Um disco indispensável: Selvagem? - Os Paralamas do Sucesso (EMI Music, 1986)

O Brasil que estava a renascer em 1985 era um Brasil eufórico pelo boom do novo cenário roqueiro que estava dominando as paradas de sucesso aqui - era comum sintonizar no rádio e ouvir as bandas cariocas Barão Vermelho - com um Cazuza à frente do conjunto nos vocais -, Kid Abelha & Os Abóboras Selvagens, Herva Doce, Blitz, Sangue da Cidade, ainda tínhamos Lobão & Os Ronaldos, Marina e o anglo-carioca Ritchie, mas tinha também um trio da pesada que juntava rock com doses pop, misturando nessa salada reggae, ska, new wave mais elementos brasileiros e latinos - estes eram Os Paralamas do Sucesso, um power trio formado por Herbert Vianna nos vocais e guitarra, Bi Ribeiro no baixo e João Barone na bateria, que apareceram para o Brasil ainda em 1983 com seu LP de estreia Cinema Mudo apresentando entre os sucessos, Vital e Sua Moto - que já fazia sucesso no Rio pois a banda entregara uma demo com esta e mais 3 músicas para a rádio Fluminense FM - mais conhecida como A Maldita, e de imediato já conquistou os ouvintes naquele verão, dando a eles um contrato com a mesma gravadora da Blitz, a EMI (hoje Universal Music). Depois de uma estreia relevante, o grupo começaria a alçar voos maiores através de O Passo do Lui - com maior repercussão e recheado de hits, aqui eles trazem um sucesso atrás do outro com uma boa dose de reggae e ska misturado com new wave e punk - temos aqui Óculos com sua letra irreverente, a bela Meu Erro, Ska, Romance Ideal, e também Me Liga - o disco ainda embalou muitas festas, sorte dos que discotecavam, pois a galera sabia o quão bom eram e ainda são as músicas dos Paralamas. Em janeiro de 1985, a Cidade Maravilhosa recebia de braços abertos como o Cristo Redentor um dos marcantes festivais de música a ser realizado com diversas atrações nacionais e internacionais, lógico que estamos nos referindo ao primeiro Rock in Rio - e no dia seguinte aos concertos do Kid Abelha e Eduardo Dusek, Herbert mandou a real sobre quem estava vaiando os artistas brasileiros e depois tocou um dos hinos das Diretas Já: a canção de protesto Inútil, de um conjunto musical lá de São Paulo chamado Ultraje a Rigor, que ainda só tinha aparecido por meio de compactos, e dedicou aos grupos ausentes daquela festa da música que tinha Gil, Ivan Lins, Elba Ramalho, Blitz, Barão e concertos internacionais como os do Yes, Queen, Whitesnake, Ozzy Osbourne, B-52's, Nina Hagen dentre outros - e depois do Rock in Rio, vieram estádios e ginásios para lotar. Nada mal para uma das bandas então jovens do rock brasileiro que transbordavam o nascer de um novo Brasil que se transformaria na Nova República, cujo o presidente Tancredo Neves, mal foi empossado, pois falecera naquele momento. Em seu lugar, entrava o maranhense José Sarney, uma imagem caricata que não mostrava ser a cara da Nova República, e o que vimos ao longo dos anos foram tentativas de combater a inflação, o surgimento do Plano Cruzado e os cidadãos se tornaram nos fiscais do Sarney, uma forma de "segurar o dragão", naquele mesmo 1985 o surgimento de Armação Ilimitada ajudou a revolucionar a linguagem das séries com um ar mais jovial, protagonizada por Kadu Moliterno, André De Biase e Andréa Beltrão mostrava as divertidas aventuras da dupla Juba e Lula com uma estética muito inovadora. A censura ainda existia, mas a cultura resistia em meio ao caos dos primeiros anos desta Nova República, e o burburinho em torno da proibição do filme Je Vous Salue Marie, do francês Jean-Luc Godard, aqui proibido durante o governo Sarney em 1986 - e a chamada vanguarda conservadora do retrocesso mantinha as garras afiadas. Os Paralamas voltariam ao estúdio em princípios do ano 1986 e com um monte de ideias a colocar em prática, motivados com essa estrada durante a turnê de O Passo do Lui, entram no estúdio Nas Nuvens tendo o produtor musical da moda, o ex-mutante Liminha pilotando a mesa de som, e, desta vez, mais recheado de sonoridades caribenhas e brasileiras, ainda mantendo influências do reggae - o Brasil dos Paralamas agora estava com o leque aberto para um som mais universal do que nunca, e se desvinculavam eternamente da imagem de Police brasileiro que ficou muito notável ainda nos primeiros LPs.
Em 24 de abril de 1986, sai o 3º LP dos Paralamas, o que pode ser considerado a magnum opus definitiva da carreira de Herbert, Bi e Barone - intitulado Selvagem? a capa estampava uma foto de Pedro, irmão de Bi Ribeiro em um acampamento numa área de cerrado em Brasília, eles tinham ficado uma semana sem comer e tomar banho - cada acampante se vestiu de um personagem e ele se vestiu de "selvagem" com uma faixa de judô e segurando um arco que ganharam de um índio, e com o qual pretendiam caçar aves. A banda já havia decidido o conceito gráfico da capa, já deixaram claro que o nome e o personagem de Pedro seria o títuloporém, houve uma relutância da EMI no momento. Em depoimento para o programa Arte na Capa, Bi explicou que o objetivo era "desafiar, provocar, mostrar independência, que a gente podia fazer o que queria" e pronto. Começamos o álbum com um hino clássico total, uma pedrada com toques latinos e sintetizadores dando a deixa para uma guitarra que nos remete ao Norte brasileiro logo no começo de Alagados, uma das melhores coisas já criadas pelo grupo, com uma das melhores frases presentes na letra "a arte é de viver da fé, só não se sabe fé em quê" tendo uma percussão marcante executada por Armando Marçal, e vale citar sobre a presença brilhante de Gilberto Gil nos vocais - seria pouca coisa, se notássemos o timbre do baiano que deu uma linda canja; a próxima música há uma contextualização paralâmica sobre a capital do Irã, marcada pelos conflitos como em boa parte do Oriente Médio - Teerã mexe um pouco na questão infantil, pois eles se preocupam com as crianças que viviam naquela região, com uma sonoridade de reggae e uma dose de new wave para complementar; na sequência, o baiano que participou do disco na primeira faixa fazendo backng vocal colabora aqui com uma composição ao lado do trio em A Novidade, uma letra que foca na questão da desigualdade social e também visão do poeta encantado pelo canto da sereia, e do cidadão faminto que precisa sobreviver - com uma levada bem balançada enquanto Herbert canta como se estivesse emocionado o refrão desta; sem perder o caminho desta viagem sonora oitentista, com essa vibe bem regueira marcante no repertório do grupo, ainda temos uma colaboração poética de Barone com a divertida Melô do Marinheiro onde é contada a história de um sujeito conseguiu ir para Nova York de navio e sua jornada dentro do transatlântico no qual entrou de gaiato e acabou trabalhando dentro deste, descascando batatas no porão e limpando o convés como é dito na música com uma boa dose de humor, típico das canções presentes nos anos 80 essa veia mais cômica que funciona sempre; adiante, nós temos aqui, uma versão mais suavizante de Melô do Marinheiro, desta vez, intitulada Marujo Dub, e com uma pegada mais relax do que na faixa original - foquem no solo de baixo de Bi Ribeiro e a virada rítmica de Barone que ajudam a fortalecer a música - sem esquecer o nosso guitar hero inspirado aqui, a música apresenta alguns versos citados na qual se usa o voice box, a famosa mangueirinha conectada ao microfone que deixa a nossa voz robotizada - já entenderam, né? A próxima faixa deste incrível e brilhante LP é a que carrega mais agressividade sonora e poética inclusive, estamos nos referindo à Selvagem? um pouco mais crua, mais heavy ao ouvirmos a guitarra de Herbert - na letra, eles não perdoam ao governo, o racismo e a violência policial: parece bobagem, mas, se formos ouvi-la, nem parece ter sido escrita em 1986, por soar totalmente atual nos tempos de hoje, serve como uma visão do Brasil daquela época (1986) e agora (2019); em seguida, vamos para algo mais simples do repertório que não deixa a gente passar batido e mantêm a essência, com um tom mais dark, algo notável em A Dama e o Vagabundo é essa conexão das histórias de casais que combinam com o que for do agrado de cada um movido uma vibe sonora mais diferenciada, a guitarra aqui não fica a desejar como se esperava; adiante, o grupo volta a tocar canções mais pra cima, e desta vez com um Herbert mandando ver no inglês de There's a Party, com uma pegada bem de ska à la Police, aqui a canção trata do momento de distração das pessoas nas festas noite adentro, sem uma preocupação com o próximo, e ainda nos fazem lembrar um pouco da sonoridade dos primeiros discos do grupo carioca; mantendo a conexão Brasil-Jamaica pela sonoridade, ainda temos no álbum um reggae de peso com uma letra daquelas - e O Homem acaba por desconstruir um pouco da imagem masculina e mostra que nem tudo é como parece e isso funciona como realista, por mais que alguns sintetizadores parecem não colaborar, a onda regueira dos Paralamas nos deixa surfar aqui numa boa; encerrando aqui o álbum, uma bela senhora interpretação do trio de um dos clássicos da obra do nosso mestre do soul, Tim Maia (1942-1998), estamos nos referindo a Você, do seu segundo LP homônimo de 1971, aqui com uma mistura de música havaiana com o reggae na levada que funciona - mesmo que haja uma ausência dos primeiros versos "De repente, a dor de esperar terminou e o amor veio enfim..." já deixa um tropeço, não dá pra não deixar de admirar essa versão bem caprichada, que ainda entrou na trilha da novela Roda de Fogo (1986) de Lauro César Muniz fechando com chave de ouro esta masterpiece.
Logo após o lançamento deste disco, a banda entraria para mais outra tournée de grande sucesso no Rock Brasil, e foi um dos primeiros grandes lançamentos do nosso rock daquele ano - seguidos do mediano O Rock Errou, do polêmico e controverso Lobão seguido do best-seller do RPM, o clássico dos 3 milhões Rádio Pirata Ao Vivo, a estreia do Capital Inicial e dos Engenheiros do Hawaii em seus discos - este último com Longe Demais das Capitais, o grande estouro da Legião Urbana através do seu segundo trabalho intitulado Dois, e também outro dos maiores lançamentos do rock brasileiro daquele ano, que, assim como o Selvagem? fez e ainda faz muito barulho que é o Cabeça Dinossauro, dos Titãs, e 1986 foi considerado por muitos como o grande ano do nosso rock. Com a tournée, a banda também iniciava uma nova jornada na carreira, nos palcos eles não estariam mais em 3, mas com um músico de apoio, este seria o tecladista João Fera, que faz parte dos Paralamas até hoje. O disco está em diversas listas que você imaginar sobre rock brasileiro, em uma delas, feita pelo Ricardo Seelig para o site Whiplash, figura na 20ª posição enquanto a Rolling Stone deu a eles o 39º lugar na lista dos 100 Melhores Álbuns de Música Brasileira - este disco é a prova real da importância dos Paralamas para a nossa MPB, e fim de papo.
Set do disco:
1 - Alagados (Herbert Vianna/Bi Ribeiro/João Barone) - participação de Gilberto Gil
2 - Teerã (Herbert Vianna/Bi Ribeiro/João Barone)
3 - A Novidade (Gilberto Gil/Herbert Vianna/Bi Ribeiro/João Barone)
4 - Melô do Marinheiro (João Barone/Bi Ribeiro/Herbert Vianna)
5 - Marujo Dub (João Barone/Bi Ribeiro/Herbert Vianna)
6 - Selvagem? (Herbert Vianna/Bi Ribeiro/João Barone)
7 - A Dama e o Vagabundo (Herbert Vianna/Bi Ribeiro/João Barone)
8 - There's a Party (Herbert Vianna/Bi Ribeiro/João Barone)
9 - O Homem (Herbert Vianna/Bi Ribeiro/João Barone)
10 - Você (Tim Maia)
FAIXA BÔNUS DA REEDIÇÃO EM CD PARA O BOX "PÓLVORA" (1997):
11 - Teerã Dub (Herbert Vianna/Bi Ribeiro/João Barone)

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