Um disco indispensável: The Joshua Tree - U2 (Island Records, 1987)

Jogando no esquema certo para acertar em cheio na goleada, o U2, como um time de futebol, sabe como manter o mesmo jogo de sempre. E isso desde os anos 1980, quando o grupo, surgindo em 1976 após um anúncio feito por um adolescente baterista chamado Larry Mullen Jr. numa escola em Dublin, na Irlanda, procurando músicos para montar um conjunto musical, e que logo se sumariam Adam Clayton no baixo, um rapaz chamado David Howell Evans que se tornaria o guitarrista The Edge e nos vocais um garoto que aparentava uma tamanha timidez chamada Paul Hewson, conhecido inicialmente como Bono Vox, atualmente abreviado para Bono e, assim nascia o grupo que de princípio teve os nomes de Feedback e depois The Hype, mas, depois buscaram em um caça americano chamado U2 - e logo venceram um concurso onde puderam gravar um disco pela gravadora CBS Records, o EP intitulado U2-3, que logo já tinha na capa Peter Rowen, irmão de Guggi, amigo de Bono. Após sofrerem rejeição da RSO (gravadora do produtor Robert Stigwood que tinha Bee Gees e Eric Clapton), enfim, o conjunto foi recebido por uma casa fonongráfica - a Island Records, a mesma de Chris Blackwell que abrigou desde nomes como King Crimson, Cat Stevens e Traffic a figurões do reggae como o lendário Bob Marley (1945-1981) e foi na Island que o U2 tiveram a consagração merecida. Com a estreia discográfica em Boy (1980), marcadas pelo sucesso I Will Follow, que logo impulsionou a banda meio que timidamente para o sucesso, pois ainda o grupo ainda era uma novidade. Com o sucessor October, lançado no ano seguinte, não foi lá muito agradável, apesar de temas como Fire e Gloria terem obtido bons desempenhos, o público se estranhou com um álbum cujas letras focavam muito em religião e espiritualidade (oi, conjunto musical Catedral?), mas, foi preciso lançarem o fortemente politizado War em fevereiro de 1983 e logo em seguida se consagrarem em um show no anfiteatro Red Rocks na cidade de Denver (Colorado, EUA) tornando-se o registro em vídeo Live at Red Rocks - Under a Red Blood Sky com a versão de Sunday Bloody Sunday considerada uma das melhores performances de rock na história. Logo depois de emplacarem em outubro de 1984 o também super aclamado The Unforgettable Fire, que tirou o peso de uma incerteza do grupo sobre o sucesso - e com o sucesso brilhante de Pride (In The Name of Love), o conjunto seguiu arrastando multidões como em Denver e como no lendário show do Live Aid no estádio de Wembley em Londres, na Inglaterra juntamente de artistas como Paul McCartney, a banda Queen, Elton John, George Michael ainda com o Wham!, Dire Straits, Phil Collins, The Who para o delírio da massa inglesa e mundial presente - seja em Wembley ou no JFK Stadium na Filadélfia, EUA, ou com os olhos diantes do televisor.
Já para 1986 os planos seriam outros: a banda decidira montar um estúdio em uma luxuosa mansão em Dublin, a Danesmoate House, com algumas músicas já sendo compostas na era The Unforgettable Fire - mais pro final da temporada, e decidem dedicar o ano de 1986 à feitura do disco seguinte, que contaria com os mesmos produtores do LP anterior - Daniel Lanois e Brian Eno, este último, conhecido por seus projetos com o Talking Heads (e com seu líder David Byrne), David Bowie, Devo, Ultravox, Johnny Cash dentre outros e com a participação de Mark Ellis, conhecido como Flood, na engenharia de som. Além do casarão, outros 3 estúdios foram usados em Dublin: o STS Studios, o Melbeach e o velho conhecido da banda Windmill Lane, onde a banda já vinha gravando seus outros LPs. Bem antes das sessões do disco, Bono ao se encontrar com Mick Jagger e Keith Richards tocando blues, ficou quase num desconforto devido à pouca familiaridade com o gênero, pois na adolescência havia tido mais contato com o hard e o punk dos anos 70. Logo, ele e a banda se viram na necessidade de flertarem-se mais com o blues, as raízes do rock e a música americana como um todo, marcado também pelas leituras de escritores estadunidenses como Raymond Carver e Norman Mailer - o flerte do U2 com a América ficaria notável para seu próximo disco. Enquanto as gravações ocorriam, uma tragédia no meio do caminho atrapalhara as gravações - um acidente de moto com um roadie que trabalhava no conjunto desde que foi descoberto durante uma gig do conjunto pela Oceania - Greg Caroll tinha 26 anos quando faleceu ao usar uma moto de propriedade do próprio Bono - que tinha conhecimento do uso de uma de suas motos (Bono o$tentação já tinha altas motos) e abalou profundamente a banda. Com o disco pronto, a banda decide logo em seguida planejar as fotos ao lado do artista gráfico Steve Averill e do fotógrafo Anton Corbijn, percorreram pelos EUA em busca do cenário de locação das fotos -  e escolheram logo numa região entre os desertos Colorado e Mojave onde haviam diversas árvores - logo a Joshua Tree National Park, e por ali no Joshua Tree um motel no qual havia morrido o lendário cantor de country rock Gram Parsons - e logo o disco ganharia sua capa icônica com os músicos em frente à uma paisagem montanhosa desértica dando à The Joshua Tree o nome definitivo do disco substituindo The Desert Songs que era o título provisório do álbum - e com as gravações finalizadas em janeiro, para enfim concluírem o disco após breves pausas marcadas pelos shows da Anistia Internacional, da viagem de Bono à América Central e da já mencionada tragédia que matou Greg Carroll, deixando o grupo abalado - e com o disco lançado em 9 de março de 1987, enfim, conhecemos o U2 com os olhos para a América.
A abertura do disco já é impactante logo na escuta, e com uma bela reflexão social - o que teremos muito ao longo de The Joshua Tree - a pesada Where The Streets Have No Name é um hino com seu contexto social envolvendo uma visão sobre um mundo sem fronteiras, igualitário - inspirado durante sua visita à Etiópia com sua esposa em 1985, Bono ficou tocado pelo lugar e sua situação, e sobre como é possível identificar a religião de uma pessoa com base nas ruas que viviam em Belfast, a introdução com repetição de arpejos de guitarra feitas em um efeito delay e feita no final é uma prova do quão genial The Edge consegue ser como músico, a música chegou a ser refeita devido às dificuldades a ponto do produtor Brian Eno sugerir apagar a gravação; na sequência, mais outro sucesso vindo deste disco, com uma inspiração para a banda na hora de fazer e gravar temas como I Still Haven't Found What I'm Looking For, uma letra carregada de muita religiosidade onde expõe uma busca muito ambiciosa e desejável por uma pessoa considerada valiosa para Bono e da vontade de estar muito perto desta, e o arranjo com um tom que deixa com cara de hard rock, mas muito próximo do estilo gospel inclusive com esse tipo de coral religioso feito por Edge, Lanois e Eno - o que deu certo, além do baixo pulsante de Clayton e da marcação rítmica exigente de Mullen que tornaram possível a sonoridade desta faixa; e quem achou que a banda não desfilaria mais hits por aqui, estão enganados - pois adiante teremos a baladinha célebre deste disco, With Or Without You traz a narrativa sobre uma discreta relação problemática de casal, embora haja uma interpretação também no contexto da fé, pois há quem tenha interpretado como uma canção de amor amarga e lamentando as contradições morais enfrentadas por alguém que enfrenta com sua crença, a guitarra de Edge é o grande destaque, pois a melodia sustenta a base enquanto a bateria e o baixo seguem fazendo um belo trabalho que não nos decepciona; adiante, o disco segue a colocar a América dentro de suas canções no ambiente poético-sonoro, e um exemplo forte está também em Bullet The Blue Sky - composta após uma viagem de Bono com sua esposa para Nicarágua e El Salvador onde viram a situação de como muitos camponeses foram afetados após a intervenção dos EUA nos países, e logo notamos a raiva dentro da música, seja pela voz de Bono ou pela guitarra de The Edge, que durante as gravações, foi sugerido pelo crooner de "colocar El Salvador na guitarra" e Larry parece que mostrou muito disto ao tocar bateria; mas, se pense que a banda vive só do flerte com a cultura e a vida americana nas canções do disco, estão enganados - a banda decide ir num caminho diferente em Running to Stand Still, que batendo muito com o contexto dos anos 1980 envolvendo o consumo de heroína epidêmico em Dublin inclusive, e aqui fala de um casal de viciados vivendo em um dos prédios Ballymun, marcado pela levada bem baladista que começa com o piano e a guitarra, mas ganha corpo aos poucos e que teria uma certa influência de Velvet Underground pelo arranjo ou pela temática da canção.
A seguir, sem perder o foco de manterem sua característica de canções com versos extremamente políticos, o caso de Red Hill Mining Town é simples: com o foco na greve do National Union of Mineworkers (União Nacional dos Mineiros) na Inglaterra em 1984 após uma decisão do 
National Coal Board (Conselho Nacional de Carvão) e marcado pelo encontro que Bono teve com Bob Dylan no mesmo ano ao entrevistá-lo para a revista Hot Press que ajudou muito na carreira, a levada puramente roqueira mais para o hard do que para o heavy, a guitarra de The Edge presta um bom serviço aqui na faixa; o disco tendo como uma característica de mostrar essa visão do quarteto irlandês sobre a América e sobre seu acercamento com esta terra, eles levam pra faixa seguinte muito do rock americano dos anos 70 e do country através de In God's Country, onde descrevem os EUA como uma rosa do deserto e uma sereia cujo vestido está rasgado em fitas e laços, além de descrever a falta de ideias políticas no Ocidente, posteriormente constatada por Bono vendo a revolução na Nicarágua obviamente, o destaque fica para essa levada hard rocker setentista que soa muito para 1987 ao escutarmos; tem quem se surpreenda, mas não tanto quando a banda decide mostrar que está afiada com o romance americano que eles vivem, e a faixa Trip Through Your Wires que pode soar como um dos tantos temas que falam sobre os encantos contraditórios da América na forma de uma mulher, acaba levando a banda a mandar um blues na parte musical, onde The Edge faz algo bem firme tendo ainda Bono solando gaita tal como um Dylan ou talvez nem tanto; em seguida, temos mais emoções neste repertório, para quem leu esse textão ainda até aqui, sabe que existe um personagem importante na história do U2 que foi Greg Caroll, e ele é homenageado na faixa One Tree Hill, falando sobre o funeral deste amigo e sobre o vulcão que tinha a árvore chamada de One Tree Hill em Auckland, além de fazer uma honrosa menção a Víctor Jara (1932-1973), poeta, músico e ensaísta chileno assassinado após o golpe militar implantado por Augusto Pinochet em setembro de 1973, e aqui o ritmo dá a sensação de que a banda transita entre o alternativo e o roots ao repararmos na levada e The Edge põe o som que a música precisava na guitarra, seguido da rígida marcação de ritmos comandada por Mullen, é claro; seguindo nessa viagem sonora, ainda temos por aqui uma canção bem densa e marcado pela característica que dá um tom mais surreal, a profunda Exit coloca aqui um quadro-geral sobre a mente de um psicopata de forma detalhada nos versos, Bono compôs influenciada por The Executioner's Song (1979), livro escrito por Norman Mailer que conta a história do assassino Gary Gilmore que matou dois jovens mórmons durante assaltos e que implorou pela sua setença de morte - surreal, né? Além da canção ter uma atmosfera profunda que lembra o pós-punk com tons bem dark, e que ganha peso em poucos minutos ficando mais cru e hard com a voz de Bono um tanto dramática, e o baixo de Clayton sendo o destaque da vez pela pulsação, e que funcionou pro arranjo desta - originalmente uma longa jam session gravada que teve de ser editada para caber no disco; fechando o disco, mais melódico e dramático possível é outra canção com narrativa inspirada em fatos reais, no caso de Mothers of the Disappeared em que Bono fala sobre as mães dos desaparecidos políticos nos regimes militares da Argentina, Chile e também de El Salvador, onde Bono esteve durante a viagem na América Central, aqui também menciona a postura de Ronald Reagan envolvendo a situação tanto em El Salvador quanto em Nicarágua na qual o governo teve de intervir, o arranjo carrega melodismo, a guitarra soa como se fosse o choro das mães e o peso sonoro ajuda a transformar essa mensagem em reflexão daqueles tempos que ainda soam atuais.
Com tanto material que sobrou (e foi preservado!), teve coisas que ficaram de fora como lados B de singles do álbum e que poderiam estar no LP - o caso da balada Sweetest Thing, composta por Bono depois que esqueceu do aniversário de sua esposa Ali Hewson como pedido de desculpas e entrou no lado B de Where The Streets Have No Name, mas só fez sucesso mesmo 11 anos depois. O disco ajudou a logo de cara ser um sucesso definitivo vendendo mais de 20 milhões de cópias, estampando naquele 1987 capas de revistas como Rolling Stone, New Musical Express, a Time dando visibilidade e aqui no Brasil mais uma vez Bono estampou a capa da saudosa Bizz, colocando a consagração do disco como prova definitiva. Ao saírem em tournée, eles foram planejando um álbum que os mostrasse soar bem americano mais musicalmente, e logo prepararam o que seria seu sucessor durante a temporada de promoção do disco, visitando as raízes do rock em Memphis como a mansão de Elvis em Graceland e os lendários Sun Studios e ainda contando com a presença de figurões como Bob Dylan e o lendário ícone do blues, com gravações ao vivo inclusive e tudo filmado com a direção de Phil Joanou, resultando-se em Rattle and Hum disco e filme, editado em outubro de 1988 - mas aí já é uma outra história. Com o tempo, descobre-se muito da importância de The Joshua Tree na história da banda e do conceito que ajudou o U2 a manter-se como uma das mais influentes bandas da década, e hoje é onipresente em diversas listas, como a dos 500 Maiores Álbuns de Todos os Tempos organizada pela revista Rolling Stone, que em 2003 a colocou em 26º lugar, e depois foi para a 72ª posição no ano de 2012 e, recentemente, em 2020, a atualização da lista pôs no número 135 da lista. E a lista dos 1001 Álbuns Para Ouvir Antes de Morrer coloca também este álbum entre os mais importantes dos anos 80, além de figurar nas listas da Time, Pitchfork e até no canal televisivo VH1 mostrando que o tempo sempre foi certo com os irlandeses.
Set do disco:
1 - Where The Streets Have No Name (Bono/The Edge/Adam Clayton/Larry Mullen Jr.)
2 - I Still Haven't Found What I'm Looking For (Bono/The Edge/Adam Clayton/Larry Mullen Jr.)
3 - With Or Without You (Bono/The Edge/Adam Clayton/Larry Mullen Jr.)
4 - Bullet The Blue Sky (Bono/The Edge/Adam Clayton/Larry Mullen Jr.)
5 - Running to Stand Still (Bono/The Edge/Adam Clayton/Larry Mullen Jr.)
6 - Red Hill Mining Town(Bono/The Edge/Adam Clayton/Larry Mullen Jr.)
7 - In God's Country (Bono/The Edge/Adam Clayton/Larry Mullen Jr.)
8 - Trip Through Your Wires (Bono/The Edge/Adam Clayton/Larry Mullen Jr.)
9 - One Tree Hill (Bono/The Edge/Adam Clayton/Larry Mullen Jr.)
10 - Exit (Bono/The Edge/Adam Clayton/Larry Mullen Jr.)
11 - Mothers of the Disappeared (Bono/The Edge/Adam Clayton/Larry Mullen Jr.)

Comentários

Mais vistos no blog