeitas aqui; na sequência, quem acha que João não entrega mais pérolas nesse disco, enganou-se muito pois a próxima faixa é um bom acerto: Bate-Boca é uma daquelas canções sobre as brigas e desavenças de um casal, que vivem em clima, mas o eu-lírico enxerga que ajuda a movimentar a relação, a batucada garante e João não desafina nem erra na letra pra mostrar que é sambista de ouvido atento; no embalo dos chamados "sambões" da época, João coloca aqui Recado ao Poeta e fala dos desafios do seu ofício a provavelmente um colega do meio do samba, e entrega um bom sambão tendo um coro formado por As Gatas, Genaro mais um bom violão e cavaquinho que dão essa riqueza de melodias que é gostosa de ouvir; como todo disco bom, é sempre um acerto na hora de botar temas que dão o peso de clássico, e da parceria de Nogueira e Paulo César Pinheiro veio As Forças da Natureza que fala dos fenômenos naturais e do medo que causa quando tempestades e furacões provocarem catástrofes trazendo o ar puro da natureza pelo mundo, se antes a versão gravada por Clara Nunes entregava o cheiro de hit, aqui com João a sutileza é também insuperável - desde os solos de cavaquinho até as marcações rítmicas de tamborim e pandeiro entregam um som fácil de tirar ao ouvirmos; como todo bamba de primeira, João não se entrega derrotado e manda ver em Maria Rita, um samba onde o eu-lírico sente falta de uma moça que o marcou por andar com um laço de fita no cabelo, a presença do violão dando um embalo é de arrepiar; diferente de tudo que se ouve nesse disco, Nogueira oferece para nós um belo encontro de vozes e bambas de sempre - em Bela Cigana, de parceria de João com Ivor Lancellotti, aqui temos a presença de Clara Nunes na voz como a cigana que trazia o futuro escrito e que acabou partindo com o dinheiro do homem da canção, aqui com uma levada mais lenta traz um solo de violino de Giancarlo Pareschi que reina pela música; sem mais delongas, vamos continuando por esse conceito que o disco tenta abordar em parte de suas canções, mas para o lado mais romântico, em Amor de Fato parece ser um marido que após um tempo de fato, decide chegar à sua amada e dizendo que pretende fazer uns agrados e se juntarem de vez, violão e cavaquinho junto da percussão fazem o que devem fazer pelo samba: combinação perfeita de sons que é o que ouvimos aqui; continuando esse verdadeiro workshop de fazer samba de qualidade num disco, Nogueira pai traz aqui Sem Mêdo onde mergulha numa aventura amorosa com tons de sensualidade nos versos com uma pegada bem de samba-canção marcado pela marcação rítmica e o solo de trombone que desfila em certos momentos; como num bom disco de samba não se pode faltar reverência aos mestres, aos eternos do Olimpo do gênero, Cartola é lembrado em A Cor da Esperança, uma ode ao amanhã e ao futuro de forma esperançosa e cheia de orgulho, aquele sambão bem mais fiel e que dá vontade de estar no coro da canção de tão bonito que ficaram os vocais de apoio na música; o disco encerra de vez com um achado, João como noelrosense devoto, decide trazer uma carta do eterno poeta da Vila Isabel e transforma em música - Ao Meu Amigo Edgard traz notícias de quando Noel estava sofrendo da tuberculose que o padecera em 1937 para um amigo no Rio, escrita anos antes, e o final deixa claro que essa parceria é póstuma visto que João deixou um abraço para o tal "parceiro", com um arranjo bem sincopado e que deixa um gosto de quero mais, a batucada faz uma bela conexão com o som de fagote executado que dá esse ar mais clássico pro som.
João encerrou o ciclo na Odeon de forma brilhante e vitoriosa com 5 LPs de sucesso, sendo este o quinto, um outro grande fenômeno de lançamento à época que teve grande consagração de crítica e público. O samba se tornando um fenômeno naquele ano graças a discos como Guerreira, de Clara Nunes, Tendinha do best-seller Martinho da Vila, De Pé no Chão da popular Beth Carvalho e Alerta Geral da incomparável Alcione seguiam a colocar o gênero como o grande sucesso da década. Em 1979, João voltaria ao estúdio para gravar agora pela Polydor, selo da gravadora PolyGram seu próximo disco, intitulado Clube do Samba, em homenagem ao espaço que ele e outros sambistas criaram para defenderem o gênero e fazerem altas rodas, mas aí já é uma outra história. Flamenguinsta devoto, João tinha o seu apreço pela cerveja, pela música em especial pelo samba que tanto defendia fervorosamente, seguiu trabalhando incansavelmente até a sua morte em junho de 2000, e sua música consegue ser redescoberta até hoje e influenciando gente que vai além, como o rapper Marcelo D2 que guarda lembrança da infância com o disco e a capa em geral como assumiu em entrevista ao podcast Papo com Clê no canal do YouTube, Corredor 5.
Set do disco:
1 - Bares da Cidade (João Nogueira/Paulo César Pinheiro)
2 - Moda da Barriga (João Nogueira)
3 - Baile no Elite (João Nogueira/Nei Lopes)
4 - Bate-Boca (Mauro Duarte/Walter Nunes)
5 - Recado ao Poeta (Eduardo Gudin/Paulo César Pinheiro)
6 - As Forças da Natureza (João Nogueira/Paulo César Pinheiro)
7 - Maria Rita (Luiz Grande)
8 - Bela Cigana (João Nogueira/Ivor Lancelloti) - participação de Clara Nunes
9 - Amor de Fato (João Nogueira/Claudio Jorge)
10 - Sem Mêdo (João Nogueira)
11 - A Cor da Esperança (Cartola/Roberto Nascimento)
12 - Ao Meu Amigo Edgard (musicado por João Nogueira a partir de um poema de Noel Rosa)

Comentários

Mais vistos no blog