Um disco indispensável: Gal Costa - Gal Costa (Philips/Companhia Brasileira de Discos, 1969)

Tal como grandes vozes femininas surgidas em terras brasileiras com o passar dos anos, a baiana Maria da Graça Costa Penna Burgos, nascida na Bahia, mais precisamente na abençoada cidade do Salvador em 26 de setembro de 1945, conseguiu atravessar diversas gerações fazendo de tudo um pouco: ela é bossa nova, samba, rock 'n' roll puro, MPB, tropicalismo e o que surgisse na frente dela, botando mesmo pra quebrar. A baiana, filha de dona Mariah Costa Penna e de Arnaldo Burgos - este, um pai mais ausente - teve mais a mãe como grande incentivadora, tanto é que dona Mariah passava horas concentrada ouvindo música clássica como um ritual, tendo a intenção de que esse procedimento causasse uma influência na gestação e fizesse com que a criança que estava a vir ao mundo, fosse uma pessoa com a música no corpo e na alma. A pequena Maria da Graça cresceu ouvindo de tudo, de Gonzagão a Caymmi passando pelos clássicos da Rádio Nacional, e quando saiu o álbum clássico de João Gilberto, o sempre lembrado Chega de Saudade, no início de 1959, ela sentiu que era aquilo que queria fazer. Cantar. O álbum gerou impacto em muitos jovens daquela época, no Rio, por exemplo, Marcos Kostendbader Valle e seu irmão Paulo Sérgio, o próprio Eduardo de Góes Lobo mais o capixaba residente no Rio de nome Roberto Carlos Braga e também os amigos Erasmo Esteves, Sebastião Rodrigues Maia e dessa galera fluminense também um certo Jorge Duílio Lima de Menenezes; em São Paulo foi assim também com Francisco Buarque de Hollanda (carioca residente na cidade àquela época), a própria Rita Lee Jones (devota confessa) foi hipnotizada pela canção; na abençoada Bahia foi com jovens também donos de ouvidos atentos à boa música, como Caetano Emanuel Vianna Telles Veloso e também um rapaz chamado Gilberto Passos Gil Moreira e por aí vai. Jovens ficaram cansado das canções dor-de-cotovelo e começaram a sentir o toque mágico da bossa de João, que mudou para sempre a história da música popular brasileira. Na juventude, o pai faleceu quando ela tinha 14 anos e começa também a trabalhar como balconista na principal loja de discos da capital baiana, a Roni Discos, onde ali descobriu um universo musical enorme, e tendo contato com as irmãs Sandra e Dedé Gadelha, esta última lhes apresentou a Caetano, um então estudante de filosofia e crítico de cinema em um jornal onde trabalhava ao lado de Glauber Rocha, futuro diretor de cinema: e depois disso, a amizade marcaria pra sempre e segue durando aí até hoje. Mais adiante, ela se  junta ao conjunto de artistas formados por ela mais Caetano e sua irmã Maria Bethânia, juntamente de um outro baiano vindo de Irará chamado Antônio José Santana Martins, futuramente Tom Zé, e fizeram parte de um espetáculo chamado Nós, Por Exemplo... apresentado em Salvador num local que ajudou a semear as carreiras destes baianos, o Teatro Vila Velha, situado no interior do Passeio Público: a estreia do espetáculo foi em 22 de agosto de 1964, meses depois de um golpe militar derrubar o gaúcho João Goulart, mantendo um regime/ditadura que durou por mais de 20 anos e causando diversas sensações no brasileiro, que iam de esperança ao pavor do que aconteceria mais adiante. Com este mesmo pessoal, participou também de Nova Bossa Velha, Velha Bossa Nova no mesmo local, e dali de Salvador partiu para o Rio de Janeiro tentar a sorte e seguir os passos de Maria Bethânia, que veio para substituir Nara Leão no aclamado espetáculo Opinião. Conseguiu um contrato com a RCA Victor, gravando um compacto com seu nome Maria da Graça e trazendo os temas Sim, Foi Você da autoria de Veloso, e também Eu Vim da Bahia, de Gil, além de ter participado da música Sol Negro, feita por Caê e no álbum da amiga e companheira de estrada e música.
No final de 1965, quando o cerco não estava começando a apertar no país, ela conheceu pessoalmente o guru da bossa nova, ele estava de férias ao lado de sua nova esposa, Miúcha, irmã de um compositor novo no cenário de nome Chico Buarque, que havia gravado um compacto até então. A sua atenção foi tanta que Guilherme Araújo quis começar a empresariar a carreira daquela gente baiana que estava chegando, e sugeriu mudar o nome - a jovem Maria da Graça de ontem é a Gal de hoje, amanhã e de sempre, e assim Gal Costa virou sua nova assinatura. Fez presença no I FIC (Festival Internacional da Canção) exibido pela TV Rio, onde cantou de Gil e Torquato Neto a música Minha Senhora, que não vingou. Em 1967, um jovem produtor carioca chamado João Araújo (futuro pai de um poeta exagerado) levou ela e Caetano para a gravadora Philips, onde gravaram seu primeiro disco, Domingo - assinado como Gal e Caetano Velloso (o sobrenome com dois Ls permaneceu só neste disco), ali gravaram temas como Avarandando e Coração Vagabundo, este um clássico, e aqui mostravam os dois como legados da bossa na suavidade vocal. No mesmo ano de 1967 ela participa do festival que revolucionou a história da MPB, o inesquecível III Festival de Música Popular Brasileira, exibido na TV Record, defendendo Bom Dia, de Gil e Nana Caymmi, e também Dadá Maria, da autoria de um santista chegando no cenário chamado Renato Teixeira, no festival cantou ao ladod e Sílvio César e no estúdio quem canta com ela é Teixeira. Mas a coisa aconteceu mesmo em 1968, primeiro ela participa do álbum coletivo que revolucionaria de vez no cenário musical tupiniquim, o clássico Tropicália ou Panis et Circensis, junto de Gil, Caetano, Nara Leão, Tom Zé e de um trio jovem que chegou abalando as estruturas eletrificando a MPB de vez, estes eram Os Mutantes, com Sérgio Dias na guitarra mais Arnaldo Baptista no baixo e Rita Lee nos vocais e instrumentos diversos (flauta, percussão), ali o disco mostrou Baby, uma canção doce com arranjos românticos, marca da carreira dela, onde Caetano canta Diana, o clássico tema de Paul Anka atrás do refrão entoado pela doce voz da baiana. E depois participou do IV Festival de Música Popular Brasileira, onde interpretou de Gil e Caetano o tema Divino, Maravilhoso - um rockão onde ela gritava e mostrava ser muito mais que a dona de uma voz delicada. Ao mesmo tempo, participava da zona de anarquia tropicalista em forma de programa televisivo com o mesmo nome Divino Maravilhoso, de duração efêmera na TV Tupi, e que encerrou antes dos gurus tropicalistas serem presos e levados à Bahia, onde ficaram até o exílio. Gravava um álbum, o primeiro solo, com a produção de Manoel Barenbein e tendo os arranjos do maestro tropicalista Rogério Duprat mais o jovem guitarrista Lanny Gordin e ainda do próprio Gilberto Gil antes de ser preso. Na capa, ela veste plumas e traz um olhar mágico que nos convida a uma viagem sonora tropicalista porraloca, basicamente sua voz mostra uma Grace Slick ou uma Janis Joplin dos trópicos baianos. O álbum já nos traz um órgão chapante que dá a deixa para Não-Identificado, composto ainda em 1968, fala de uma canção de amor que o eu-lírico fará para sua amada, misturado com discos voadores, é um tema belíssimo, que une romantismo e ficção científica de de forma surreal; depois, a baiana traz um forrozinho pro repertório, um terma de Rossil Cavalcanti que ficou conhecida por Jackson do Pandeiro - Sebastiana era um xaxado que ganhou uma pegada forrock no arranjo, bem a cara do que os nordestinos viriam fazer nos anos seguintes; em seguida a baiana começa a dar sua voz a Lost in the Paradise depois que um naipe de sopros desfila na introdução, e, acreditem, Gal manda muito no inglês quando canta; mais adiante, o álbum ganha toques mais delirantes quando Gil grita na introdução de Namorinho de Portão, composta por Tom Zé, e que o mesmo gravara no seu álbum Grande Liquidação naquele 68 também; para a faixa seguinte, suavidade nos arranjos e perfeição em Saudosismo, que é nada mais do que uma ode de Caetano à João e ao álbum Chega de Saudade, que na voz da baiana, fica uma coisa bonita de se ouvir; as duas faixas que aparecem na sequência são composições de peso da dupla Roberto & Erasmo: a primeira é Se Você Pensa, que traz um toque de soul-rock e a guitarra de Lanny mandando muito aqui, e depois ela traz Vou Recomeçar, um tema que imortalizou-se em sua voz e é lembrado até hoje do repertório dessa sua fase, nas duas canções ela mostra estar dando a volta por cima "Daqui pra frente, tudo vai ser diferente..." na primeira "Não vou ser mais triste, eu vou mudar daqui pra frente" nesta última, carregam o mesmo tom poético; mas a faixa de grande destaque mesmo é esta que vêm a seguir: Divino, Maravilhoso apresentada no IV Festival da Record, nos bastidores foi Caetano que convidou ela a interpretar o tema e o arranjo ficou com Gil, e quando se apresentou com roupas mais coloridas, um colar de espelhos e um cabelo black power, foi uma explosão - mostrou-se mais diferente do que no início, levou o 3º lugar e marca até hoje aqueles que ao ouvir "É preciso estar atento e forte/Não temos tempo de temer a morte" carrega como uma filosofia de vida, a vibe roqueira deste tema surpreende nossos ouvidos; quem também aparece em forma de composição é Jorge, o mestre do suingue em Que Pena (Ele Já Não Gosta Mais de Mim) com uma onda mais de sambalanço e Veloso dividindo os vocais com uma de suas tantas musas e parceiras de vida e música; na faixa seguinte, Baby, a versão presente é a do Tropicália ou Panis et Circensis com aquela voz de Caê ao fundo puxando a canção Diana e aquele tom de canção romântica nos arranjos feitos por Duprat, que seguiria trabalhando nos próximos materiais dela; das canções de Gil e de Torquato Neto no repertório temos A Coisa Mais Linda Que Existe, um tema mais parecido com o soul pela levada e ouvindo os metais nesse arranjo, talvez uma música mais ligado à pegada pop moderna da época; e o disco fecha com o tema Deus É o Amor, um tema mais alegre, falando que todo mundo parte um dia, o violão é tocado pelo próprio autor do tema, Jorge Ben, provando de onde vem tanto suingue deste tema. A sua viagem sonora continuaria em seu sucessor, o clássico Gal lançado meses depois e do qual já falei aqui no blog (leia aqui), mas aí já é uma outra história.
Figurando em listas possíveis de muita gente (músicos, críticos, fãs) dos melhores álbuns de rock brasileiro, MPB e psicodelia, não podemos negar o quão a baiana conseguiria ir longe demais nos seus trabalhos adiante, seu legado permanece fortemente influenciando diversas cantoras atuais e ela na ativa fazendo música, isso que é ótimo. O álbum figura na lista dos 100 Melhores Discos Brasileiros de Todos os Tempos, figurando o 80º lugar, mas nada que tire todos os méritos que realmente merce.
Set do disco:
1 - Não-Identificado (Caetano Veloso)
2 - Sebastiana (Rossil Cavalcanti) - participação de Gilberto Gil
3 - Lost in the Paradise (Caetano Veloso)
4 - Namorinho de Portão (Tom Zé) - participação de Gilberto Gil
5 - Saudosismo (Caetano Veloso)
6 - Se Você Pensa (Roberto Carlos/Erasmo Carlos)
7 -  Vou Recomeçar (Roberto Carlos/Erasmo Carlos)
8 - Divino, Maravilhoso (Caetano Veloso/Gilberto Gil)
9 - Que Pena (Ele Já Não Gosta Mais de Mim) (Jorge Ben)
10 - Baby (Caetano Veloso)
11 - A Coisa Mais Linda Que Existe (Gilberto Gil/Torquato Neto)
12 - Deus é o Amor (Jorge Ben)

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