Um disco indispensável: Alegria Alegria Volume 2 (ou Quem Não Tem Swing, Morre com a Boca Cheia de Formiga) - Wilson Simonal (Odeon, 1968)

Para definir bem o ano de 1968, é preciso entender o contexto dos fatos que ajudaram na história: além da crescente dos movimentos civis, em especial nos EUA que combatia ao racismo ainda vigente, segmentos feministas e os Panteras Negras além dos movimentos contra a Guerra do Vietnã que ainda perdurava até 1975. A América Latina, ou resumindo melhor, alguns de seus países, sofriam com a forte rigidez autoritária dos governos militares, em especial o Brasil, que estava no seu quarto ano do regime/ditadura e estava a poucos meses de endurecer com o Ato Institucional número 5 (AI-5) que durou dez anos posteriormente e causou terror e espanto na política brasileira, e o presidente Arthur da Costa e Silva ainda não estava de saída da administração do cargo de presidente. Enquanto o Brasil continuava a ruir de espanto e terror, a morte do estudante Edson Luís em um restaurante causou um enorme furor, fazendo com que brasileiros das mais diversas alas: cultural, política, religiosa, estudantil dentre outras - a passeata dos Cem Mil mostrou como um Brasil era fortemente unido contra as Forças Armadas no poder, e muitos dos que estiveram presentes, inclusive nomes da MPB, que faziam diversas canções de protesto com forte engajamento político e social. Na época, influenciados pela eclosão do movimento de contracultura e do rock lisérgico e viajandão feito por grupos como Jefferson Airplane, Velvet Underground, Jimi Hendrix, Kinks, The Who, Love, The Doors, Big Brother & The Holding Company, Rolling Stones e até mesmo dos Beatles, o tropicalismo unia desde erudito e elementos mais atuais da época como o baião, o samba e ritmos afrolatinos com o rock, fazendo com que Caetano Veloso e Gilberto Gil, o conjunto Os Mutantes, Gal Costa e Tom Zé dentre outros ajudassem a eletrificar a música popular brasileira de vez, levando o movimento a festivais da canção - onde foram revelado nomes da MPB de Elis Regina a Oswaldo Montenegro e de Chico Buarque a Tetê Espíndola e Eduardo Dusek, programas de auditório, e shows em boates - até que, no crepúsculo de 1968 (dias após o lançamento do AI5), Gil e Veloso são presos, e meses depois, partem para o exílio europeu, mais precisamente na Inglaterra, berço das bandas como Beatles, Kinks e Stones, além do futebol e do chá das cinco. Enquanto a Tropicália atingia seu auge na TV, em disco e festivais, a jovem guarda - oriunda de um programa televisivo homônimo exibido desde agosto de 1965 nas tardes de domingo da Record com a batuta de um trio considerado de peso na época: Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléa, atraindo um público imenso apesar das críticas ao som que faziam. Mas sucesso quem também fazia era um rapaz negro chamado Wilson Simonal, nascido na Cidade Nova, um dos bairros do Rio de Janeiro, em 23 de fevereiro de 1938, filho de uma cozinheira e de um radiotécnico, começou a carreira no final dos anos 1950 com o conjunto Dry Boys ao lado também do irmão Roberto, que foi saxofonista inclusive no Renato & Seus Blue Caps nos primórdios. No começo dos anos 1960 ainda também como militar, com a chance de tornar-se um cantor de sucesso, ele conseguiu ter como seu principal mentor um grande visionário no showbusiness brasileiro, que curtia Coca-Cola e garotas mais novas, e foi basicamente, o homem do rock no Brasil nos primórdios, o comunicador e compositor Carlos Imperial - que ajudou a lançar Roberto e Erasmo, Elis Regina, Clara Nunes, Tim Maia, Eduardo Araújo dentre outros nomes revelados - e com isto, ele logo de cara vai para a gravadora Odeon, da qual fazia parte um cast a peso de ouro: João Gilberto, Orlando Dias, Sylvia Telles, Trio Irakitan, Elza Soares, Celly Campelo dentre outros - e depois de gravar diversos compactos, ele lança em 1963 o LP de estreia Wilson Simonal tem Algo Mais - e foi só o começo de uma das mais brilhantes discografias da MPB e de um nome que ficou anos relegado ao ostracismo após o auge impressionante.
No ano de 1966, a TV Record investia duramente em um elenco de peso e em uma programação autêntica: com nomes que iam desde a apresentadores como Hebe Camargo e o casal Sonia Ribeiro e Blota Jr., humoristas como Ronald Golias, Ricardo Côrte Real e Jô Soares e também programas de musicais marcantes. A começar pelo Bossaudade, comandado por Cyro Monteiro e Elizeth Cardoso, o Pequeno Mundo apresentado por Ronnie Von, e os campeões de audiência e público: o sofisticado e charmoso O Fino da Bossa, que lotava o Teatro Paramount/Teatro Record com a batuta de Jair Rodrigues (1939-2014), o Cachorrão, cheio de irreverência e bom humor, e da estrela da música popular brasileira Elis Regina (1945-1982) conhecida como a Pimentinha e defensora da música mais tradicional brasileira, contra a guitarra elétrica recebendo nomes como Edu Lobo, Marcos Valle, Chico Buarque e Gilberto Gil além de João Gilberto (que detestou e preferia o rock). As tardes de domingo eram embaladas pelo rock tupiniquim da Jovem Guarda, sob a batuta de Roberto Carlos, o então ídolo da juventude e um dos propagadores do pop moderno na época, com a ajuda do seu amigo Erasmo Carlos, o Tremendão e a musa Wanderléa que era conhecida como Ternurinha e tinham como atrações nomes como Wanderley Cardoso, Jerry Adriani, Martinha, grupos como Jet Black's, Fevers e os Incríveis além de nomes mais da bossa nova como Caetano Veloso, Jorge Ben e até mesmo a dupla do Fino bateu o ponto lá. Mas um programa que fazia muito sucesso na Record também era o Show em Si Monal, apresentado pelo próprio Wilson, deixando o auditório com filas cheias até na entrada - ali ele entretia o público, brincava, dava a deixa para fazerem o coro e entoava sempre bordões icônicos, um deles foi "alegria, alegria!" que originou uma série de quatro LPs - o primeiro, em 1967, contava com diversos sucessos da carreira como Vesti Azul, a marcha-rancho Belinha - música de Toquinho que foi interpretada também no III Festival de Música Popular Brasileira, a embalante marchinha de despedida Está Chegando a Hora, a pilantragem suingante de Nem Vem Que Não Tem, e também Pára Pedro, canção do gaúcho José Mendes, àquela altura, ícone em ascenção da música sulista, além de Remelexo,  da autoria de Veloso, que pegou este bordão/título de disco e converte-a no nome de uma de suas maiores canções de sucesso. O segundo volume é o mais lembrado, da série Alegria Alegria, editado em 1968, é o mais conhecido dos quatro, não só pelo estrondoso sucesso em vendas logo na época, mas também por alguns dos diversos sucessos - na capa, dá para ver Simonal desfrutando à vontade seu auge e o luxo do sucesso tomando uma água de coco pura na praia, enquanto a contracapa o mostra distraído na frente de seu carrão, um dos tantos que ostentava em sua ótima fase, como o Oldsmobile, e a produção de Milton Miranda mais o acompanhamento do Som Três sob a batuta do pianista César Camargo Mariano e os metais com "champignon
", que sempre ajudavam a engrossar o caldo sonoro. E o álbum começa de imediato com um dos seus maiores sucessos, logo a suingante Sá Marina - sambalada estilo pilantragem criação de Antonio Adolfo e Tibério Gaspar que fala de uma moça que parece trazer uma alegria, tornando-se assim um dos sucessos de 1968 e que ganhou até versões com Stevie Wonder e o famoso Brasil '66 - o grupo de Sérgio Mendes, e também por Judy Anton e Lisa Ono mais adiante; a seguir, a próxima faixa surge com ovações de aplausos até que começa uma marcação rítmica e assim temos Cai, Cai - samba composto por Roberto Martins e popularizado por Carmen Miranda nos anos 1940, aqui ganha peso com a adição do órgão e do trombone num ritmo mais acelerado pro samba, na pegada do samba-jazz ainda do meio dos 1960; com um toque bem preciso e de fineza, a balada Manias soa como o que há de mais sofisticado do repertório - no conceito poético-sonoro, baladinha estilo anos 50 no melhor formato trio (piano-baixo-bateria) que traz entre os autores Celso Cavalcanti e um tal de Flávio Cavalcanti - seria o polemista apresentador de televisão realmente o autor desta? Certamente que sim! E segue o baile - o momento bem-humorado continua em canções como Recruta Biruta, que soa em ritmo militar a história de um soldado atrapalhado - talvez brincando com os militares, com direito a citação para Marcha Soldado, famosa cantiga infantil - é a mais curta do disco; outro destaque do disco que funciona bem no repertório é um dos clássicos da MPB mais dos tempos da rádio, Neste Mesmo Lugar traz um ar de fossa nos versos onde até Noel Rosa é citado enquanto o eu-lírico recorda dos tempos que frequentava certo lugar com uma pessoa amada (pode ser isso) - é uma das canções de fossa que já ganhou voz com Dalva de Oliveira, Maysa, Nana Caymmi dentre outras tantas vozes da nossa MPB e que com Simonal, a canção teve um charme e tanto; pra manter o estilo pilantragem, ele ainda traz uma das melhores canções do disco - a embalante Zazueira, criação de Jorge Ben, um sambalanço todo cheio de ginga que se aprecia com facilidade - um dos tantos temas do Babulina do Rio Comprido que o grande Simonal eternizou na MPB; adiante, outra música dos anos 1950 que ganhou status de clássico dos anos dourados e que rendeu também inúmeras versões, Não Tenho Lágrimas cai como uma luva aqui no repertório do disco, sem problemas - para uma música que até o grande Nat King Cole gravara nove anos antes, aqui o primor permanece com a forte presença de sopros que acompanham em boa parte; a seguir, um tema que chega até a passar batido: tanto pela sonoridade (será?) quanto pela sua letra e o nome dela - lá vai, De Como Um Garoto Apaixonado Perdoou Por Causa dos Mandamentos - bem pilantra possível, aqui o toque bem R&B dos anos 50 funcionando com um ar mais aos 1960, e pouca gente deve imaginar, mas um dos autores desta canção era o saudoso humorista Chico Anysio (1931-2012) que também tinha seu lado poeta; o disco ainda contaria com outras pérolas mais ou menos desconhecidas, o caso de Cartão de Visitas, ainda que soe meio bobinha a quem não é lá acostumado, acaba por continuar no esquema de canções sempre com histórias contadas sempre elaborantes; a faixa seguinte une o Nordeste com o Caribe através da fusão propagada em Paraíba, canção de Luiz Gonzaga lá dos idos de 1947 que aqui carrega uma levada mais embalante, samba com elementos afrocaribenhos (salsa, chácháchá) e a voz aveludada de Simonal mostrando que na Paraíba tem mulher mais masculina sim senhor; adiante, o disco ainda nos presenteia com outra pérola quase esquecível se não fosse coincidente o fato de Gosto Tanto de Você ter como seu compositor o ex-futebolista Pelé, que era muito amigo de Simonal e ofereceu como um extra para o disco - pois, como que o jogador batia um bolão até na hora de compor (parece que Pelé fez pensando na sua então esposa Rose); o encerramento já soa meio lastimável para nós que se sentimos à vontade se deliciando com um monte de pérolas, que quando ouvimos a ovação em Vamos S'imbora, já dá para sentir que é a hora da despedida, mas sabemos que ainda iríamos ter muito mais de alegria, pilantragem e suingue do melhor com Simona, o Som Três e seus metais.
O LP foi obviamente um sucesso como dito anteriormente, mas Simonal a essas alturas já estava pintando e bordando não somente na tela da Record, mas também nas diversas capas de revistas, eventos diversos, afinal, ele era um dos únicos artistas negros a terem uma visibilidade tão popular batendo de frente até mesmo com Roberto Carlos, que estava evoluindo de vez após o fim da Jovem Guarda. Anos se passaram, e logo após falecer em junho de 2000, sua discografia enfim reaparece em uma caixa luxuosa editada em 2003 com os álbuns gravados de 1963 até 1971, ano em que é gravado seu último material pela Odeon e também o início de seu grande declínio artístico e ostracismo, que perdurou-se por 29 anos. Neste box, dois álbuns compartilhavam o mesmo CD com a adição de faixa bônus, e o que tinha os dois primeiros Alegria Alegria contava com uma quase raridade: uma totalmente jazzy para Namoradinha de Um Amigo Meu, de Roberto Carlos - que deixa a desejar por um instante até você sentir que parece um diálogo mais fino, com um ar de deboche. Este segundo trabalho mostrou que Simonal ainda estava na boa e antecipando o boom do soul protagonizado por Tim Maia dois anos depois. Mas aí já é uma outra história.
Set do disco:
1 - Sá Marina (Antonio Adolfo/Tibério Gaspar)
2 - Cai, Cai (Roberto Martins)
3 - Manias (Flávio Cavalcanti/Celso Cavalcanti)
4 - Recruta Biruta (Alberto Ribeiro/Antonio Nássara/Antonio Almeida)/citação: Marcha Soldado (tradicional)
5 - Neste Mesmo Lugar (Klécius Caldas/Armando Cavalcanti)
6 - Zazueira (Jorge Ben)
7 - Não Tenho Lágrimas (Max Bulhões/Milton de Oliveira)
8 - De Como Um Garoto Apaixonado Perdoou Por Causa dos Mandamentos (Wilson Simonal/Nonato Buzar/Chico Anysio)
9 - Cartão de Visitas (Edgardo Luís/Nilton Pereira de Castro)
10 - Paraíba (Luiz Gonzaga/Humberto Teixeira)
11 - Gosto Tanto de Você (Pelé)
12 - Vamos S'imbora (Wilson Simonal)

Nos streamings, o álbum começa a partir da faixa 15

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