Um disco indispensável: Hi-Fi - Nei Lisboa (Paradoxx, 1998)

A eclosão de uma nova cena do rock gaúcho e de uma nova fase no fim do século XX, pelo jeito rendeu muitos frutos bons colhidos pelo pessoal que estava pintando na cena - alguns deles, já experientes na cena, outros buscando seu lugar ao sol. Eram os anos 1990, e o pessoal do RS não precisava mais esperar um selo importante notá-los, já existiam selos alternativos como o Purnada Y Pranada, criação de Egisto Dal Santo (Space Qüeras, Colarinhos Caóticos, etc.), a Grenal Discos, a Stop Records e a Antídoto - esta, um selo pop/rock da ACIT, gravadora especializada em música do Rio Grande do Sul com sede na cidade de Caxias do Sul existente desde 1982 que começou lançando de tudo um pouco, de músicos nativistas a ícones do rock e do movimento MPG (Música Popular Gaúcha, destinada à efervescente cena nascida que unia elementos da música local como o chamamé, a milonga e o vanerão dentre outros com os elementos diversos da música, fazendo assim uma espécie de tradução da world music pilchada. Dentre os nomes que foram lançados na ACIT, um deles foi justamente um figurão da MPG, seu nome é Nei Lisboa - nascido em Caxias do Sul como Nei Tejera Lisboa no dia 18 de janeiro de 1959, e, aos seis anos de idade mudara-se para a capital gaúcha Porto Alegre, tendo morado em outros lugares do país. É o mais jovem de sete irmãos, dos quais Luiz Eurico Lisboa, o Ico, um dos primeiros desaparecidos políticos da ditadura militar cujo corpo fora encontrado ainda no final dos anos 1970. Residiu nos EUA, mais precisamente na cidade de Barstow (Califórnia), por onde descobriu a música em evidência na época - desde o pop de Elton John, até o folk-rock do America, Joni Mitchell, Paul Simon dentre outros, e encontrara um violão encalhado na escola e só depois voltou pro Brasil já mais afim de fazer música. Ao voltar para o Brasil, decide começar a fazer um curso universitário de Composição e Regência na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), inconcluso - ao mesmo tempo, realizava concertos em parceria com o guitarrista Augusto Licks, dentre eles o Lado a Lado e o emblemático Deu Pra Ti Anos 70, nome também de um filme do qual assina a trilha sonora em 1981. Para o começo dos anos 1980, além dos shows, inicia o preparo de sua estreia discográfica - com um apoio de amigos, num esquema de financiamento coletivo, ele pôde realizar enfim o sonho do disco próprio - eis que surge Para Viajar No Cosmos, Não Precisa de Gasolina lançado em fins de 1983 mostrava o talento de Lisboa como cantor e compositor e trazendo pérolas como A Tribo Toda em Dia de Festa, Me Chame de Robert (Melô da Galera) além da brilhante faixa-título. No ano seguinte, com a ajuda da gravadora ACIT, ele realiza seu segundo LP, intitulado Noves Fora da qual saiu temas como Verdes Anos, Lomba de Sabão, Paisagem Campestre, a faixa-título e a polêmica Mônica Tricomônica - censurada na época em que Porto Alegre chegou a ter onda de tricomoníase, antes do boom da AIDS que assustaria o mundo ao longo dos anos. Em 1988, depois de perder a namorada Leila em um acidente, havia lançado o disco Hein?! que fora editada pela EMI-Odeon, mas logo em 1990 publicaria seu primeiro livro, Um Morto Pula a Janela - que foi lançado até na França posteriormente e ganha um especial pela RBS TV chamada Os Elefantes Não Esquecem celebrando seus 10 anos de carreira. Em 1992, decide pôr os pés na estrada com uma nova tournée, incorporando elementos da música afro-latina, como o candombe uruguaio, unindo músicos do país vizinho com os brasileiros, Lisboa levou aos palcos o show Amém rendendo o seu primeiro ao vivo lançado 10 anos depois do debute discográfico e marco importante do rock gaúcho Para Viajar No Cosmos, Não Precisa de Gasolina, citado antes.
Em 1997, o rock gaúcho vivia seu novo frescor, embora bandas como Nenhum de Nós e Engenheiros do Hawaii seguissem ativos com seus trabalhos sempre dividindo opiniões da crítica especializada, novas caras apareciam para fortalecer o cenário e as rádios locais como Ipanema, Atlântida e a novata Pop Rock ajudavam muito nessas horas. Nomes como Comunidade Nin-Jitsu, Tequila Baby, Graforréia Xilarmônica (que já estava na estrada há 10 anos, mas só em 1995 lançaram seu CD Coisa de Louco II), Wander Wildner (que iniciara sua carreira solo após anos nos Replicantes e outros grupos), Papas da Língua, Ultramen, Aqua-Play, Luciana Pestano (com um CD que ajudou a render um hit regional, Vá Embora) entre outros, a ala MPG do rock gaúcho mantia sua chama acesa. Em 1998, após anos fazendo diversos shows, Nei decide retomar ao disco logo após iniciar nova tournée chamada Hi-Fi: Acorde do Tempo do Toca-Discos, na qual dispensa uma banda completa e só conta com o seu violão e o de seu parceiro musical Paulinho Supekovia, o som de Renato Alscher, a cenografia de Élcio Rossini, a iluminação de Maurício Moura e a produção de Antonio Meira, manager do cantor. Em abril e junho de 1998, no palco do Theatro São Pedro em Porto Alegre, os violões de Lisboa (mais a sua voz) e de Supekovia eram registrados junto da energia do público, como um Acústico MTV mais intimista, sem um conjunto de apoio e orquestra de sopros e cordas acompanhando. Com o título de Hi-Fi e uma capa que estampava um jovem numa foto preto-e-branco que na verdade era Nei em tempos de colegial na cidade Brastow, típicas fotos de anuário escolar. Dentre as fotos do CD, na interna da contracapa, os dois durante a realização do material com seus violões. Ao começar a escuta do material, temos logo de cara uma levada bem de duo acústico, um violão base e outro solo - Everybody's Talkin', originalmente escrita e gravada por Fred Neil em 1966 e popularizada por Harry Nilsson em 1968 quando esta versão foi tema do filme Midnight Cowboy (Perdidos Na Noite) e aqui ganha essa beleza sonora de violões e um belo canto em inglês; em seguida, a cover brilhante de Bennie And The Jets, a belíssima história de fãs de uma banda fictícia criada por Elton John e Bernie Taupin em 1973 para o clássico Goodbye Yellow Brick Road, a masterpiece do pop da época, o solo de piano ganha outra interpretação desplugada, uma outra variação; na sequência, a dupla manda melodias brilhantes de outro clássico dos anos 70, Summer Breeze um dos clássicos da dupla Seals & Crofts - nada que soe feio ou imperfeito por aqui; mantendo a linha de cançoes no melhor estilo covers em inglês, não podia faltar a brilhante Norwegian Wood (This Bird Has Flown) dos Beatles, tema clássico do super inovador álbum Rubber Soul (1965), com uma levada fiel à do arranjo original dos violões; dentre os standards que Nei decide investir no seu repertório, aqui temos até mesmo Prince relido através de um de seus temas, Sometimes It Snows in April - clássico presente no ousado Parade (1986), a interpretação vocal do poeta do Bom Fim deixa tudo mais lindo ainda; dentre os diversos nomes que aparecem sendo interpretados, um que não deixa de ser notado é Paul Simon, que ganhou uma nova roupagem feita por Nei de Fifty Ways to Leave Your Lover, onde aqui os violões não deixam de soar afinadíssimos como de lei; o álbum, quanto mais entendido, melhor, como a intenção é um baile da nostalgia diferenciado, cheio de canções que fazem parte da vida de muitos, ainda sobra um clássico obscuro, I'm Having a Good Time de Alberta Hunter (no encarte está como I'm Having a Gay Time), gravado quando Hunter já tinha seus mais de 80 anos para ser preciso, e ganha uma interpretação genial que salva-se aqui de verdade pelo arranjo; em seguida, emenda mais outro tema de Paul Simon sem avisar, logo que os primeiros acordes de That's Why God Made The Movies - que chega a passar batido ao escutarmos, mas, com um riff acústico que traduz bem a sonoridade proporcionada a esta canção; a seguir, o que podemos considerar um tema médio do repertório, mas que acaba sendo excelente depois de ouvir uma vez, passa-se a entender bem a escolha desta faixa; trazendo uma boa série de canções e com um inglês fluentíssimo, o que esperar da próxima faixa é o de sempre: acerto em cheio no arranjo e na escolha da música, Walking Away Blues - tema que Ry Cooder compôs em 1986 para o filme Crossroads, e relembra muito as origens da música americana, vinda dos escravos americanos, e ficando marcada nos primórdios do século XX, e com a dupla marca-se pela combinação de melodias de seus respectivos violões por aqui; com um show excelente bem registrado, nem os figurões do jurássico rock progressivo escapam das releituras desplugadas, o trio Emerson, Lake & Palmer ganhou uma interpretação brilhantíssima de Nei e Paulinho em Still... You Turn Me On recriando com o bucolismo um dos temas mais brilhantes do marcante power trio do progressivo definindo uma forma natural de recriar o tema; e ainda temos clássicos marcantes do country também tem vez, o que Nei optou por fazer uma adaptação de Cool Water, criação de Bob Nolan lá pelos idos de 1936 que ganhou popularidade 20 anos depois por Marty Robbins, e com um arranjo acústico que traz esse lado rural um pouco até; em seguida, a dupla desifla um velho hit do conjunto America, e sem ser o velho conhecido das rodas de violão, Supekovia e Lisboa tocam aqui Ventura Highway onde podemos sentir perfeitamente o estilo fiel ao som do grupo, logo de cara; e, pra não achar que é dose de exagero, ele ainda emenda uma cover bem no estilo regueiro, com aquela levada semelhante de quem toca no instrumento acústico - I Shot the Sheriff, de Bob Marley lembra muito aquela pegada de quem aprendeu de ouvido, mas com um perfeccionismo indescritível que foge do lugar comum da sonoridade; encerrando de vez, uma digníssima interpretação para um daqueles clássicos dos Rolling Stones que a gente jamais se enjoa - Ruby Tuesday é de nos encantar cada acorde tocado e o inglês puro ecoado da voz de Nei que, logo no fim, dá gostinho de quero mais, e prova que Nei ainda se sai bem fazendo covers em um álbum inteiro e no idioma de Shakespeare.
Nei já havia feito interpretações brilhantes de temas de outros cantautores: em 1987 regravou o hit definitivo dos Engenheiros do Hawaii, Toda Forma de Poder exclusivamente para o álbum Carecas da Jamaica um ano após participar da versão da banda. E seis anos depois, regravou temas da música uruguaia compostas por Rubén Rada, Jaime Roos e Eduardo Mateo para seu crossover MPG/candombe registrado ao vivo Amém - que funcionou muito bem. Logo de cara, após o lançamento de Hi-Fi, começou uma redescoberta pela sua obra através dos relançamentos de Para Viajar No Cosmos, Não Precisa de Gasolina e também de Noves Fora em CD de forma individual pela Antídoto - antes a ACIT relançou os 2 álbuns em 1992 numa compilação simples apenas com uma faixa de fora, Eu Visito Estrelas, considerado um CD fácil de encontrar na internet. Excursionou com este show e, logo de cara, voltou a preparar um material autoral, o também brilhante Cena Beatnik (2001) considerado um de seus melhores trabalhos, mas aí é uma outra história. Nei quando aproveitou gravar um disco todo desplugado, manteve-se fiel ao estilo de independente sem depender de uma fórmula caça-níquel que estava sendo os registros acústicos na época, e fez do que consideram um limão bem azedo uma limonada doce de degustar com aquela sensação de que não sai nunca do nosso paladar.
Set do disco
1 - Everybody's Talkin' (Fred Neil)
2 - Bennie And The Jets (Elton John/Bernie Taupin)
3 - Summer Breeze (James Seals/Dash Crofts)
4 - Norwegian Wood (This Bird Has Flown) (John Lennon/Paul McCartney)
5 - Sometimes It Snows in April (Prince/Lisa Coleman/Wendy Melovin)
6 - Fifty Ways to Leave Your Lover(Paul Simon)
7 - I'm Having a Good Time (Alberta Hunter)
8 - That's Why God Made The Movies (Paul Simon)
9 - Walking Away Blues (Ry Cooder/Sonny Terry)
10 - Still... You Turn Me On (Greg Lake)
11 - Cool Water (Bob Nolan)
12 - Ventura Highway (Dewey Bunnell)
13 - I Shot the Sheriff (Bob Marley)
14 - Ruby Tuesday (Mick Jagger/Keith Richards)

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