Um disco indispensável: The Kinks Are The Village Green Preservation Society - The Kinks (Pye Records, 1968)

Os anos 60 efervesciam e continuavam a trazer inovações revolucionárias - a disputa pela conquista do espaço entre EUA x URSS em pleno auge da Guerra Fria, a força dos movimentos civis - negros, feministas, os protestos contra a Guerra do Vietnã e o serviço militar estadunidense obrigatório para ir combater, o lançamento de 2001: Uma Odisseia no Espaço - a ficção científica de Stanley Kubrick que trazia uma visão inovadora do futuro, a relação homem-máquina, um futuro muito distante que deixou de ficar só nos cinemas, a forte crescente dos regimes militares latino-americanos que acabavam tirando o gozo pela liberdade de expressão, mas uma parte da juventude queria curtir a vida naquele ano ao som de uma boa música, e música boa é o que não faltou para embalar 1968: os Beatles lançaram em novembro o emblemático e ousado Álbum Branco, juntando 30 canções em 2 LPs cheios de inovações na qualidade sonora, os Rolling Stones viram que a psicodelia não batia bem para o estilo deles - por mais que o brilhante Brian Jones sempre quisesse fazer algo totalmente diferente, e eles retomaram às raízes com Beggars Banquet, na qual apresentou a clássica canção de protesto Street Fighting Man e a autêntica obra de arte que abre o LP, Sympathy For The Devil, que rendeu a célebre acusação de que eles estariam cantando sobre o Belzebu e as mensagens subliminares que até hoje nunca conseguimos encontrar, ou encontramos de forma suspeita. O popstar da guitarra Jimi Hendrix estava em seu pleno auge quando estava concebendo Electric Ladyland, o ponto máximo de sua carreira em definitivo, e cada dia tocava melhor do que nunca. Chegava também às lojas um álbum que conseguia trazer esse lance de blues ácido, diferente, de uma banda chamada Big Brother & The Holding Company - com a voz de uma Janis Joplin, as sete faixas de Cheap Thrills causaram um forte impacto pela sua voz de quem canta blues e soul - nada mal para uma moça do Texas. O power trio Cream formado pelos lendários Eric Clapton, Jack Bruce e Ginger Baker chegava ao fim de seu ciclo após o álbum duplo (mezzo em estúdio, mezzo ao vivo) Wheels of Fire, na qual haviam gravações de temas do blues como Born Under a Bad Sign, de Albert King, e a releitura épica de Crossroads, o clássico do lendário Robert Johnson - os três fazem um recital de despedida no Royal Albert Hall em Londres, e lançariam o álbum de despedida em janeiro do ano seguinte. Dentre as bandas que faziam a trilha sonora daquele ácido e lúcido ano de 1968, devo aqui dar meu destaque ao conjunto musical inglês The Kinks - surgido em 1961, lançaram em 1964 seu primeiro álbum que trazia o sucesso You Really Got Me - considerada a música que inventou o heavy metal, o punk e o hard rock em geral. Com isso, veio a popularidade, a fama e as polêmicas - brigas com poderosos diretores de televisão que custaram num breve período sem tocar nos EUA, uma breve saída do baixista Pete Quaife e a mudança de Rosy para a Austrália - esta é irmã de Ray e Dave Davies, e uma aura bateu na mente de Ray - o que ajudou a trabalhar em discos conceituais bem elaborados. Em 28 de outubro de 1966, eles lançaram o quarto álbum chamado Face to Face, inovador e repleto de arranjos totalmente criativos - considerado o início de uma nova fase, que sucedeu-se com o épico e brilhante Something Else - o último com o produtor Shel Talmy, na qual trouxe Death of a Clown, Waterloo Sunset - uma das mais aclamadas canções do conjunto da obra do grupo, David Watts, Love Me Til The Sun Shines e, por fim, Afternoon Tea - boa parte do álbum trazia essa visão de Ray Davies sobre uma sociedade britânica decadente e careta, o que se tornou essencial na sua obra.
Não dando a mínima para a modernidade, Ray Davies continuou a se sentir um saudosista nas suas composições, ele era um jovem com 21 anos de alma velha - se sentia muito preocupado com a ausência dos valores e dos costumes tradicionais britânicos, e, para o sucessor de Something Else, ele buscou uma nostalgia mais profunda para criar as canções deste. Do nada, se sentindo indignado com as transformações que o país sofria, vendo tudo aquilo que ele mais amava - a cordialidade entre os vizinhos, as respeitadas tradições, uma vida pacata em família e uma certa ordem vitoriana - desaparecendo devido aos conflitos de gerações e uma modernidade que estava levando uma sociedade a pensarem pra frente. Nisso, Davies acaba buscando influências nas visões de uma Inglaterra bem rural e provincianas lá nas raízes dos valores e tradições, mas também faz o álbum se identificar com cada personagem da nossa vida cotidiana. O material foi gravado ainda entre os meses de novembro de 1966 até outubro de 1968, quase dois anos para conceberem The Village Green Preservation Society, editado em 22 de novembro do mesmo 68 - e coincidência! - no mesmo dia em que os Beatles colocavam na praça o épico Álbum Branco, ou seja, dois clássicos nascidos na mesma época.  O álbum começa de cara com a faixa The Village Green Preservation Society, carregando um bucolismo que reina soberanamente sobre a atmosfera poético musical, na letra, eles louvam uma Inglaterra pré-urbana, citando inclusive o próprio Pato Donald, personagem estadunidense criado por Walt Disney em 1934, a geléia de morango, o detetive Sherlock Holmes, o personagem inglês dos quadrinhos Desperate Dan e faz uma licença poética usando o God Save the Queen citando ícones culturais do país, o acerto é em cheio; na sequência, eles ainda mandam ver com um personagem que é bem pessoal para o nosso lado - Do You Remembrer Walter? faz aquele balanço das lembranças do passado de quando o eu-lírico recorda sobre o tal Walter, que jogava críquete entre chuvas e trovões, fumava cigarro escondido no jardim de casa e por aí vai, e Davies conclui que, depois de anos, ele deve ter uma fisionomia bem diferente de quando jovem - gordo, casado e com um estilo de vida diferente - prestem bem atenção no arranjo da música, bem construtiva a melodia e a sequência de acordes da guitarra e a forma como Ray canta aqui em especial, é um dos grandes destaques do álbum; ainda dando notoriedade à parte musical, não temos como não esquecer de Picture Book, outra das mais belas canções presentes no repertório, com uma pegada que certamente nos faz remeter a (Oh) Pretty Woman, de Roy Orbison (1936-1988), o baixo e o violão fazem muito a diferença aqui por serem os grandes destaques instrumentais, numa letra que mostra sobre como as pessoas registram momentos de sua vida e compilam em um álbum de retratos, com um final onde eles cantam "A-scooby-dooby-doo!", possivelmente, uma referência ao futuro cachorro dos desenhos animados Scooby-Doo, criação da dupla Hanna-Barbera em 69, seria coincidência? Já que essa parte havia sido notada em Strangers in The Night, sucesso de Frank Sinatra três anos antes; em seguida, a banda dá os sinais de que ainda estão no caminho certo, sem nos decepcionar até aqui, e Johnny Thunder demonstra não errar feio, a letra é sobre um jovem rebelde do bairro que nada se importa e mal se encaixa na sociedade, o baixo de Quaife e a guitarra colaboram na construção da alquimia sonora desta canção; mais, o grupo demonstra fazer o caminho das raízes do rock, em especial o blues através de Last of The Steam-Powered Trains, com uma guitarra matadora de comprovar o talento de Dave Davies como músico, e os vocais soam plenos neste rock debochado que faz essa obsolência tecnológica, sobre os últimos trens movidos a vapor - adeus maria-fumaças e olá trem-balas, um mundo novo está aí a se locomover; continuando esse desfile de belas canções vindas da brilhante mente de Raymond Davies, o grupo ainda apresenta Big Sky, apresentando um instrumental bem concebido, e a letra fala sobre Deus, e enquanto Sua Onipotência está chateado com a forma como os humanos tratam uns aos outros, ele não deixa que isso o incomode muito, pois Ele sabe melhor que isso, a guitarra e o baixo dão um toque bem forte que marca os ouvidos; terminando o primeiro lado do disco, o repertório apresenta uma faixa repleta de suavidade poético-musical que é impactante de Sitting By The Riverside, que apresenta um piano doce em um belo arranjo musical evocando momentos ao lado de alguém sentado à beira de um rio, nenhum defeito nesta canção; abrindo o outro lado do disco, já sentimos o bucolismo nos versos de Animal Farm, e se tratando sobre a vida no campo longe da turbulência e do caos urbano que nos prende às poluições ambientais e sonoras, e a ideia de uma vida na fazenda ajuda a desenvolver um bom tema ao ouvirmos, com acordes de guitarra que não nos decepcionam; mais adiante, o grupo usa da nostalgia e do foco em uma velha e saudosa Inglaterra nos versos de Village Green, que na sua alquimia sonora traz um órgão mágico e metais que dão um toque puro e clássico, na qual Ray conta de uma Village Green dos seus sonhos e daquele tempo em que se dava para imaginar seus olhos cheios de lágrimas, é notável aqui um arranjo de influências bem medievais - na parte poética e na parte musical em todo; a seguir, os Kinks não param no meio do caminho e mandam seu tema de puro rock n' roll neste álbum, estou falando de Starstruck, na qual Davies fala sobre uma garota que se apaixona por ele e é obcecada, mas não pensa direito, pois acha que ao conhecê-lo, as coisas mudarão em sua vida e apresentando a ela oportunidades inenarráveis, porém, ele tenta minimizar as expectativas - talvez pelo fato de as coisas não serem tão boas para pessoas famosas quanto pensamos, sem perder o brilho da música, Dave Davies não erra na melodia e Avory manda muito na seção rítmica; na sequência, a próxima canção traz de cara uma introdução de flauta que dá a deixa para Phenomenal Cat, que traz em sua narrativa a história de um gato gordo que vivia em sua árvore e avesso às dietas, apontava os lugares do mundo onde viveu - lembra muito os personagens de desenho animado, a base sonora não dá sinais de decepção e eles acertam em cheio; continuando no enfoque sobre lembranças, desta vez, um pouco embaraçosas e constrangedoras, a banda agora arregaça em All Of My Friends Were There, onde se canta sobre um artista que se embriaga antes de seu primeiro concerto e resultando-se em um grande constrangimento na frente de todos os seus amigos - é uma ode à amizade e aos momentos passados em torno desta(s), e o baixo é quem comanda a melodia, a guitarra só dá o seu show sem dar aviso; em seguida, a banda consegue ir mais profundo numa melodia diferente, com um tom bem dark e sinistro que é o essencial de Wicked Annabella, falando de uma moça misteriosa e muito mística, uma bruxa (possivelmente), a parte instrumental tem uma linha de baixo no estilo de Johann Sebastian Bach, e, segundo Ray Davies, esta é uma faixa bem louca e está em contraste com o restante do LP, ela faz o caminho diferenciado, com guitarras mais distorcidas e uma bateria que dá o tom exato para a música - insano, porém sensacional; e há quem pense que o álbum tenha um final mais pré-gótico, ele retoma ao contraste principal das canções, com muita percussão engrossando o caldo, Monica é aquela faixa que deu certo no repertório do álbum - a influência de ritmos afrolatinos é muito forte, em especial de calipso, e muito se questiona da personagem da música ser ou não ser uma prostituta, ao ler nas entrelinhas de cada verso; fechando este LP maravilhoso, o grupo traz uma análise bem realista e que soa até atual em People Take Pictures of Each Other, envolvendo a questão de registrar em fotografias as pessoas, cabe bem para os tempos atuais de Instagram e afins - a guitarra e a bateria mostram afinadíssimas aqui, sem tropeços, e terminando de vez essa bela obra-prima.
Ao final, você irá tentar entender o porquê deste disco ser uma obra-prima maravilhosa, vai querer ouvir pela segunda vez e se apaixonar - é um daqueles discos que o leitor precisa ouvir e muito, e é provável entender sua influência dentro do britpop através das bandas Oasis, Blur, Pulp e por aí vai. Com este disco, eles acharam um jeito de contarem histórias através de uma sequência de faixas que renderam obras como Arthur (Or The Decline and Fall of British Empire) lançada no ano seguinte - definindo-os como um grupo de ópera-rock a partir deste momento, e um excelente sucessor que cumpre a missão de ser um dos seus melhores trabalhos no conjunto da obra da banda, por mais que este já não tenha o baixista Pete Quaife, que saiu da banda e em seu lugar entrou John Dalton para assumir o instrumento, mas aí já é uma outra história. O álbum figura em 255º lugar na sempre citada superlista da Rolling Stone dos 500 Maiores Álbuns de Todos os Tempos, e também ganhou um espaço junto de diversos clássicos daquele mesmo 1968 nos 1001 Discos Para Ouvir Antes de Morrer, e em listas importantes que destacam aqueles longos e inesquecíveis anos 60.
Set do disco:
1 - The Village Green Preservation Society (Ray Davies)
2 - Do You Remembrer Walter? (Ray Davies)
3 - Picture Book (Ray Davies)
4 - Johnny Thunder (Ray Davies)
5 - Last of The Steam-Powered Trains (Ray Davies)
6 - Big Sky (Ray Davies)
7 - Sitting By The Riverside (Ray Davies)
8 - Animal Farm (Ray Davies)
9 - Village Green (Ray Davies)
10 - Starstruck (Ray Davies)
11 - Phenomenal Cat (Ray Davies)
12 - All Of My Friends Were There (Ray Davies)
13 - Wicked Annabella (Ray Davies)
14 - Monica (Ray Davies)
15 - People Take Pictures of Each Other (Ray Davies)

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