Um disco indispensável: Let It Be - The Beatles (Apple Records, 1970)

Chegamos a 1969. O início do fim definitivo. Depois de um 1968 agitado, começando com uma viagem mística à Índia com o pretexto de darem um tempo à vida de artista que levavam, na qual o guru Maharishi Maheshi Yogi convidou os Beatles para se dedicarem à meditação, poucos resistiram aos encantos e à rotina hare Krishna - enquanto Ringo e Paul foram os primeiros a pular do barco, Lennon e Harrison só vieram a sair ainda em abril, e nisso o grupo iniciaria uma nova fase - sem Brian Epstein, que falecera em agosto de 1967, para orientar e ajudar a diminuir os atritos entre os quatro, tudo começaria a ruir de vez ainda nas sessões do Álbum Branco - sim, aquele em que Ringo chegou a deixar a banda e só foi convencido a permanecer depois de dias. O disco durou meses a ficar pronto, para se ter uma noção, foi a surpresa de Natal o álbum com 30 faixas (17 em um disco e 13 em outro) e um dos lançamentos também do selo Apple, que a banda fundara e lançou nomes como Mary Hopkins, a banda The Iveys - depois reformada como Badfinger, Jackie Lomax - que trabalhou com George Harrison, e o popular cantautor James Taylor (sim, este mesmo) em seu batismo discográfico produzido por Peter Asher, ex-cunhado de Macca, Doris Troy, Billy Preston e os integrantes em suas carreiras solo, vide George Harrison com sua viajandona Wonderwall Music - trilha sonora de um filme chamado Wonderwall dirigido por Joe Massot e estrelado por Jane Birkin. Enquanto isso, John ensaiava sua carreira solo meio que entre seus colegas por perto, fazendo sons experimentais ao lado de Yoko Ono, sua nova parceira amorosa depois de um término conturbado do casamento com Cynthia Powell, mãe de seu primogênito Julian. Yoko era uma ativista civil ferrenha, uma artista plástica engajada e que parece ter feito muito a cabeça de John após ele a visitar uma exposição dela na Indica Gallery e dali em diante se tornou um casal inseparável. E esse casal registrou umas porraloquices em uma série chamada Unfinished Music com três volumes: a primeira foi Two Virgins com sua capa ousada, a segunda foi Life With Lions e um casal na intimidade em sua imagem de capa, e a última foi Wedding Album - este já lançado quando ambos se casaram. 
Os quatro gravando em Twickenham: o
clima, que já era de tensão, ficou pior ainda
Após as sessões do Álbum Branco e do lançamento, seguido da trilha do filme Yellow Submarine em janeiro de 1969, a banda retoma aos estúdios, e não num clima amigável - mesmo com diversas ideias e raramente uma criação coletiva entre John e Paul, os estúdios de filmagem Twickenham onde eles começaram a gravar uma espécie de filme sobre a rotina da banda em estúdio - o problema é que nem todos estavam muito felizes em se envolver no estúdio. George, por exemplo, um Hare Krishna devoto e praticante, insatisfeito, decidiu deixar o estúdio e a banda - por 12 dias! - descontente com aquelas sessões que nada pareciam agradáveis. Mas, acabou voltando no dia 22 para mais gravações em um novo estúdio que vinha sendo montado, abandonando um pouco o velho estúdio da EMI em Abbey Road (rua de Londres) e logo criando os estúdios da Apple em Savile Row com o que era para ser o megaestúdio (nessa época os Beatles já haviam gravado em outros estúdios como o Trident e o Regent Sound) - o que fora prometido como uma mesa de 72 canais só deu pra 16, o isolamento acústico não havia sido instalado e, pra piorar, era difícil manterem-se em harmonia mesmo com Glyn Johns ajudando a banda na produção, um jovem Alan Parsons (depois conhecido como o Quinto Floyd) como engenheiro assistente, e George Martin como produtor em um tipo de segundo plano. As gravações em Savile Row tinham um clima estranho ainda, distanciado pela necessidade de Paul em reacender a chama do grupo. E decidiram felizmente fazer uma surpresa ao vivo para os fãs: uma despedida em palco, no teto do prédio da Apple, tocando músicas inéditas no dia 30 de janeiro de 1969, mas a polícia teve de intervir por causa do tumulto causado na rua com o show no telhado. Pela última vez, o quarteto de Liverpool tocava junto em público para toda uma Londres ouvir e assim encerravam o projeto que tinha o nome Get Back, ou seja, uma espécie de retorno do zero, um retorno que não vingou pra valer. E depois disto, nada mais. Nada mesmo. 
O que sobrou daquelas gravações em imagem e som? Então, o projeto foi engavetado, John se desfazia da vida de Beatle a cada tempo em que ficava mais apaixonado por Yoko e tornando-se ferrenhamente um ativista civil, embora tenha voltado para a rotina depois que os quatro decidiram retomar os trabalhos com Martin da forma como anteriormente, agora em Abbey Road - e depois do lançamento deste disco, John (silenciosamente) deixa de ser um Beatle. Embora ainda tenha faltado preencher a lacuna do Get Back, adiado seu lançamento até em dezembro de 1969 com uma capa que fazia uma releitura da icônica imagem de Please Please Me com os quatro no mesmo prédio da EMI - mas, o que aconteceria seguinte daria outros rumos. Primeiro, o filme e o álbum receberiam outro nome e arte de capa, e o filme acabou sendo remexido durante esse período pelo idealizador das filmagens das sessões, Michael Lindsay-Hogg. E as gravações permanecidas em fitas por Lennon e entregues a Phil Spector, que construiu novos arranjos em cima das gravações e adicionou coro e orquestra - sem a consulta de Martin e dos outros três (Paul, George e Ringo, que ainda gravaram novas instrumentais para os temas feitos ainda em Twickenham e nos estúdios da Apple e, pronto, com fotos individuais dos quatro músicos, agora como Let It Be, o inédito álbum dos Beatles aparecia nas lojas em 8 de maio de 1970 - menos de um mês depois de McCartney declarar ao Daily Mirror de que estava deixando os Beatles - o pretexto para dar a deixa e lançar seu álbum solo. Todos naquele momento estavam reinventando-se artisticamente com suas carreiras solo. E mesmo os três estando presos a um contrato com Allen Klein, visto como um sucessor de Epstein que não tinha a ver segundo Paul, com o perfil da Apple, viu que os negócios ficaram em mãos erradas e foram para a Justiça o que só foi resolvido seis anos depois.
No telhado da Apple juntos pela última vez
numa aparição pública em 30 de janeiro de 1969:
depois disso,o fim lento ganhava
um ritmo acelerado e nervoso
Mas, deixando as tretas de lado, vamos ao disco: que começa logo com um momento debochante de John Lennon "I dig a pygmy by Charles Hawtrey and the Deaf Aids, phase one, in which Doris get her oats" com a deixa pra uma leve batida de violão que ganha ritmo para Two of Us, com uma pegad em que Paul fala sobre ele e sua amada Linda Eastman, mas também com versos remetendo à amizade de Paul com Lennon, um folk bem de leve sem muito exagero, o ritmo é bem calmo, condizendo com o ambiente sonoro da canção; a seguir, temos um blues nervoso e matador vindo de John que fez da poesia nonsense de Dig a Pony um de seus exageros perfeitos em que acerta em cheio... desde as guitarras até como canta o refrão, com momentos para falsetes, para quem achava que Lennon andava mais inspirado do que nunca, essa é uma das respostas; das sobras das canções criadas na temporada de meditação com o Maharishi em 1968, aqui temos a bucólica Across The Universe, remixada e com a adição de overdubs e vocais, fala da paz e da natureza e sobre que ninguém pode mudar nosso mundo, ela foi lançada como single ainda em 12 de dezembro e presente em uma compilação para a World Wildlife Fund, a conhecida WWF - e não faz muito que a música ajudou a levar o nome de um filme com base nas canções da banda; outra canção que arrasta pro blues é desta vez do discreto e talentoso Harrison com uma bela visão do ego, dessa sensação narcisista em I Me Mine - que é bem a cara do disco, e foi recriada em estúdio em janeiro de 1970 pela última vez para este álbum ainda; servindo neste álbum apenas como um intervalo entre uma música e outra, Dig It veio supostamente de uma brincadeira em estúdio em cima de Like a Rolling Stone, o hino do poeta de Duluth, onde citam a FBI, o CIA, a BBC, o guitarrista B.B. King, a atriz e cantora Doris Day mais Matt Busby, o dirigente do Manchester United - o termo "dig it" significa sobre gosto ou gostar de algo, a brincadeira sonora com um clima bem rocker na levada de guitarra e bateria; na próxima música, um piano mágico nos leva a uma bela pérola significante deste álbum - e falamos justamente Let It Be, cuja "Mother Mary" era a mãe de Paul, a inspiração do músico para esta letra onde ela por meio de uma passagem sonífera dizia palavras de sabedoria que motivavam o filho hoje famoso num arranjo bem baladista da época com uma passagem instrumental de guitarra e um solo de órgão bem grooveado por Billy Preston, anos depois, Lennon confessou que a música tinha mais a ver com McCartney comparando-a com Bridge Over Troubled Water - e olhem que a música já ganhou versões de John Denver, Aretha Franklin, Tom Jones, Alicia Keys, John Legend, Ray Charles, Joan Baez e por brasileiros como Ivan Lins e Rosa Marya Collin; mais uma vez, o disco ganha outra vinheta que é meio como um intervalo para dar um clima estranho, mesmo que com poucos segundos - esta é Maggie Mae, na qual eles adaptam uma canção tradicional do folclore de Liverpool sobre uma prostituta na região dos portos, numa levada bem de violão em uma canção que só aparece John, George e Paul - uma espécie de revival das raízes do Quarrymen - o embrião dos Beatles em 1957; seguido de uma outra música que ainda transborda a acidez e o peso, o disco conta com uma proto-metal que não passa batido aqui, intitulada I've Got a Feeling - a junção de três músicas como I've Got a Feeling de Macca, mais Everybody Had a Hard Year de John e pra fechar Watching Rainbows reutilizada na música - a parte de Paul tem mais a ver sobre o momento em que ele vivia após ter conhecido Linda e sentido que ela era o amor pra toda sua vida, enquanto John relembrou que todo mundo teve um difícil ano, ele esteve em prisão por porte de drogas, seu divórcio de Cynthia Powell, ficou quase falido e perdeu um bebê com Yoko após sofrer aborto - a pegada roqueira mantêm a chama sonora do quarteto de Liverpool acesa nesta faixa e as guitarras são a prova disto; mais pegada hard nas canções beatle possível? Só se for na próxima música, One After 909 composta ainda em 1957 e ainda gravada em 1963 volta com uma levada quase parecida com a do punk com uma letra sobre alguém que viaja de trem na mesma linha que a amada e ouve de um ferroviário que está na estação errada, aqui novamente as guitarras têm peso e os vocais dão uma prova dessa permanência de uma chama acesa como disse antes; novamente temos a essência das baladas no repertório, e Paul aproveitou muito bem dessa fórmula de canções mais sofisticadas com pianos reinando soberanamente, e esse exemplo ainda aparece em The Long and Winding Road, basicamente uma visão do momento tenso para a banda como o período desagradável e cansativo do Álbum Branco, o fim do relacionamento com Jane Asher, a morte de Brian Epstein, ainda vem a expressar suas crenças de que dificuldades são inevitáveis - coincidência é que foi composta 8 meses antes de John anunciar que estava deixando a banda em silêncio! O arranjo orquestral adicionado por Spector não é tão primoroso perto do instrumental da banda e da voz plena de Paul, e foi mais outra canção que ganhou diversas interpretações como de Diana Ross, Andrés Calamaro, Peter Frampton, George Michael, Zizi Possi dentre outros nomes; mais adiante, ainda temos o último momento de George em um disco da banda, e é num blues - sim!, o gênero que ele domina perfeitamente - For You Blue têm a pegada tradicional de 12 compassos escrito para Pattie Boyd numa letra com um tom otimista e sem preocupações - John mandando ver no lap steel guitar com o restante da banda fazendo um belo instrumental como se fossem músicos do Sul dos EUA enraizados; encerrando o álbum, ainda temos no repertório o grand finale apoteótico, que começa com John improvisando versos debochantes envolvendo uma Sweet Loretta Fart antes de mandar bala em um dos célebres momentos da banda direto do telhado da Apple pra toda Londres ouvir e ver pela última vez ao vivo: é Get Back, uma verdadeira jam bluesística com Preston no piano elétrico enquanto Paul canta versos satíricos políticos, embora haja controvérsias quanto a letra - uma envolve racismo com paquistaneses, o que sempre foi desmentido, a outra seria sobre Yoko Ono e um pedido pra que ela voltasse de onde veio - bom, o que importa é que a música tornou-se clássica e mostrou os Beatles afinadíssimos, com um final bem ao vivo seguido de aplausos e de John emendando um "I'd like to say thank you on behalf of the group and ourselves, and I hope we passed the audition" (Eu gostaria de agradecer em nome do grupo e de nós mesmos, e espero que passemos na audição) mantendo em vigor o velho humor Beatle presente nos primeiros anos.

O disco, como dito antes, por ficar engavetado e sofrer estas mudanças logo depois, ganhou o célebre filme e disco com as mudanças feitas por Spector, e nessa altura do campeonato, nada se sabia mais da banda ou do futuro dela, embora um processo já tenha rendido um barulho. Se sabia que, em 1970, cada um estava com seu projeto: Ringo assume-se como artista definitivo fora da banda com dois álbuns, o primeiro é Sentimental Journey e o seguinte foi lançar Beaucoups of Blues. George com o que tinha de material rejeitado nos últimos anos, decidiu juntar tudo em All Things Must Pass, considerado até como o primeiro álbum triplo da história. Lennon seguiu com seu ativismo social junto de Yoko e ainda sobrou tempo para conceber Plastic Ono Band, o primeiro álbum de estúdio depois de projetos experimentais ao lado da amada. Paul já vinha planejando nesse período após as sessões de Abbey Road sua estreia solo entre dezembro e fevereiro, sem nenhum auxílio, gravou McCartney que foi editado dias depois de anunciar "sua saída" (o fim) do grupo e um mês antes deste. O disco trazia algo puramente roots rock, e isso não era notório até ver que ainda soava uma mistura de blues com skiffle e folk e, adivinhem só, ganharam um Oscar na categoria de Melhor Trilha Sonora (à essa altura, ninguém da banda se tocou de ir pegar o prêmio e foi Quincy Jones que recebeu). E isso ajudou até nas direções sonoras dos trabalhos individuais dos 4 (ou não), e quem reclamou do Spector ter inserido muito overdub e mexido na sonoridade, pode ficar feliz pois em 2003 recuperaram as gravações originais sem os overdubs adicionados em 1970 e lançaram numa versão intitulada Let It Be... Naked, que pelo menos ali não se encontra as inserções, mixagens e com a consultoria de Martin como Paul queria. No mesmo ano em que saía a versão natural, a Rolling Stone concluiu o veredito do culto a este disco dando a 86ª posição nos 500 Melhores Álbuns de Todos os Tempos e depois foi inserida na poderosa lista dos 1001 Álbuns Para Ouvir Antes de Morrer e sendo inserida em diversas listas dos melhores registros da década de 70 - e a história foi justa para os quatro em seus novos rumos no começo daquela década.
Set do disco:
1 - Two of Us (John Lennon/Paul McCartney)
2 - Dig a Pony (John Lennon/Paul McCartney)
3 - Across The Universe (John Lennon/Paul McCartney)
4 - I Me Mine (George Harrison)
5 - Dig It (John Lennon/Paul McCartney/George Harrison/Ringo Starr)
6 - Let It Be (John Lennon/Paul McCartney)
7 - Maggie Mae (John Lennon/Paul McCartney/George Harrison)
8 - I've Got a Feeling (John Lennon/Paul McCartney)
9 - One After 909 (John Lennon/Paul McCartney)
10 - The Long and Winding Road (John Lennon/Paul McCartney)
11 - For You Blue (George Harrison)
12 - Get Back (John Lennon/Paul McCartney)

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