Um disco indispensável: Parklife - Blur (Food Records, 1994)

5 de abril de 1994. Em Seattle, o silêncio perdurava após Kurt Cobain, músico e compositor à frente do conjunto Nirvana, calar para sempre sua voz, com um tiro. O suicído que ainda gera suspeitas, marcava para sempre, o fim de uma banda e do grunge como um movimento e o nascimento de uma lenda. Sim, enquanto o grunge ruía com sua partida, o rock alternativo ganhava força no mundo, em meio ao sucesso de nomes como Mariah Carey que estava na mais plena ascenção artística. A América mantinha o alternativo com peso, alçando bandas como Soungarden, Pearl Jam, Alice in Chains, Sonic Youth entre outros, estavam dominando o mundo de vez. O Velho Continente não iria ficar pra baixo depois de uma década de dominância por New Order, The Cure, Echo & The Bunnymen, The Smiths, Jesus & The Mary Chain, The Mission, Duran Duran, o rock britânico novamente renascia graças a nomes como Pulp, Suede, The Verve, Manic Street Preachers e até mesmo com os mais fortes representantes do chamado britpop - primeiro, um grupo liderado pelos irmãos Gallagher que tinham um quê de referências dos anos 1960 e 70 com algum flerte aos anos 90, e, aqueles que sempre serão vistos pelos mais fieis fãs como uma banda melhor que Oasis: sim, estou falando dos subestimados do Blur - formado por Damon Albarn nos vocais, guitarras e teclados, Alex James no baixo, Graham Coxon nas guitarras e Dave Rowntree na bateria. A banda existente desde 1989 fundada na cidade de Londres com o nome de Seymour, a banda começou a fazer shows e gravar algumas demos, o que chamou a atenção de uma gravadora, a Food Records - subsidiária da EMI Music, especializada em música alternativa. Logo gravam entre maio de 1990 e agosto de 1991 o brilhante Leisure, que havia sido o começo do britpop, embora a semente já havia sido germinada pelos Stone Roses dois anos antes com o clássico álbum de estreia, que soa como o fim dos anos 80 e o começo dos 1990. Em Leisure, nós conhecemos o estilo da banda, mesmo que ainda beirando a algo mais alternativo - o primeiro single do disco, She's So High trazia uma coisa que flertava com o rock made in England dos anos 1960 com o que havia sobrado daquele clima mais característico dos anos 1980. A banda é próxima aos Kinks, grupo dos irmãos Davies popular entre os 1964 e 1969, influência clara também para uma futura banda de nome Oasis - o qual não pretendo expandir por aqui. No mesmo 1991 era a eclosão definitiva, o big bang midiático do grunge, todos os caminhos levariam a Seattle, onde ambientava-se o paraíso do rock de vez. Enfim, a consagração da grungemania - e por que não? - da Nirvanamania, que assolou o mundo e marcou a geração 90, atraindo até os ingleses logo de cara com o estrondoso sucesso do novo cenário alternativo dos EUA, que já matutava na estrada desde meados dos 1980. 
E a terra do chá e berço do futebol ainda respirava ecos do gótico, embora o que ainda seguia em voga era o Tears For Fears, um dos grandes fenômenos da década passada, o britpop começava a se erguer aos poucos nessa época. 
Corria o ano de 1993 e o Blur ia de vento em popa com o sucesso do álbum seguinte, mais caracterizado pela forma como evoluíram a sonoridade, logo com o sucesso de Leisure provando que o conjunto veio para ficar - Modern Life is Rubbish, editado em maio daquele ano, colocou a banda nos eixos de vez, após uma tournée com baixa repercussão nos EUA, e o risco de quase perderem o contrato com a Food - era o tudo ou nada da banda, e foi preciso outra banda expoente do britpop acontecer, leia-se o Suede, para que uma nova invasão britânica fosse acontecer. Mudando mais a linguagem sonora, diversificando o baú de influências, a escolha de produtores no início acabou favorecendo Stephen Street, que trabalhou com a banda também em Leisure, com um resultado favorável: rendendo sucessos como Sunday Sunday e Chemichal World, parecia que ali a banda encontrou o caminho certo. E foi comprovado. Isto só ajudou com que a banda continuasse progredindo nos longos passos para o sucesso devidamente conquistado, e logo Albarn começou a idealizar de imediato o repertório do álbum seguinte, preparando a demo com o grupo e depois entrando em estúdio com Stephen Street, convertido também no quinto Blur, devido a presência participativa como músico e produtor. Gravado no período de agosto de 1993 até janeiro de 1994, o disco com o título inicial de London, tinha na sua visão de capa um carrinho de frutas e vegetais típico, mas, David Balfe vetou a ideia, fazendo com que o nome fosse mudado pelo título de uma das canções do álbum: tornando-se Parklife, e então a capa para este álbum seria a de uma corrida de greyhounds - cachorros magros, os famosos galgos como dizem os fronteiriços. James e Rowntree mantiveram-se em seus instrumentos de sempre, baixo e bateria (mais a programação), enquanto Albarn além de guitarras e da voz, pilotou sintetizadores Moog, órgão Hammond, escaleta, vibrafone e programação, Coxon além das guitarras, programou, tocou percussão e saxofone (sim!) - o processo de criação do disco foi bem aproveitado, já que a banda estava com diversas canções prontíssimas e Albarn misticamente escrevia canções com aura poética, assim como os diversos gênios do rock britânico - e, com as gravações ocorrendo muito rápido, viram que tinham ali um trabalho brilhante, e o grupo estava complacente, satisfeito com o resultado - a Food Records o contrário. Curioso é que em 1994 a gravadora de David Balfe seria comprada pela Parlophone, e com isso, a Food deixava de ser uma independente distribuída e o dono trocaria o mundo fonográfico pela vida rural (o que geraria um hit da banda em 1995). O que aconteceria com Parklife faria com que o Blur definitivamente se tornasse uma das bandas da linha de frente da nova invasão britânica que sacudiria o mundo, e disputando pau-a-pau com um tal Oasis aí.
O álbum já começa logo de cara com um dos grandes hits da banda, justo Girls and Boys, com ruídos do synth e technopop dos 80 na introdução, com uma pegada dançante lembrando até um pouco europop com uma linha de baixo que lembre até mesmo Duran Duran em uma letra onde há uma corrente de tristeza neste hedonismo, típico do cancioneiro bluriano - a letra carrega um pouco sobre a diversão do jovem inglês naquele tempo, encher a cara ao som de um rock e muita curtição como é de lei; na próxima música, o Blur novamente acerta em cheio e mostra o que ainda temos a ouvir - em Tracy Jacks, a visão cronista e com uma narrativa cheia de detalhes sobre um homem comum que sofre um colapso mental devido à sua crise de meia-idade, com o peso marcado pelos sintetizadores e guitarra que "colorem" musicalmente; adiante, o repertório ganha peso maior com um dos hits impulsionados por este álbum, justamente End of A Century mostra nas letras o desinteresse pela vida moderna, os entreolhares de um casal diante da luz da tela da televisão - fazendo jus a diversos temas então atuais abordados ao longo do álbum num tom bem baladista pop, com os vocais bem harmonizados e um violão rascante que dá o tom da canção, junto de um órgão matador mais um trompete no final que remete bem Penny Lane às vezes; em seguida, vamos ao tema que faz destaque no repertório do álbum, estamos falando de Parklife, que parece se tratar de monotonia e sedentarismo, mas Albarn admitiria depois que tratava sobre uma visita sua a um parque e viu diversas pessoas num clima monótono, a canção acaba por contar com a participação do ator Phil Daniels nas falas, com aquela pegada roqueira bem empolgante setentista com uma vibe diferente e metais que lembram os dos anos 60 e do ska provavelmente; para o próximo tema, a banda acaba lançando aqui a faixa mais curta do álbum - Bank Holiday fala sobre o feriado garantido aos ingleses por motivos que quase nunca entendem às vezes no ano, uma pedrada hardcore punk nervosa que traz essa pulsação frustrante da banda marcada pelos vocais estilo Ramones ou Clash misturando à naipe de metais e fuzzes de guitarra gritantes que dão sentido ao arranjo; o peso vigente e a energia cheia de sons dissonantes e plenos notórios até em Badhead, profunda até pela temática que é sobre a gente perder o contato com uma pessoa querida e muito próxima, o arranjo faz a banda flertar com a pegada country/folk com a adição de órgão e metais mais no estilo dos 60 para destacar; o tema seguinte traz uma coisa mais à moda raiz do século XX, a instrumental The Debt Collector traz uma lembrança daqueles tempos de vaudeville, música de ambiente cirquense, isso deve-se ao Kick Horns, o naipe de sopros formado por Simon Clarke nos saxofones barítono e alto, Tim Sander também no sax tenor e soprano, Roddy Lorimer no trompete e flügelhorn e Richard Edwards no trombone, esse clima mais instrumental ajuda mesmo até como um intervalo entre uma faixa e outra, aqui com mais de dois minutos carregando até mesmo um ar de valsa à moda alemã ou austríaca até; com menos de 1 minuto e 40 segundos, a viagem sonora que lembra muito os anos 60 na faixa Far Out narra um pouco da jornada sobre as luas dos planetas do Sistema Solar e põe muito uma das paixões de Alex James nesta canção que é a astronomia e por isso a música com um ar mais soft; com um ar bem baladista meio retrô, com presença até de cordas, a faixa To The End carrega uma coisa mais doce no arranjo numa canção onde se fala de alguém que consegue por, ironicamente, falhar em um relacionamento - o destaque fica também para a voz de Laetitia Sadier, do Stereophonic, que completa os versos de Damon com frases em francês, o que soa très chic (muito chique) por demais; a seguir, uma canção que flerta com o pós-punk e também com a atmosfera quase new wave (será?) é London Loves brinca com a ridicularização da cultura pop materialista que impulsiona a juventude no final do século XX, e essa pegada roqueira funciona bem na música; a levada sonora de pós-punk continua cheia de esporro e pulsação permanece na faixa seguinte de nome Trouble in the Message Centre envolve o fato de estar tão embriagado e selvagem a ponto de sequer conseguir controlar suas ações, inspirado no surgimento das raves inglesas, e Albarn compôs no verso de um recibo de um hotel, por isso algumas frases relacionadas ao que aparece nas letras, e o rock intenso e pesado dá essa engrossada no caldo sonoro do Blur com perfeição; alguns temas no cancioneiro bluriano são abordados com cuidado, e quando se expõe em algum tema, e como em Clover Over Dover, falar sobre o suicídio e de uma forma tão britânica é quase impressionante, o fato da pessoa querer pôr um fim na sua vida em um penhasco na cidade de Dover com aquela pegada mais morna e um cravo dando um tom meio sombrio que, segundo Damon, foi inspirado em Roll Me in The Clover, canção tradicional, e foi uma das únicas músicas a não serem executadas ao vivo até 2019 durante uma passagem de Damon pela África; o estilo irreverente e sempre autêntico da banda ainda gera canções fascinantes como o caso de Magic America, onde rola um deboche com a cultura americana superou a cultura britânica nativa na era Reagan, como sendo hiper-cool - a guitarra dá um destaque pela sua sequência melódica e os vocais soam à la Beach Boys (seria uma influência ou uma brincadeira?) pelo que se escuta; adiante, o que pode soar como um rock clichê com sua pegada, com o Blur, torna-se outra coisa no tema Jubilee, uma bela homenagem ao punk britânico  na sua sonoridade e falando sobre a juventude dos anos 1970 durante o Jubileu de Prata da rainha Elizabeth, a guitarra soa nervosa e crua e deixa um peso sonoro fluir ainda nos nossos ouvidos; o rock suavizante e quase arrastado que apresenta-se na faixa seguinte, nos faz sentir viajar pelos mares ao som de um programa de rádio: é bem isso o que This Is a Low, uma área de baixa pressão no mar, e Damon se imagina fazendo uma viagem imaginária pelas ilhas ao som do Shipping Forecast, conhecido programa de rádio com poemas transmitido pela BBC 4 perto da uma da manhã, aqui o violão da música dá o tom preciso que a canção precisava para aos poucos o disco chegar ao seu fim, calmo e que levasse o personagem a navegar pelas águas frias e solitárias do Atlântico Norte, foi a última a ser precisamente finalizada pela banda porque Albarn não achava uma forma de encaixar suas ideias em mente, e o resultado acaba soando perfeito; o encerramento do álbum fica com a vinheta Lot 105 onde temos aqui uma jam insana, pesada onde a banda parece fazer uma espécie de ska com o órgão e a guitarra incorporando a vibe jamaicana até que ganha peso e com coros de "lalala" terminam com primor a obra-prima.
A banda saiu logo em tournée, mas quase que não acontece nos EUA, porém, com o instantâneo sucesso de Girls & Boys mundialmente, tanto a versão original quanto a remix dos Pet Shop Boys, e logo de cara, gerando uma nova explosão do rock britânico pra valer o que deixou o britpop mais vigente, apesar do Suede também ter acontecido no mesmo período, conjuntos como Oasis - que apareceu logo adiante com Definetly Maybe meses depois, Pulp, The Verve, Placebo e até mesmo o Radiohead consolidarem-se como gigantes do rock alternativo e da cena noventista. O álbum foi eleito em 2° lugar pela revista Pitchfork dentre os 50 melhores do britpop, a mesma revista colocou em 54° nos 100 melhores álbuns dos 1990, e a Rolling Stone deu ao álbum o 438° lugar na lista dos 500 Melhores Álbuns de Todos os Tempos, e figurou também na dos 1001 Discos Para Ouvir Antes de Morrer, e em 2006 a New Musical Express (NME) psicionou no 34° lugar dos 100 Melhores Álbuns e Singles Britânicos, o que prova a importância do álbum para a Inglaterra atual. E pensar que, depois de Parklife, o dono da Food Records que lançou a banda, acabaria trocando a cidade pelo campo, o que gerou um dos hits seguintes da banda, Country House, do aclamado The Great Escape, de 1995. Mas aí já é uma outra história.
Set do disco:
1 - Girls & Boys (Damon Albarn/Alex James/Graham Coxon/Dave Rowntree)
2 - Tracy Jacks (Damon Albarn/Alex James/Graham Coxon/Dave Rowntree)
3 - End of A Century (Damon Albarn/Alex James/Graham Coxon/Dave Rowntree)
4 - Parklife (Damon Albarn/Alex James/Graham Coxon/Dave Rowntree)
5 - Bank Holiday (Damon Albarn/Alex James/Graham Coxon/Dave Rowntree)
6 - Badhead (Damon Albarn/Alex James/Graham Coxon/Dave Rowntree)
7 - The Debt Collector (Damon Albarn/Alex James/Graham Coxon/Dave Rowntree)
8 - Far Out (Alex James/Damon Albarn/Graham Coxon/Dave Rowntree)
9 -  To The End (Damon Albarn/Alex James/Graham Coxon/Dave Rowntree)
10 - London Loves (Damon Albarn/Alex James/Graham Coxon/Dave Rowntree)
11 - Trouble in the Message Centre (Damon Albarn/Alex James/Graham Coxon/Dave Rowntree)
12 - Clover Over Dover (Damon Albarn/Alex James/Graham Coxon/Dave Rowntree)
13 - Magic America (Damon Albarn/Alex James/Graham Coxon/Dave Rowntree)
14 - Jubilee (Damon Albarn/Alex James/Graham Coxon/Dave Rowntree)
15 - This Is a Low (Damon Albarn/Alex James/Graham Coxon/Dave Rowntree)
16 - Lot 105 (Damon Albarn/Alex James/Graham Coxon/Dave Rowntree)

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