Um disco indispensável: Manal - Manal (Mandioca, 1970)

Este fato acaba sendo coincidente: na Inglaterra dos anos 1960, músicos lendários como Eric Clapton, Keith Richards, Jimmy Page, George Harrison, Ray Davies entre outros descobriam as maravilhas das raízes roqueiras, o blues e seus nomes icônicos que atravessaram gerações e transformaram o rock num gênero universal. O blues elétrico dominou no final dos anos 1960 através de grupos como Cream, Fleetwood Mac, Led Zeppelin começaram a distorcionar e deixar o gênero raiz do rock mais ácido, psicodélico e viajandão - e alguns grupos que iam no embalo blueseiro, também iam caminhando em direção ao progressivo, gênero que dominou a Europa em especial a Inglaterra na virada dos 1960 para os 70. O rock na América Latina sofreu todo tipo de preconceito e discriminação em vários países, mas teve barreiras rompidas, e pensar que se não fosse o sucesso de grupos mexicanos conhecidos por versões como Los Locos del Ritmo e Los Teen Tops, que interpretavam sucessos internacionais na língua de Cervantes, o segundo mencionado tendo como vocalista Enrique Guzmán, causado um impacto enorme na América Latina em todo, era notável o sucesso que faziam em Peru, Chile, Bolívia, Venezuela, Colômbia, Nicarágua, Honduras, Uruguai e principalmente na Argentina - onde ícones como o trombonista Eddie Pequenino, e cantores como Billy Cafaro, Palito Ortega, Johnny Tedesco, Sandro começam a dar os primeiros passos. Já a partir de 1966, com a psicodelia em ascensão, a geração deixa de ser muito aproximada de Elvis e vai pelos caminhos semelhantes aos dos Beatles e Stones, mergulham em novas referências e mergulham na acidez do psicodelismo sonoro e se alinham com o a evolução do rock no mundo inteiro. Programas televisivos como Escala Musical eram uma espécie de vitrine para conjuntos, tanto como Los Gatos Salvajes, oriundos de Rosario, liderado por Litto Nebbia e Ciro Fogliatta, e também os uruguaios Los Shakers que contavam com os irmãos Hugo e Osvaldo Fattoruso, e Los Iracundos tendo os irmãos Eduardo (vocal) e Leonardo Franco (guitarra), porém, com o fim do programa, o rock procurava um espaço individual, foi então que um italiano radicado por lá de nome Giuliano Canterini, sob o pseudônimo de Billy Bond, propretário de um espaço dedicado ao jazz e música beat chamado La Cueva, onde apresentaram nomes como Tanguito. Com o sucesso de Los Gatos (antes Gatos Salvajes) em 1967 através da música La Balsa, o rock em espanhol de forma autoral começa a ganhar mais forma, e grupos como La Joven Guardia, Almendra - liderado por um jovem de 18 anos chamado Luis Alberto Spinetta, Los Abuelos de La Nada, Tanguito e um grupo mantinha aproximada o tango do blues - Manal, que flertava com a psicodelia e o estilo blueseiro ácido muito próximo de bandas como Cream e até Big Brother & The Holding Company da qual fazia parte uma loura texana com voz de negra chamada Janis Joplin.
Surgida em 1968 no bairro de San Telmo na capital Buenos Aires, após o encontro de duas bandas, Bubblin Awe da qual era integrante o guitarrista Claudio Gabis, e a banda The Seasons, especialista em covers de Beatles, tendo no grupo o baixista Alejandro Medina, em um evento particular no bairro, e o baterista Javier Martínez estava por lá nesse encontro, ele e Gabis descobriram em comum o interesse por blues e pela música afrooamericana. Logo ao montarem o trio em 1968, eles participam logo de cara da trilha sonora do filme Tiro de Gracia baseado no livro homônimo de Sergio Mulet, grande divisor de águas no cinema argentino da época. Com o que gravaram, sentiram que ali havia uma química perfeita: o baixo viajandão e cheio de grooves de Medina, a guitarra lisérgica de Gabis mais a arte rítmica de Martínez, que era também o vocalista, e ensaiavam no teatro Payró em troca de musicarem a peça Vietrock. A banda surge no momento em que o editor de livros Jorge Alvarez decide entrar no meio fonográfico criando o selo Mandioca Underground, ou simplesmente Mandioca "la madre de los chicos" juntamente de um ex-colega de Gabis, Pedro Pujo, e o Manal ainda se chamava Ricota, quando perguntaram sobre como estava a pessoa "¿cómo viene la mano?" e Martínez respondeu "la mano viene Manal" e assim o nome surgiu. A apresentação de estreia do selo Mandioca, em 12 de novembro de 1968, na sala Apolo, na qual, Spinetta ao palco subiu e perguntou aos jovens se eles não sabiam o que estava acontecendo naquele momento, após Manal se apresentar. E justo o Manal inaugura o selo com o compacto trazendo no lado A o acid blues Que Pena Me Das, com Javier nos vocais e um estilo de guitarra distorcionado de Gabis mais a bateria seca e nervosa, o lado B já tinha Para Ser Un Hombre Más, e assim a pedra fundamental do rock argentino e também um marco zero junto do primeiro compacto do Almendra, que gravava pela RCA Vik naquele momento, onde também fazia parte Los Gatos. O segundo compacto, com as faixas No Pibe, grande clássico do repertório surgido antes quando Martínez gravou para mandar à gravadora CBS, sem muito êxito. Mas foi em 1969 também que Manal decidiu dedicar-se ao primeiro LP gravando nos estúdios TNT, do qual o dono era o engenheiro de som uruguaio Tim Croatto, mais Jorge Alvarez e Pujo na produção, e foi no decorrer de 1969 até o começo de 1970 que a banda conseguiu realizar seu disco sem a presença de outros músicos, apenas o trio no seu mais jeito roqueiro de tocar. As gravações não tem datas definidas, mas as músicas foram gravadas em poucos takes - isto porque, segundo Alejandro Medina, a banda já vinha com a música ensaiada pra gravar e isso deve-se também aos shows que vinham fazendo, e também havia o conceito de quando Martínez trazia uma novidade, Alejandro e Claudio já traziam elementos próprios, e fundiam os elementos de blues e soul com a essência rioplatense em especial com o tango, muito presente. Com a capa sendo um fundo amarelo com o nome da banda em letras vermelhas, a imagem de uma bomba com imagens dos músicos mostrando o que seria a explosão definitiva para que o rock argentino ganhasse mais cores e sons de uma forma que soasse própria, independente e mais argentina do que se imaginava.
O LP já abre de cara com um tema que parece já ter nascido clássico do rock argentino, estou aqui falando de Jugo de Tomate, que Martínez compôs durante uma noite de Natal no restaurante La Perla del Once e lembra muito pela melodia um tanto Cream até pelo estilo mais roqueiro e também soa como Creedence que estava em evidência na época, o refrão trata sobre uma metáfora sobre o que se precisa para alcançar o sucesso na sociedade de consumo, e é um rock cheio de acertos - desde a voz de Martínez até os solos de harmônica de Gabis; em seguida, a próxima faixa do disco soa mais blues psicodélico, lento e viajandão, Porque Hoy Nací, em que só aparece guitarra e órgão (ambos tocados por Gabis) mais a voz de Javier cantando ao longo da canção sobre existencialismo, sobre o porquê de nós nascermos e vivermos - e um fato, esta é a única música do qual Medina não participa com seu baixo, pois no dia que foi gravar estava doente - simples; a faixa seguinte é argentinismo puro, tanto pelas referências quanto pela poesia que respira a tango, Avenida Rivadavia mergulha pela cultura e pela geografia portenha e que carrega jazz e soul em sua sonoridade, e, cá pra nós, Alejandro Medina como baixista também é um bom vocalista, e o que falar do solo de guitarra de Gabis? Sensacional, aqui a guitarra faz um belo serviço! Em seguida, o disco traz outro tema genial também vindo da autoria de Martínez, um blues tão viajandão quanto os feitos pelos ingleses na época, Todo el Día Me Pregunto de autoria do trio (gravada por Tanguito na mesma época e lançada só em 1973) e com a narrativa em que relembravam os tempos da segunda encarnação do La Cueva e sobre o consumo de medicamentos para ficar acordado, o instrumental marcado pelo piano executado por Gabis (aqui também na guitarra), a bateria dá seu show em excesso também e Martínez além de baterista é um excelente cantor - tenho dito; mais adiante, temos o tema que é o destaque do repertório, Avellaneda Blues é um belo exemplo de união entre a poética portenha raiz e o som vindo do sul dos EUA ao falar de uma caminhada entre as cidades de Geli e Avellaneda, situada na região portuária e industrial da província (estado) de Buenos Aires, situação que foi inspirada a letra - dá pra dizer que instrumentalmente é o fino do fino do rock argentino, sem mais; a seguir, um rock mais sofisticado que têm lá seu peso e ainda dá o equilíbrio da sonoridade do repertório, Casa con Diez Pinos fala, com seu primor, sobre a chateação que dá de morar na cidade grande e ir passar uns dias no campo perto da natureza, inspirado num momento em que Martínez foi pra uma casa na região de Monte Grande, ao sul de Buenos Aires onde havia uma casa onde diversos nomes da cena roqueira da época, tal como Tanguito e Pappo frequentavam, e a linha de baixo de Alejandro Medina aqui é o grande destaque, tocando basicamente o que a canção precisa; o final do disco termina por conta de Informe de Un Día, feita por Martínez após ficar dois dias sem dormir, traz sobre a sensação da rotina ou de fugir dela repleta de conotações existencialistas, além disto, o começo da música marcada pela bateria de Javier além do coro no refrão marcam aqui este tema que fecha um clássico.
Aclamados de vez pela revista Pelo, a especialista em música da época e que propagava o rock em especial, deu espaço para eles sendo o grande destaque de 1970, e no ano seguinte, desta vez pela RCA, gravavam seu segundo e último álbum daquela fase intitulado El León, mas aí já é outra história. A partir de então, os três seguiram atuando em diferentes projetos: Medina, Gabis e Martínez já tocaram no La Pesada del Rock And Roll liderada pelo músico e agitador cultural da cena na época Billy Bond. Medina e Gabis trabalharam juntos em discos de Raúl Porchetto, Sui Generis, Kubero Díaz. Gabis também atuou ao lado de Charly García, León Gieco, Miguel Abuelo, Andrés Calamaro e brasileiros como Marcos Resende, Marcelo Salazar sem esquecer que tocou no primeiro disco solo de Ney Matogrosso (sim, ele está em Água do Céu Pássaro de 1975) do qual Billy era produtor. Manal como trio se reuniria esporadicamente em algumas ocasiões, como em 1981 na qual rendeu o LP Reunión e em seguida registrando um ao vivo gravado no estádio Obras Sanitarias, depois em 1994 sem a presença de Gabis, que só pôde aparecer mesmo 20 anos depois quando gravaram um disco ao vivo juntos lançado apenas em 2016. O disco causou uma tremenda influência na música argentina da época, e sendo uma novidade para aquela época, e hoje é o álbum mais influente na história do rock: a revista Rolling Stone há 15 anos (2007) lançou a lista dos 100 maiores discos do rock argentino, conquistando o TERCEIRO LUGAR, sim!!! Medalha de bronze e mais que merecido, estando atrás apenas de Clics Modernos (1983) de Charly García e de Artaud (1973) o segundo álbum solo de Spinetta sob a encarnação do grupo Pescado Rabioso, enquanto a revista Al Borde a consagrou no 33º lugar dos 250 melhores discos de rock iberoamericano, mostrando que a semente do blues na Argentina havia sido germinada por um trio que carregava ali uma magia que permanece eterna.
Set do disco:
1 - Jugo de Tomate (Javier Martínez)
2 - Porque Hoy Nací (Javier Martínez)
3 - Avenida Rivadavia (Javier Martínez)
4 - Todo el Día Me Pregunto (Javier Martínez/Claudio Gabis/Alejandro Medina)
5 - Avellaneda Blues (Javier Martínez/Claudio Gabis)
6 - Casa con Diez Pinos (Javier Martínez)
7 - Informe de Un Día (Javier Martínez)

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