Histoire de Melody Nelson - Serge Gainsbourg (Philips Records, 1971)

Imagine você, leitor/ouvinte que a partir dos anos 60 quando discos baseados em determinados conceitos como Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band o aclamado disco dos Beatles, aí vem Days of Future Passed dos viajandões Moody Blues, e seguido S.F. Sorrow dos Pretty Things, e por adiante Arthur (Or The Decline and Fall of British Empire) dos irreverentes Kinks e no mesmo período o The Who lança o best-seller de sua carreira Tommy - todos eles contando uma história da primeira até a última música numa sequência que não é cortada, digamos que trazendo ao público o conceito de ópera-rock. Tudo bem que as bandas que definiram esse lance de álbum conceitual e ópera-rock são todas inglesas, agora imagina se um outro país do Velho Continente busca fazer a mesma coisa unindo chanson française, rock, pop e música clássica - pois é, foi exatamente isso que um ícone da música francesa decidiu fazer, porém, você realmente conhece Serge Gainsbourg? Vamos lá, quem imagina que um dos maiores ícones da cultura francesa contemporânea seria de uma família judia e teve que se esconder dos nazistas alemães ainda adolescente durante a II Guerra Mundial? Pois esta é a verdadeira história de Serge - cujo nome verdadeiro é Lucien Ginsburg e tem uma irmã gêmea chamada Liliane, nascidos em 2 de abril de 1928 na capital Paris e que aprendeu junto de Liliane a tocarem piano com o pai, que era pianista de cabarés e cassinos da capital francesa. O pai, Joseph era judeu-ucraniano que se refugiou na França durante a Revolução Russa de 1917 e construiu sua vida por lá como músico de formação erudita clássica, mas que teve logo de se esconder na II Guerra pelo fato de ser judaico e sumiu de Paris junto da esposa Olga, dos gêmeos Lucien e Liliane e da caçula Jacqueline nascida em 1935, o símbolo da estrela de Davi tiveram de esconder por um tempo. Com o fim da guerra, era o momento do menino Lucien cursar uma faculdade e o pai matriculou ele na célebre Escola de Belas-Artes de Paris, mas, se mudou para a Achademie de Montmartre e ainda em 1948 acabou servindo o exército, mas vivia mais puxando suas músicas ao violão e mostrando seu lado boêmio, e se sentindo desiludido da carreira de pintor, decidiu viver de biscates e foi ser pianista em um clube onde foi descoberto acompanhando a cantora Michèle Arnaud e decidiu registrar-se na SACEM, sociedade de compositores e autores franceses como Serge Gainsbourg - o Serge veio em homenagem a um assistente de cabelereiro e Gainsbourg trouxe como inspiração o pintor Thomas Gainsborough. Foi preciso que a própria Arnaud começasse a gravar algumas de suas canções para que em 1958 ele assinasse com a gravadora Philips por onde prosseguiu sua carreira discográfica iniciada em Du Chant à la Une!... seu primeiro LP, e consagrando-se em temas gravados por Arnaud, Catherine Sauvage e Juliette Gréco e em seguida suas canções já eram sucesso ao redor do mundo - temas como La Recette de L'Amor à Fou, Les Poiçonner des Lilas, L'Amour à la Papa e La Javanaise que foi inicialmente gravada em 1963 inicialmente por Gréco e depois pelo próprio autor.
Foi naquele longínquo e vibrante ano de 1968 marcado pelas agitadas revoluções estudantis em Paris que a carreira de Gainsbourg viria a mudar de rumo logo após o tórrido romance com Brigitte Bardot, ele começara uma nova relação com a modelo e atriz britânica Jane Birkin durante as filmagens de Slogan - a quem ofereceu uma das músicas para gravar em dueto com ele, a sensual balada Je T'Aime... Moi Non Plus, que logo com os gemidos do casal, mais da parte de Jane - que acabaram conquistando o topo das paradas mundiais, e que custou uma dor de cabeça no mundo inteiro e também no Brasil pois a fábrica de discos da Philips no Rio de Janeiro recebeu ordem da Censura Federal (lembrando que isso foi logo durante um ano da instauração do AI-5 da administração militar) para retirarem o compacto com a música das lojas, o que ajudou a música tornar-se mais popular ainda, além de receber críticas da própria Igreja Católica. Após o sucesso do LP com Birkin em 1969, a dupla-casal viveria seus dias de fama e música juntos, e em 1970, Gainsbourg decidiu criar uma história para ser contada dentro de um disco, uma versão ao seu estilo para a história de Lolita, escrito em 1955 por Vladimir Nabokov (1889-1977) sobre um homem de meia-idade (Serge tinha 42 anos ao escrever a música) e uma jovem de 15 anos chamada Melody Nelson, que seria interpretada por Birkin com seus 23 anos - meno male. Porém, quando Gainsbourg decide fazer o disco baseado em Lolita, recebe um não do autor do livro - o que fez o francês decidir por fazer um disco tendo o livro do russo como referência, e compondo em Londres com o maestro Jean-Claude Vannier enquanto Serge produzia mais um filme na trilha sonora no Studio Marble Arch em Londres, e em seguida, nos lendários estúdios Des Dames na capital francesa, com Jean-Claude Desmarty na produção e um time de músicos como os guitarristas Alan Parker, Vic Flick e Big Jim Sullivan, o baixista Dave Richmond, o tecladista Roger Coulam, o baterista Dougie Wright e o violinista francês Jean-Luc Ponty além de Birkin nos vocais marcando a presença. Com o disco pronto em março de 1971, eis que Serge decide lançar Histoire de Melody Nelson em que na capa estampa Jane Birkin usando uma peruca ruiva e segurando uma espécie de bichinho de pelúcia cobrindo os peitos num fundo azul, e logo no gatefold interno, uma foto de Gainsbourg típico posando de forma discreta com cigarro na mão - as fotos dos dois são de Tony Frank.
O LP já começa num caminho certo da história contada - Melody parece ser bem a introdução, em que o personagem principal e o narrador (Serge) conta a história sobre um homem de meia-idade que é o eu-lírico da canção, e fala sobre nunca ter achado o verdadeiro amor até encontrar do nada uma jovem após atropelá-la com seus 7 minutos marcados pelo primor com o baixo e a guitarra que fazem uma introdução mais tímida até ganhar peso com a orquestra que ganha um ar mais dramático; a próxima faixa também viria a ganhar peso não só por ser a principal faixa de destaque do LP, mas por ter sido o grande sucesso do disco - Ballade de Melody Nelson é uma letra em que o narrador da canção fala sobre seu envolvimento direto e sobre como a paixão acabou desabrochando de vez após conhecê-la embora tendo apenas entre 14/15 anos, de uma sensação que ele nunca tinha sentido despertar antes, a orquestração, além da base guitarra-baixo-bateria com sofisticação e a suave voz afrancesada de Birkin dão um destaque e tanto; em seguida, uma sequência de duas músicas curtas dando continuidade à narrativa da história oferecida ao disco - a primeira é Valse de Melody, onde somos apresentados ao eu-lírico como um sujeito meio  bronco, tosco e até meio sem noção que fala sobre nunca ter vivido aquela sensação até conhecer a moça da história, e aqui só reina a orquestra de cordas acompanhando Gainsbourg ao longo da canção; e a outra canção curta que prossegue no repertório do LP e fecha o lado A é a balada doce Ah! Melody soando como uma espécie de continuação da faixa anterior, onde acabamos sabendo ainda mais sobre o eu-lírico e sobre seu lado narcisista em que ele se importa menos com Melody e mais com sua felicidade, aqui damos destaque para o instrumental marcado pelas linhas de baixo que soa balançante e o violão bem doce, além de no refrão termos a presença de um trompete que reina na parte instrumental; o disco prossegue no lado bem com uma balada bem relaxante e que deixa esse impacto bem surpreendente - L'Hôtel Particulier fala da delirante aventura do casal num motel onde existe um quarto da Cleópatra com o estilo de arte rococó e temos o personagem que narra a história enfim com sua amada mais na intimidade - conquistando seu objetivo, a linha de baixo e as guitarras que dão esse toque mais sensual, além das camadas de corda que ganham mais destaque nos 40 segundos finais da canção; em seguida, temos uma música mais pesada e com mais balanço e o mais curioso - 90% instrumental, En Melody soa como uma passagem dos momentos amorosos do casal enquanto no final da canção, Gainsbourg aparece narrando que Melody pegaria um Boeing 707 e aquele seria seu erro fatal, a guitarra e a bateria dão um ar que transita entre o jazz e o funk americano, com a presença do violino elétrico tocado por Jean-Luc Ponty que dá esse toque diferenciado pra canção - além da risada de Jane em uma parte da canção que teria ocorrido porque seu irmão acabou fazendo cócegas nos pés e ela não aguentou fazendo com que caísse de vez no riso; e vamos para o tema que encerra este LP que é como se fosse retomar ao começo da canção e vamos entender como funciona Cargo Culte, na qual além de narrar sobre a solidão após perder a amada e a fazer sentir-se amargo e perdido agora com a partida, o arranjo é semelhante ao da faixa Melody, como se fosse retomarmos ao começo da história, mas o diferencial da canção fica por conta de um coral como se fosse entoar o ato final de uma história romântica e trágica.
O disco quando lançado foi um gigante acontecimento como tudo que envolve Gainsbourg, já que ele estava contando uma história que nos tempos de hoje o colocaria como um cancelado por falar de um romance polêmico e da diferença de idade entre os dois. Com o sucesso na época, o álbum ganhou uma espécie de curta-metragem, ou melhor dizendo, um especial para a televisão em cores com as músicas e seus videoclipes fazendo com que Serge antecipasse a MTV 10 anos antes. Após o sucesso do disco, ele só voltaria a gravar um disco dois anos depois com Vu de L'Extérieur, mas aí já é uma outra história. Anos depois, o disco começou a ganhar um culto fora do país dos croissants e de Napoleão Bonaparte, visto que até músicos ingleses começaram a citá-lo como influência nas suas obras, a ponto de ganhar destaque na lista dos 1001 Discos Para Ouvir Antes de Morrer sendo muito bem elogiado dentre outros títulos de língua francesa.
Set do disco:
1 - Melody (Serge Gainsbourg)
2 - Ballade de Melody Nelson (Serge Gainsbourg/Jean-Claude Vannier)
3 - Valse de Melody (Serge Gainsbourg)
4 - Ah! Melody (Serge Gainsbourg/Jean-Claude Vannier)
5 - L'Hôtel Particulier (Serge Gainsbourg)
6 - En Melody (Serge Gainsbourg/Jean-Claude Vannier)
7 - Cargo Culte (Serge Gainsbourg/Jean-Claude Vannier)

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